"Sinto-te a faltar por entre os dedos, sinto-te a escorrer por entre as casas, sumir pelos bueiros das ruas nas primeiras chuvas. Tem chovido muito, de facto, e tu tens-te esgueirado pelos beirais com os primeiros pingos, tenho-te confundido muito com a chuva.
Não sei se fecho a torneira ou se continuo a descrever em branco os salpicos de luz... Tenho-te perdido muito, muitas gotas de ti.
Sinto-te a escorrer pelas montras das lojas, pelas janelas das casas, pelas tocas dos bichos, pelos postes preferidos dos cães.
Sinto-te faltar quando saio à rua e vejo que as crianças continuam a deformar o nariz contra as montras, que a peixeira da esquina continua a ter má pontaria para os caloteiros. Sinto-te longe sobretudo quando o meu nariz gela.
A verdade é que estpu a sentir-te como quem pisa chamas, como quem anda sobre cinzas. Sinto a tua falta como se houvesse um corte profundo numa fímbria qualquer de um corpo por inventar.
Mas continua tudo na mesma, só as crianças parecem esborrachar ainda mais o nariz contra as montras das lojas.
Tenho de cortear as unhas, mas
continua tudo na mesma, tudo na mesma,
continuo a riscar o chão sem querer
continuo a ter dores matinais, vespertinas e nocturnas
Continuo a deixar o leite ir por fora, por puro gozo.
Comprei uma vela de framboesa,
continuo a queimar os dedos
continuo a queimar
tenho tido muito frio
tenho tido os olhos cinzentos
tenho sentido a tua distância como quem acorda
a meio da noite."
Marta Loureiro, Edições Temas, 2001
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