Acabo de trabalhar às seis da tarde em ponto. Se bem que, para ser rigorosa, não possa dizer que nos últimos dias tenha exactamente andado a trabalhar. Com a cabeça perdida em parte incerta, tenho-me limitado a cumprir as horas supostas. Nada de que possa orgulhar-me. Desafio um amigo para um Martini; está em Santo Tirso. Outro; está em Lisboa. Outro ainda; só chega à noite. Desisto da convivência. E eles não sabem que se livraram do meu humor duvidoso. Indecisa entre apanhar o metro e aterrar numa sala de cinema ou entrar num táxi que me ponha em casa, deixo-me embalar como gota de orvalho na berma da parra. Ontem disseram que estou "mais gorda". Perguntaram: "Grávida?" Não! Mas não é por isso, por aparentemente estar mais gorda, gorda ao ponto de parecer grávida, que decido ir a pé para casa. Três horas de viagem.
Caminho pela cidade para me testar. Para perceber o que me prende. Ainda. Ou já não. Há três anos era capaz de jurar que tinha encontrado o meu lugar. Hoje, tenho sérias dúvidas. Desço ruas que desço todos os dias de carro e das quais, sete anos depois de aqui ter chegado, ainda não aprendi os nomes. Encho as sapatilhas de pó nas obras do Bonjardim. Acho que é Bonjardim e continua cheio de prostitutas: gordas, feias, velhas. Quase todas. Finjo que não reparo na tristeza do cenário e elas fingem que não reparam em mim. Atravesso, ao fundo, as grades de segurança e pondero sentar-me na esplanada que alguém montou na Praça D. João I. A praça que antes era do Rivoli e agora está alugada a Jesus Cristo. O Superstar. Lembro-me das vezes, tantas, que entrei no Teatro para namorar as coreografias de Olga Roriz que só havia em VHS. Nunca as comprei porque achava que um dia seriam editadas em DVD. Arrependo-me. A livraria do 3º piso já não existe.
Viro à direita, seduzida pela música que parece vir dos Aliados. Há um grupo qualquer a fazer yoga aos pés de Almeida Garrett e outro a montar uma grua, vá lá saber-se para quê. Os dois têm aparelhagens a competir, a cuspir decibéis. Menos interessante do que parecia. Mas a avenida agora é isto: um palco que se aluga às prestações para o que der e vier. Trepo a rua do Almada. Perco-me nas montras de luz, de ferragens, de chocolates. E no olhar triste das pessoas. Como podem todas ser tão cinzentas? O pó faz-me espirrar. O da rua de Ceuta, a do túnel.
Arrisco uns caminhos de paralelo e vou ter aos Leões. Gosto dos Leões, do Piolho, da mistura de pessoas, de raças, de cultos que se cruzam ali todos os dias. E continuo a gostar dos rituais universitários que começam a florescer nesta altura do ano, embora na minha altura não tivesse tanta certeza disso. Ou coragem para isso, o que é, para todos os efeitos, diferente. O Piolho. Fosse o Porto inteiro assim. Vivo. Mas a Sociedade de Reabilitação Urbana pode renovar prédios, mas não renova espíritos.
Viro outra vez à direita. Atravesso Carlos Alberto, nome da primeira travessa onde morei (obrigada, Pedro, pelo quarto e pelas conversas) e entro em Cedofeita. Os lojistas começam a colocar nas portas cartões a dizer "encerrado". A rua, apesar de pedonal, tem mais grafitis do que gente a esta hora. Corto na primeira à esquerda, para Miguel Bombarda. Assim, a olho nu, um estrangeiro adivinharia que esta é a rua das galerias de arte? Tento vasculhar as exposições inauguradas no sábado passado, mas o horário da arte é igual ao das mercearias: está tudo a encostar a porta. Até o Centro Cultural Bombarda. Por agora, melhor assim. Da última vez, quase perdi a cabeça. Mas como é possível que não se invista na vida para lá das oito da noite? [O telemóvel interrompe-me os pensamentos. Bingo! É o Pedro. Pergunta se vou ao casamento de 20 de Outubro. Como poderia pensar não ir? Guarda-me a fila da frente na igreja e uma cadeira ao teu lado na mesa. "Vais para casa a pé? És doida?", pergunta-me para corrigir logo a seguir. "Bem, sempre é uma maneira de emagreceres". Dois comentários na mesma semana. Devo estar gorda. Ponto final. ]
Fico ali a olhar para o céu só porque sim. Só porque é fim de tarde e gosto desta rua, mesmo velhinha, mesmo feinha, mesmo com tudo a fechar. Gosto do cheiro a morangos. E de ver as pessoas a caminharem para casa, aliviadas talvez por o dia ter chegado ao fim. É possível que diferentes pontos da cidade originem rostos diferentes? Contorno a esquina e sigo para a Rua do Rosário para mergulhar de cabeça no Gatos Vadios, colo quentinho de livros escolhidos a dedo por amigo de outras vidas guardado no peito. Leio edições antigas da Águas Furtadas com um caseiro bolo de canela na mão. E, à saída, tropeço num poema de Helga Moreira que já não posso deixar ali.
