Quando eu tinha dez anos, tu tinhas já cinquenta (dá para acreditar?). E eras a melhor pessoa que eu conhecia. Mas eu era pequenina, ainda menina de colo, conhecia meia dúzia de pessoas, tinha acabado de acabar a escola primária, nunca tinha saído de casa, não sabia nada da vida. Quando eu tinha vinte anos, tu estavas quase na idade da reforma, caso quisesses ter-te reformado, mas ninguém acreditava que tu tinhas já sessenta anos, tantas eram ainda as tuas lutas, a tua força, os teus sonhos, e ao mesmo tempo a tua candura. Eu vivia a cem quilómetros de distância de ti, numa universidade em que conhecera mais de cem pessoas de todos os feitios e armações, todas pessoas boas que me fizeram tão feliz, mas tu eras ainda a melhor pessoa que eu conhecia. Quando eu fiz trinta anos, tantos caminhos já trilhados, tantas pessoas, tantas paixões, ilusões, a vida parecia ter-me magoado já mais a mim do que a ti, porque eu chorava onde tu eras capaz de sorrir, eu caía e desanimava onde tu te erguias sempre e sempre, como se tu fosses o teu exército inteiro, um exército imbatível, e no entanto as tuas armas eram só bondade, essa palavra tão rara, e essa espécie de alheamento que usas como filtro para te impedir de guardar o que faz doer. E eu zangava-me porque na cegueira de querer ser como tu, sentia que não me tinhas dado ferramentas para defender-me de quem não era como tu. Perdia tempo para ti, porque queria aprender o que tu não podias ensinar-me, queria lições de defesa, queria entender os outros. Tinhas setenta anos, vivíamos longe, porque é sempre longe quando não é perto todos os dias, e eu lá tive de aprender sozinha que não valia a pena continuar a procurar alguém como tu para mim ou querer eu ser como tu, porque não há duas pessoas como tu. Tu não sabes tudo, não estás sempre certo, estás muitas vezes errado, mas completas setenta e cinco anos parecendo que o tempo não passou por ti - por fora mas sobretudo por dentro. Não tens cáries no coração, nunca tiveste. Nem armaduras nas mãos, também nunca tiveste, só calos do trabalho. Parece que na tua vida nunca houve tempestades, traições, pessoas aquém, e nós sabemos os dois, houve tantas, não houve, pai? Mas tu não tens espaço para isso dentro de ti, como se estivesses sempre no ínício da viagem, e nada soubesses dos perigos. És a pessoa menos poluída que conheci, a mais inspiradora de todas as pessoas que existem. E quando dizes, e dizes tantas vezes, "tu não és mais do que os outros", eu sei exactamente o que tu queres dizer. Tens 75 anos, e ainda és a melhor pessoa que eu conheço, provavelmente serás sempre. E és meu pai, dá para a acreditar? Quando tu fizeres 80 anos, eu terei 40, metade da tua idade, nem metade da tua sabedoria. Mas nessa altura havemos de celebrar em conjunto os anos que ainda teremos pela frente, pelo menos mais vinte, para fazermos coisas juntas. Agora, já ninguém nos separa.
sexta-feira, abril 05, 2013
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