segunda-feira, janeiro 03, 2011

Anamnese

É estranho termos 30 anos e sentirmos que temos 60. Há pelo menos dez anos que queremos chegar depressa aos 60 para podermos exilar-nos sem culpa nem desconfiados olhares de soslaio no Alentejo - caso o paraíso alentejano não se transforme no inferno algarvio. Não é preguiça; é só inadaptação ao tempo. Termos de viver os próximos 30 anos à espera dos 60 é uma esquizofrenia que não augura nada de bom.

Gostamos de livros de papel. Das capas. Do cheiro. De os sublinhar, de desenhar rodelas à volta das palavras que não conhecemos. Gostamos de escrever a data em que os comprámos ou nos foram oferecidos, e a data em que os começámos e acabámos de ler. Gostamos de fazer marcadores com amostras de perfume. Gostamos de transportar os livros, de os guardar e acumular à mesa de cabeceira, de precisar de uma frase e conseguirmos ir lá dar, em qualquer que seja o livro em que ela habite, de olhos quase fechados. Não gostamos de tablets, kindles, iPads ou smartphones. Mesmo que sejam parecidos com os livros, mesmo que os livros lá sejam mais baratos e caibam mil lá dentro, mesmo que se possa aumentar as letras e sublinhar com uma caneta virtual. Mesmo que sejam mais leves. Mesmo que seja possível traduzir em directo as palavras que não sabemos. Gostamos de ir ao dicionário. De significados, de sinónimos. E depois ficar a passear pelos sinónimos dos sinónimos.

Gostamos de jornais em papel. A preto e branco. Mesmo que sujem as mãos. Gostamos de textos longos, bem escritos, contextualizados, que nos mostrem alguma coisa para lá do óbvio. Que nos ensinem e nos despertem. Que nos comovam. Gostamos de textos que esgotem assuntos. Gostamos de jornalistas que não escrevem como os outros todos. Gostamos de um jornalismo que já não existe. Gostamos de fazer recortes e dossiers com os cronistas a que somos fiéis. Não gostamos da voragem informativa, de saber notícias hoje que vamos esquecer amanhã. Gostamos da preservação da memória, do jornalismo que não noticia só a última hora. A espuma dos dias. Gostamos do jornalismo que se colecciona. Coleccionava.

Não gostamos de crianças que são tratadas como adultas aos seis anos. Gostamos de crianças que acreditam no pai-natal até tarde, que acham que podem voar, que os animais falam e que os seres inanimados também sentem dor. Gostamos de crianças que não têm pressa de crescer. E que foram ensinadas a amar, a respeitar os mais velhos. Não gostamos de conhecer pessoas novas. Muito menos na internet. Gostamos do nosso núcleo duro. E gostamos de o ver ser furado uma vez em cada milhão por uma pessoa nova, alguém tão terrivelmente especial que parece que fez sempre parte de nós. Gostamos de ter pessoas em casa. De sentir muitas saudades delas quando vão embora. Já quase não gostamos de sair à noite. Gostamos de ficar acordados até tarde a conversar. Não gostamos de música aos gritos. Gostamos de silêncio.

Não gostamos de centros comerciais. Nem de lojas de espécie quase nenhuma. Gostamos de colocar a mesa para o pequeno-almoço como se houvesse todo o tempo do mundo para o tomar. Gostamos de guardanapos de pano. De ir buscar água ao bosque. E medronhos. E lenha para a lareira. Gostamos de ir comprar pão de pijama. E dizer bom-dia a quem passa. Gostamos de calçar galochas e chapéu e passar as manhãs a tratar do jardim. Mesmo que esteja frio e a chover. Gostamos do culto do almoço domingueiro. Dos vizinhos que são como família. Amamos a família! Não gostávamos de a ver só de vez em quando. Gostamos de estar em casa. De a ter cheia de brinquedos com nomes, apesar de não haver crianças. Gostamos de cartas enviadas pelo correio. De bilhetes escritos em post-its. De acordar todos os dias com um "gosto de ti". Gostamos de riscar no calendário os dias que faltam para a visita de alguém.

Gostamos de coisas datadas, irrepetíveis, de pessoas sobretudo. E sobretudo de ter tempo. Não gostamos de competir. De correr, de atropelos. Não gostamos de juízos de valor. Nem de quem vive para acumular. Gostamos de partilhar. E de ser surpreendidos pela bondade de alguém. A bondade de partilhar uma receita. Gostamos de passear de mãos dadas. E de ficar no sofá embrulhados numa manta. Gostamos quando o mundo parece um lugar maravilhoso só por causa disso. Só porque estamos juntos. 

3 comentários:

  1. Nunca se vai destruir o Alentejo.
    Deus permitiu que só fosse descoberto mais tarde.

    bj

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  2. Não gosto do teu blog que de quando a quando decide-me adiar o ler-te.

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