Se Coura fosse um lugar, seria um daqueles lugares onde desejaríamos ficar para sempre. Mas Coura não é um lugar, é um território mental. Não é seguro que o que lá se passa não passe apenas na nossa cabeça. Ou nesse canto mais fundo e insondável - e infalível - chamado coração. Não vale a pena experimentar sentir o que lá se sente noutro festival. Não funciona. Coura põe-nos a levitar como naquele momento inicial em que um poderoso medicamento nos tira a dor. E, desta vez, foi como ver um filme num cinetoscópio, em que é quase impossível isolar as posições.
Talvez os Chvrches não tenham dado o melhor concerto do festival, mas deram seguramente um concerto mil furos acima do que qualquer jornalista escreveu. É um dos nossos concertos do ano, também porque uma banda é a bagagem que nos dá, e na nossa tínhamos longos meses de perseguição da digressão europeia destes escoceses em busca de um concerto que não estivesse esgotado (estavam todos) e só deixámos de procurar quando foram confirmados em Coura. Logo em Coura!
Lauren Mayberry, com aquela voz de desenho animado, miníma na estatura, é enorme porque não precisa de freakshow nenhum para nos pôr a dançar freneticamente do início ao fim, a cantar do início ao fim. Era impossível ter sido melhor e eu quase gostava de a ter descoberto só ali, para aquilo tudo ser ainda mais bonito. Que pena que não tenha contaminado a encosta inteira. Mas tudo bem, Coura é uma espécie de mapa da caça ao tesouro e é sempre possível encontrar mais do que um no mesmo palco. Ou no palco do lado.
Mas não, não foi o excessivamente juvenil Mac DeMarco, apesar da boa imprensa e de todo o hype criado em torno dele.
Ao contrário, um homem que aparece em palco a parecer o Vincent Gallo em novo só pode ser um caso sério. Se ainda por cima nos atira logo para dentro do Pulp Fiction e nos põe automaticamente a sorrir e a menear as ancas como Uma Thurman naquete twist do Chuck Berry (ou como Manuel Justo dos Sensible Soccers), isso é amor à primeira vista. Foi o que sentimos quando vimos Brooks Nielsen dos Growlers, empatia total e muita temperatura a subir. E ainda agora podíamos lá estar a dançar com ele.
Depois, há sempre pelo menos um momento epifânico em Coura, daqueles que ajudam a entender por que razão ficaríamos lá para sempre.
Este ano houve dois: Hamilton Leithauser a cantar I'll never love again, I'll never love again, I'll never love again, toda a gente a cantar I'll never love again, ninguém pode em consciência querer cantar isto, mas toda a gente cantou em coro I'll never love again e foi absolutamente de arrepiar. E Cheatahs, naquele Fall (que mesmo remetendo um bocadinho para Song for Zula dos Phosphorecent, a epifania do ano passado) atirou-nos para um lugar qualquer dentro de nós que só é possível descobrir ali. Há concertos de ir às lágrimas em Coura. Estes foram, e foram dos mais memoráveis desta edição.
Mas também há concertos inesperados, que nos deixam com um Hã?! na cara e nos engolem e contagiam. Goat foi um maravilhoso e total freakout. Coura é descoberta, mas também é memória. Isso explica a rendição-lata-de-sardinhas em Beirut (mesmo se já os tínhamos visto em 2011 no Meco e percebido que o concerto não é bem o que gostaríamos que fosse e desta vez tenha sido igual - igual não é mau, é só menos) e não explica o desapontamento de tantos com James Blake.
Raios, ele deu-nos a case of you que não nos deu no Primavera, deu-nos um concerto para ouvir (sentir?) de olhos fechados e no fim ainda nos estendeu como que uma hóstia mágica para uma comunhão de paz. E nós viemos embora dali só a rezar para que dure. Talvez só mais um inverno. Talvez só até ser Coura outra vez. Coura é amor e o amor é cego, mas não é surdo. Talvez tenha sido a melhor edição de sempre. Muito e muito obrigada.
PS1. Já vimos vários concertos dos Sensible Soccers, já os vimos em Coura, e podíamos vê-los alegremente todos os dias. Mas este ano, às seis da tarde (às seis da tarde?!? Sensible Soccers?!?) foi impossível chegar a tempo. Caso contrário, teria sido um dos nossos concertos. Sensible Soccers é sempre um dos nossos concertos.
PS2. Concertos ao fim da tarde é dureza. Chegámos a duas canções do fim de Seasick Steve e, por razões outras, a igual distância de The oh sees. Duas perdas imperdoáveis, consta.
PS3.: Nunca consegui ver um concerto dos Linda Martini até ao fim. E acho que nunca vou conseguir. O concerto começa, tudo bem, o baterista começa com aquele paleio e eu começo a ter vontade de sair e saio, tem mesmo de ser. Não se aguenta aquilo.)
(Nos últimos 16 anos falhei uma edição de Coura, treze das quinze foram vividas contigo, José Miguel Gaspar. Pode mudar tudo e até pode acabar o mundo, como canta o Herman, mas uma vida inteira juntos já ninguém nos tira. És o melhor companheiro rock do mundo.)
Coura é tão tão isto...para mim imperdível desde os 15
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