Até poderiam ser mais, mas o número anunciado foi 666. 666 almas em transe durante quase duas horas no Hard Club, em Gaia, a assistir ao início da tournée dos Moonspell, banda nacional de heavy metal a apresentar o seu sétimo álbum, "Memorial". E eu lá no meio, em transe com o transe dos outros, a perguntar-me o que estava ali a fazer e depois timidamente rendida ao palco-altar diante do qual as almas citavam de cor, qual oração, a poesia de Fernando Pessoa.
Uma nuvem negra no chão de cabeças sincronizadíssimas como um baloiço para a frente e para trás, os braços erguidos ao deus-vocalista Fernando Ribeiro, que lhes dizia que sim, que eles são os maiores e que só por eles alteraram o alinhamento, que hão-de voltar a encontrar-se noutros palcos, noutros altares. E eles, os braços, a exibir códigos de rituais que só eles saberão, o peito e as mãos abertas a acolher as dádivas que perpetuarão na memória o momento: as baquetas do baterista, as punheiras deste, a t-shirt do outro. E no fim de tudo, da batalha musical repercutida com a força de uma bola de fogo disparada a toda a velocidade contra os corpos, eles saem, ordeiros, e deixam-se arder, talvez por dentro, em combustão lenta.
(Os amigos-amigos-mesmo não têm medo de nos levar; os amigos-amigos-mesmo fazem com que não tenhamos medo de ir; apresentam-nos ao inóspito de que julgamos não gostar só porque desconhecemos e enriquecem-nos.)