sábado, outubro 27, 2007

Rodrigo Guedes de Carvalho: Canário

Nunca ninguém tem coragem de matar alguém até matar alguém pela primeira vez. Nunca ninguém julga ter a motivação suficiente para ceifar uma vida até aparecer o primeiro “bacano” disposto a sugar tudo o que, bem ou mal, se construiu. “Já viste como o medo nos dá para querermos magoar? E a tentação de foder um cogumelo destes”. Geraldo está preso por homicídio e fala assim. Directamente para o leitor. ”Tu gostas de mensagens, ó leitor, aposto”. Mas ele, que atirou pela janela o amante da mãe que não parava de a espancar, não tem mensagens para dar. Só a vaga sensação de liberdade que pode sentir quem, estando preso, será mais livre do que todos os outros, porque tem já muito pouco a perder.

“Canário”, título do mais recente romance de Rodrigo Guedes de Carvalho (RGC), é uma armadilha. Não há pássaros, nem asas, nem quase nada que não seja a falta de ar experimentada na escotilha em que vivem todos os que, um dia, recebem um aviso a dizer: a vida não é um conto de fadas. Aquele que é, talvez, o melhor livro do autor, é também o mais mordaz. Sobre os demónios que nos habitam e visitam. E sobre o que eternamente se desconhece das pessoas, por muito próximas que nos sejam. “Há uma cave dentro de nós. Nunca, mas nunca mesmo, saberemos tudo acerca do outro”. É sobre a desilusão. E os estilhaços da dor.

Como em quase todas as obras de RGC é preciso algum tempo para perceber onde quer levar-nos. Aqui, a história é contada numa plataforma tripartida. Geraldo representa só um lado do triângulo. É o rapaz que um padre há-de querer salvar, porque “quer continuar a acreditar que a maldade não está em nós, que é um corvo do escuro que às vezes nos fala ao ouvido”. O padre está tão preso como o presidiário: recluso da necessidade de salvar alguém. Acompanha, na doença e na morte, a mãe de Geraldo, prostituta que ambicionava ser enfermeira, e apresenta-o ao pai, escritor célebre, de casamento sólido, que um dia caiu na cama dela, engravidando-a sem querer. Sem saber.

Alexandre, escritor “que não gosta que lhe falem da palavra competição na literatura”, mas vive – tão preso como o filho, tão preso como o padre – no pânico de esvaziar-se e ser ultrapassado pelas novas gerações de escritores, é o segundo vértice do triângulo. E talvez aquele em que RGC mais se denuncia. Por muito injusto que possa ser querer procurar as angústias de um escritor na vida de um personagem. “Numa altura em que se usava uma prosa de mera observância, Alexandre acenava-nos de dentro das personagens e dos lugares. Um vírus hospedeiro, lancinante de acutilância”. Casado com Maria Antónia, nunca viveu para ela, mas com ela ao lado. Aliás, nunca viveu – mesmo no encontro com o filho que desconhecia - senão aquilo que poderia ser reproduzido em livro. E ela, a mulher que abdicou de ser o que era – e que já nem se lembra o que é – por causa dele, ela – tão presa como o filho do marido, tão presa como o padre, tão presa como o homem que amou – percebe que nunca viveu realmente.

Nem ela, nem a filha de ambos, Camila, o último ângulo do polígono. Veterinária, “bomba-relógio que não rebenta, vai rebentando”, tão apaixonada como a mãe pelo marido, tão presa como todos os outros, vê o casamento desmoronar-se quando o homem que lhe deu um filho não aceita que o filho seja, também ele, um presidiário – recluso no seu autismo.

“Canário” é sobre coisas “que acontecem e não matam, e também não tornam ninguém mais forte”. É sobre o que sobra quando as máscaras caem.

2 comentários:

  1. Estou absolutamente refém da escrita de Rodrigo Guedes de Carvalho. Sem ter lido nada dele antes, comprei "A Casa Quieta" orque gosto de romances sobre casas. E "casas". Ouvi-o a apresentar o Canário e tive a certeza que não pararia mais enquanto não lesse (e relesse) toda a sua obra. :-)

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  2. fiquei com vontade de ler...
    lá vou eu ter que roubar às horas de sono... :P
    *

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