Não há sonhos mais legítimos que outros. Nem sonhar é exclusivo de um tempo ou de uma geração. Mas a distância entre sonho e realidade emagreceu. Antes, havia o sonho; agora, há a crença de que é sempre realizável. O mundo mudou. “O ideal moderno”, diz Gilles Lipovetsky em A Era do vazio, promoveu um valor fundamental: o da realização pessoal imediata.” O filósofo francês apresentava assim, no final dos anos 80, um novo tempo cuja lógica haveria de pautar-se pelo “mínimo possível de coacção e o máximo possível de opções, pelo mínimo de austeridade e o máximo de desejo”. As últimas décadas provaram que tinha razão. Não é justo atribuir aos media em geral e à televisão em particular esta mudança que legitimou novos valores, mas é impossível ignorar-lhe o poder – a TV criou a ideia de que não há impossíveis. E que a exposição pública compensa.
Dois exemplos: em Portugal, mais de 15 mil pessoas candidataram-se a Ídolos, programa da SIC cujo propósito era descobrir um cantor pop, exibido ao domingo em horário nobre e êxito de audiências. Prometia ao vencedor um curso na London Music School. Na TVI, a competição era outra. A Casa dos segredos desafiava uma dúzia de concorrentes a viver numa casa fechada, espécie de “Big brother” em que o último resistente teria direito a 150 mil euros. Conclusão: a exposição do indivíduo comum é lucrativa. A TV agradece. E todos ficam satisfeitos. Estamos face a uma sociedade, torna Lipovetsky, que “consome a sua própria existência através dos media”. Sociedade sem inocentes, cultivada pela TV e pela rentável maratona de reality-shows, pelos milhares de candidatos e audiências esmagadoras. Toda a gente tem um sonho e o veículo mais eficaz para realizá-lo parece ser a TV. Mas. quando corre mal e o sonho se despenha, é causa ou coincidência?
“A televisão não é uma ilusão. Permite, de facto, realização pessoal imediata. Torna as coisas possíveis e, muitas vezes, compensa. Democratizou o acesso a determinados patamares da vida”, afirma Pedro Boucherie Mendes, director dos canais temáticos da SIC, popularizado pelo desempenho mordaz no júri do Ídolos. Uma pessoa que nasceu numa aldeia do Alentejo, sustenta, “adquiriu o mesmo direito e a mesma possibilidade que eu de ter fama e ser uma estrela”. O retorno, mesmo se efémero, pode vir sob a forma de prémio monetário, de reconhecimento público ou de construção de uma carreira.
A questão não é, portanto, perceber onde está a possibilidade, mas de onde vem a necessidade. E, aparentemente, ela resulta de uma nova organização da sociedade. “Antigamente, as pessoas trabalhavam para ter uma carreira. Aos 14 anos era possível prever o que seriam aos 25; organizavam-se e viviam no sentido progressivo dessa meta. Havia um meio e um fim. Hoje, há uma travessia. Não se sabe de onde se parte, onde se está e para onde se vai”, explica Albertino Gonçalves, investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho (UM). “Antes, havia um projecto; agora, há uma oportunidade, várias oportunidades – ou se agarram ou não. Antes, o percurso era ordinário; agora, é pautado pelo extraordinário. As pessoas têm a vida em aberto até mais tarde e com recursos de que antes não dispunham. Há a noção da vida como um puzzle, o que nos permite vestir várias personagens, ou seja, ser uma coisa aqui e outra ali.”
À mudança não é totalmente alheia a mão da TV. “As pessoas tendem cada vez mais a desenvolver uma relação com o mundo baseada no extraordinário, no feérico – até no sinistro, onde as coisas mais terríveis podem acontecer. Excluem a relação racional com o mundo e enveredam pelo carácter mágico. Acreditam em milagres, que o conto de fadas é possível, que podem ser o sapinho”, observa. E acreditam porque a televisão criou uma Susan Boyle, britânica catapultada para o sucesso aos 50 anos por ter rendido o Reino Unido, num programa equivalente ao Ídolos, ao cantar I dreamed a dream, do musical Os Miseráveis. Porque a televisão criou um Ted Williams, um sem-abrigo cuja voz radiofónica foi gravada por um repórter de televisão, daí resultando, em seu benefício, várias propostas de trabalho. “A crença no sonho, ela própria, não é nova, acompanha-nos desde sempre. Pode estar muito discreta, ser até secreta, mas existe sempre. A televisão veio apenas torná-la mais ostensiva”, defende o sociólogo.
Os exemplos de casos meteóricos sucedem-se e dão razão a Boucherie Mendes: “A TV resolve muitas vidas.” Mas a eficácia em tornar alguém conhecido nem sempre é sinónimo da real existência de um talento. O próprio escreveu em Agosto do ano passado, na Index, revista do diário i: “O mundo tem com certeza muitos defeitos, mas o maior é esta mania dos sonhos. Quem sonha julga-se automaticamente especial. Como é especial, o seu sonho será real mais tarde ou mais cedo. Alguém que se julga muito especial dificilmente percebe que é tão especial como um grão de areia na praia”.
