As primaveras árabes apanharam-no de surpresa?
Sim, sobretudo o movimento em geral, a forma como este se desenvolveu em Marrocos até ao Iémen ou ao Bahrein. Foi um pouco parecido com o que aconteceu na Europa em 1948. Na verdade, foi algo de muito profundo. O que me tocou não foi a luta pela liberdade - o que não deixa de ser fundamental face a um poder corrupto e autoritário -, mas o sujeito dessa luta. Não foram apenas as pessoas pobres e desempregadas que saíram à rua; foram também os chamados cognitive workers. O movimento gerou-se de modo imprevisto e novo. Estamos perante uma nova forma de luta social.
Surpreende-se que se surpreenda. Não é a penas a confirmação do seu conceito de "multitude", enquanto um conjunto heterogéneo de indivíduos que se unem?
Já tinha a confirmação da multitude enquanto composição. A "multitude" é composta pela classe média em crise e sobretudo pela nova juventude universitária, o chamado general intelecto. É uma composição muito complexa e de difícil compreensão, mas é um conceito muito importante. No passado, relacionávamos o indivíduo com o barro, a família, o tempo, a forma de trabalho, a relação política, as experiências históricas, a luta do partido, a liderança sindical. Hoje, os indivíduos que fazem parte dessas massas não se reduzem a uma identidade. O movimento árabe é, de facto, uma "multitude".
É flexível, imprevisível, não tem um chefe...
Não há um chefe, há vários. A inteligência média das pessoas é muito elevada. Isso não significa que haja uma unidade imediata, mas sim um trabalho nesse sentido. Quando falamos de "multitude", falamos sobretudo de um movimento. É especialmente uma produção de subjectividade que é feita de inter-relações entre pessoas. Hoje trabalhamos juntos, definimo-nos juntos, ligamo-nos... Aquilo que se passa neste momento em muitos países árabes é a procura de um equilíbrio, que não será o melhor, entre as diversas forças. Vive-se um período de transição, num interregno. Mas essa vontade de transformação caminha lado a lado com a globalização.
As notícias económicas dominam totalmente as nossas vidas. Acredita que esta crise geral, ou "omnicrise" - como escreve nos seus livros -, se vai prolongar?
Vai. O desenvolvimento capitalista está bloqueado pelo facto de a produtividade actual ser social. Os estados capitalistas, os líderes, não têm meios para recuperar essa produtividade social. A riqueza da actualidade não sai das fábricas. Forma-se fora desse controlo capitalista. Hoje, é completamente impossível definir o valor económico da acumulação do mesmo modo que se fazia na era da jornada de trabalho. Tudo é paradoxal. Temos uma construção capitalista ligada ao velho modelo e uma banca/finança que procura medir a produção social. O capitalismo está muito atrás da capacidade social de as pessoas produzirem riqueza. Essa é a razão da grande crise. A acumulação primitiva do capital acontecia através da expansão do capital. Vivemos num momento em que o capital é incapaz de recuperar. Não se trata apenas de uma crise económica. Mas de uma crise de poder. Teórica e institucional. O sistema capitalista não está mais ligado à realidade. A realidade segue o seu caminho sozinha.
A deserção é a única possibilidade de fazer face ao sistema?
A deserção é sempre uma desobediência face à ordem. Prefiro o êxodo à deserção. A deserção existia na sociedade fordista. Era a sabotagem que os operários faziam. Hoje, o êxodo pode criar uma comunidade fora da capacidade de controlo dos capitais estatais. Por exemplo, os "indignados" espanhóis arranjaram uma outra forma de existir, uma nova organização social, para reclamar uma certa justiça distributiva e uma capacidade directa de se autogovernarem. Há muitas organizações onde isso pode acontecer... Lugares como os kibutz de Israel, onde as pessoas estão juntas na sua pobreza e na sua riqueza. Não sou fanático dessa experiências, nas quais a componente afectiva é muito importante, e não tenho grandes utopias sobre esse assunto. Mas acredito que as experiências de êxodo são fundamentais. É importante dizer: "Eu sou livre. Sou indignado; porque este mundo perdeu a sua razão produtiva e logo está corrompido. Já não creio na representação, porque essa representação é perigosa. Eu procuro construir coisas diferentes. Eu sou alter." Veja bem, os êxodos, como aqueles que partiram da Europa para os EUA, construíram formas formidáveis de comunidade. Eu estava em Espanha quando o movimento dos "indignados" começou. O movimento começou por exigir uma "democracia real já".