Estava dito e combinado
para a manhã seguinte.
No sítio em frente ao último
quarteirão e o meio dia por limite.
Ao que ia não sabia.
Soube depois
que essa presença lhe bastava.
Foi o que senti quando fiquei presa ao senhor com a idade do meu pai. O meu pai casou com a minha mãe faz hoje exactamente 32 anos. O livro, com ilustração de Ângelo de Sousa, e a ternura serão enviados amanhã pelo correio. À moda antiga.
Ando para trás, até ao Largo da Maternidade e descaio-me até à rua Júlio Dinis. É outro território, definitivamente. Já não há casas que parecem de bonecas; só prédios iguais aos prédios de cartão que construía nas aulas de trabalhos manuais. Subo até à Boavista para ver a Casa da Música onde já não me lembro de ir? Aproveito e, mais abaixo, desencaminho o amigo comunista dos cafés que, partilhados, fazem acender luzes em Beirute? Penso nisso, tentada, mas acabo por não me desviar. Calco, pela primeira vez, os cuidados jardins da Galiza, esses onde a Câmara gosta de colocar a sua propaganda. Olho para dentro das cervejarias: a Galiza de um lado, o Gambamar do outro, ambos ainda vazios, que a clientela dali, clientela como eu antes de me habituar a cozinhar, só chega fora de horas.
Não é grande aventura viver a olhar para trás. Mas continua a ser das universidades que me sinto mais estranhamente próxima. Ali, na linha das faculdades do Campo Alegre - onde fiz a prova específica de História no longínquo ano de 1995 -, misturo-me com a catadupa de alunos, alunos com aquela sensação de que o tempo passa devagar e de que o mundo lhes (nos) pertence. Dizem-lhes todos os dias que, quando acabarem os cursos, não terão emprego. E que se o tiverem, o melhor que lhes poderá acontecer é passarem a pertencer à geração "mil euros". Eles talvez pensem nisso, talvez até se preocupem e se assustem com a possibilidade, mas enquanto esse dia não chega, estão felizes. E sabe tão bem ver pessoas felizes. Pessoas com os olhos pendurados no ar em vez de os pregarem ao chão. Entram todos no mesmo café. Tenho saudades do que era, também, o nosso café. Onde entrávamos todos sem termos combinado nada. Onde estamos agora? Onde entramos?
Espio ainda a ementa do restaurante do Campo Alegre. Continua praticamente a mesma desde que o Luís me levou lá. Luís do mar de Moel, das margaridas amarelas, das palavras de açucar, da amizade a sério. [Foi há tanto tempo, lembras-te? Foi antes de trocares o Porto por Londres.] Alguém devia ensinar-nos, em pequenos, que as cidades não podem escolher-se pelas pessoas que as habitam, porque quando chegarmos elas podem estar a partir.
Começo a aproximar-me de casa. Já suada, já com a camisola atada à cinta. Já com a chave na mão. Tenho este vício de tirar da mala a chave muito antes de ver a porta. Rio-me quando passo na escola de condução onde estou inscrita há quase quatro anos e onde não coloquei os pés sequer meia dúzia de vezes. Se os stands vendessem asas em vez de carros, já teria a carta. Ao lado, abriu uma imobiliária. A casa, que só posso ter comprado num momento de insanidade, valeria, atesta uma fotografia colada na montra, mais 75 mil euros se estivesse empoleirada num terceiro andar. Perco a vontade de rir. E não é pelo preço. É por ter achado, cedo demais, que o Porto seria a minha última paragem.
Passo pelo meio das Condominhas, onde também já morei. Um T1 com vista para o rio que não me deixou saudades. A senhora idosa da frente assusta-se com o vulto que a persegue: eu. Não lhe levo a mal. À frente dela - à frente dela e à minha frente - estão cinco junkies, sincronizados, nas escadas do prédio da curva a cozinhar um caldo. Viver nas costas do Aleixo é viver paredes-meias com escombros humanos. Com o que resta de uma vida que talvez nunca tenha chegado a ser. E que perturba, mas nem sempre comove. Tropeço do André, arrumador que mais parece porteiro do prédio. Pergunta-me o que me fez de mal. Pergunta-me sempre isto desde que deixei de lhe dar moedas. "Nada, André. Não fizeste nada."
Acciono o comando do portão. Lanço um olhar panorâmico sobre o jardim que me acolhe de flores ainda abertas e respiro fundo com esperança de que algum sabor a privilégio me diga que isto me basta. A lua está cheia e sentada em cima da minha cabeça. A Chiara Mastroiani já está, outra vez em repeat, graças a um doce presente recebido durante a tarde, a sussurrar Au parc de Alex Beaupain. A sala continua a cheirar a incenso. E o telemóvel volta a tocar. "Última quinta-feira do mês no Batô. Está lá a velha guarda toda. Vens?"
Não vou. Seria perfeito se o Porto fosse a cidade onde quero ficar. E não é. Já não é.