Albertino Gonçalves corrobora: “Há hoje a ideia de que cada um de nós é um tesourinho, e que se esgravatarmos bem vamos encontrar coisas extraordinárias, o que não é verdade”. E explica a diferença: “Antes, apreciava-se um Elvis Presley com a devida distância, com a consciência de que estava envolto em qualidades extraordinárias, inatingíveis. Hoje, vê-se um herói e acredita-se que é possível ser igual, fazer igual. Sobretudo porque os heróis, hoje, não são pessoas inatingíveis, com capacidades ímpares; são pessoas comuns que a TV simplesmente transformou em estrelas.”
O problema, acrescenta Eduardo Cintra Torres, investigador e crítico de Televisão, “é que participar num programa televisivo, ou mesmo ganhá-lo, não garante o êxito.” E pergunta: “Os programas inscritos no real já existem há alguns anos, onde estão os concorrentes? Onde estão os ganhadores?” A TV, reconhece, “criou uma nova expectativa nas pessoas, mas não é garante de nada”, insiste. Até porque, afirma de encontro à ideia de Gonçalves, “se antes a fama resultava do talento ou do talento acrescido de beleza – casos da actriz americana Grace Kelly ou da austríaca Romy Schneider, ambas belas e talentosas –, hoje pode resultar de pouco mais do que nada.”
E é justamente deste “pouco mais do que nada”, observado em programas cujos concorrentes ficam conhecidos apenas por fazerem confissões de, por exemplo, adultério, que resulta outra importante mudança social. “O estatuto do ridículo mudou. Vivemos numa sociedade que valoriza o grotesco, o insólito. O ridículo já não mata. É só uma maneira de ser. E isso explica a desinibição”, considera o investigador da UM. “Diante da TV, as pessoas sofrem uma transformação: não é hipnótica, mas os controlos normais da razão, do bom senso e da auto censura ficam bloqueados, e o que sai é uma personagem.” Haverá quem questione o preço desta exposição. O sociólogo responde: “Para quem a deseja, a fama leva, de facto, as pessoas até às estrelas. Não é igual à adrenalina, mas é semelhante a um sonho a ser decantado dentro. E a fama é efémera, mas efemeridade é a única certeza que hoje temos sobre as coisas”.
Acontece que, de vez em quando, o sonho não só fica pelo caminho como corre mal. Zé Maria, vencedor do primeiro Big Brother, tentou suicidar-se; na Suécia, em programa idêntico, o vencedor suicidou-se mesmo. E Renato Seabra, finalista do programa da SIC, À procura de um sonho, é o principal suspeito de ter assassinado um homem. São tudo coincidências ou os concorrentes não estão preparados para o embate com a realidade, com uma resposta que porventura não lhes cumpre o imaginário e ficam perigosamente vulneráveis?
“Há uma indústria que vive das pessoas que querem fama. E, claro, há vítimas. Mas nas minas de carvão também há”, relativiza Cintra Torres. “Diabolizar a TV ou responsabilizá-la pelo comportamento desviante dos concorrentes não faz qualquer sentido. As coisas que ali acontecem, acontecem porque a sociedade as permite, deseja e amplia.” É aquilo que Boucherie Mendes designa como “efeito do acidente de automóvel: há um apelo para parar e ficar a ver”. De resto, tende a concordar com o crítico. “Em Portugal, vivemos numa sociedade que infantiliza as pessoas. São, desde muito cedo, desresponsabilizadas. Aprendem a usar desculpas para o que não são capazes de fazer, até que essa sucessão de desculpas se transforma numa norma. Isso explica que os candidatos tenham um sonho mas, paradoxalmente, não sejam ambiciosos. E não significa que não estejam preparados para aceitar as regras de um programa, a partir do momento em que decidem fazer parte dele”.
Albertino Gonçalves não discorda, mas deixa uma nota: “As experiências potenciadas pelos media alteraram a nossa relação com a sociedade. E têm dois riscos: a alucinação, porque cria uma hiper realidade; e melancolia, a ideia de que não somos nada só porque não estamos ali. Olhamos para o espelho retrovisor, vemos as ruínas e perdemos a fé. Ambos os riscos são extremos”, reconhece, “mas ambos são perigosos”.
Perigosos, mas não o suficiente para fazer explodir a bomba que, em potência, somos todos, ressalva Rui Abrunhosa Gonçalves, professor de Psicologia Forense da UM, especialista em psicologia do comportamento desviante. “Há várias coisas que, num indivíduo aparentemente exemplar, pode despoletar uma reacção dissociativa. Mas está sempre associada a um período tóxico (consumo de drogas, a personalidade esquizóide ou a uma patologia, mesmo que tão suave que só seja susceptível de ser detectada por um especialista”.
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