Mas não se pode comprar os "indignados" de Madrid aos revoltados de Londres...
É profundamente diferente; mas também existe uma unidade mesmo na diferença, porque continua a ser uma revolta contra uma crise que não podemos pagar. Além de que não aceito o julgamento do governo inglês de que eram uns assassinos, uns delinquentes. Isso não explica nada. Vi apenas os jornais, mas conheço bem esse tipo de movimentos. São pessoas que foram verdadeiramente expulsas da sociedade e reentram nela utilizando as formas que os campesinos usavam no Antigo Regime, ou seja, através da destruição. O que importa perguntar é: "Porque é que as cidades inglesas podem explodir a cada momento? O que é que se passa lá? Porque é que isto acontece em Inglaterra, o país do multiculturalismo e da Segurança Social?" A verdade é que o capitalismo não consegue organizar a capacidade produtiva dessas pessoas. Para compreender o que fazer na Europa é preciso olhar para a América Latina; porque a América Latina está a sair dessa forma da dependência global e a encontrar novas formas de organização. Em 2004/2005, o Brasil estava dependente do centro capitalista mundial. Hoje, o Brasil propõe intervir na crise europeia. O Brasil de Lula reconheceu que existiam elementos produtivos nas favelas ao financiar as famílias mais pobres. Lula conseguiu diminuir a delinquência entre os jovens e duplicar a massa de trabalhadores. Nas cidades brasileiras há uma transformação real.
Uma das coisas que diz é que é extremamente difícil reconhecer o inimigo. Será por isso que em Portugal não há neste momento grandes revoltas?
Não conheço bem a situação portuguesa. Mas penso que Portugal é como Itália. Há uma cultura de acumulação familiar, que chega e ajuda a sobreviver no momento da crise. Não é uma situação dramática, como a de Espanha ou a da Grécia. Mas isto são apenas hipóteses da minha cabeça.
Há uma solução para terminar com esta "omnicrise"?
Não sou profeta. Limito-me a analisar. Este homem já não é alienado. É um homem endividado, socialmente precário, com uma falsa representação política e entregue a sujeitos políticos que são apenas mediáticos. Não podemos definir uma tendência única na Europa. Mas sei que não há apenas uma crise. Há também uma renascença.
É um optimista?
Não. Sou realista. Considero o pessimismo uma verdadeira arma ao serviço do inimigo real. Sou ateu justamente porque não considero que o problema seja a morte ou o mal. O que é fundamental na vida é viver, estar junto. Sou um espinosista. Trabalhei bastante sobre Espinosa, sobretudo na prisão, porque trabalhar sobre Espinosa deu-me uma certa força para fazer frente às coisas irracionais e imbecis, como a estúpida repressão. Eu sou o que sou porque me reuni a outras pessoas. Não porque me isolei. Espero que haja uma consolidação a nível europeu, porque é o único terreno onde é possível lutar e transformar as coisas. A Europa é um importante terreno de luta. Como sabe, sou um antiamericanista, mas os norte-americanos jamais quiseram uma Europa unida. A Inglaterra é um exemplo, é uma espécie de avançado, um pouco como Israel no meio dos países árabes. Sou extremamente europeísta. A Europa é um espaço dentro da globalização onde podemos mudar as coisas.
[filósofo italiano, entrevista publicada no Expresso de 15 de Outubro]
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