"Quem me dera conseguir encontrar o meu pai para poder dizer à minha mãe, Aqui está ele e ainda tem três libras no bolso. Já não tenho fome, por isso posso subir por um dos lados da O'Connell Street e descer pelo outro e procurar nos pubs nas transversais, e encontro-o no Gleeson, como é que eu podia não dar com ele, se está a cantar (...). Tenho o coração a bater muito e não sei o que hei-de fazer, porque sinto que estou cheio de raiva como a minha mãe estava, sentada à chaminé, e a única ideia que me passa pela cabeça é entrar a correr e dar-lhe um pontapé nas pernas e tornar a sair a correr, mas não faço isso porque temos as manhãs ao pé do lume, quando ele me fala do Cuchulain, do De Valera e do Roosevelt, e se ele estiver lá dentro bêbedo e a oferecer cervejas a todos com o dinheiro do bebé, eu sei que os olhos dele estão iguais aos olhos do Eugene quando se punha à procura do Oliver. Posso ir para casa e mentir à minha mãe, dizendo-lhe que não o vi nem consegui encontrá-lo."
Odeio emprestar livros porque ninguém sente necessidade de os devolver. Emprestar um livro é partilhar intimidade. Não é só uma história que está a dividir-se, é um entendimento que está a multiplicar-se, é dizer: acho que vais gostar, que vais entender. Acho que tu também és isto. É desvendar qualquer coisa do que somos também... Mesmo assim, infeliz traição, as pessoas não devolvem livros emprestados. Um dos últimos a que perdi o rasto foi este. Esperei mais de dez anos para que mo devolvessem. O meu livro, as minhas anotações. Não aconteceu. Encontrei-o um destes dias numa livraria e não resisti a comprá-lo. Outra vez. Quase com medo. Há livros que só assimilamos numa segunda leitura, muito mais tarde. Mas será que há livros que nos tocam tanto numa primeira abordagem e depois, quando o tempo passa, percebemos que lhe insuflamos o significado? Não é o caso. A retrospectiva auto-biográfica da infância miserável, esventrada, esfomeada e enferma de Frank McCourt (o autor morreu há dois anos, com 80 anos) numa Limerick irlandesa dos anos 40 é o que parecia ser na altura: violentamente comovente. Como o filme de Alain Parker, de 1999.
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