Meu amor,
Não estranhes que a pele de outro não tenha um cheiro agradável! Nem mesmo esse que agora arrastas pela mão ao longo de um corredor e parece contente porque o levas ao cinema. Não era a minha pele, meu amor, era o meu coração que cheirava bem, quando te encostavas a mim. Não era a minha boca que te beijava bem, meu amor, era o meu coração e o meu hálito fresco de nada ainda se ter partido por dentro. E escrevo-te agora de uma cidade distante, moribundo, gasto e a recuperar-me pelos beijos e pelas palavras de uma outra mulher, porque somos e seremos sempre outros que outros hão-de descobrir.
Ninguém pode saber quem é, depois de tanto tempo a ouvir dizer sempre o mesmo que se é. Eu só era aquilo que conseguias ver, mais nada. Se dizias que eu não prestava, eu não prestava; se dizias que eu prestava, eu prestava; se dizias que eu era alto, eu era alto; se dizias que era baixo, eu era baixo. É por isso que ficar sem ti, foi ficar sem identidade. Não te perdi quando partiste, perdi-me! Agora, aos poucos, de boca em boca vou me descobrindo. A cidade tem um rio que a atravessa, onde os jovens ao fim do dia se sentam em grupos com as suas garrafas e, por vezes, passam uns aos outros as bocas e as mãos. A cidade tem museus que, sem ti, não visito. E, com esse tempo livre, ando pelas ruas, pelas avenidas, pelas pessoas e pelos cafés, perdido como sempre, pelo menos até encontrar uma outra pele que me saiba tão bem quanto a tua e me diga quem sou.
Porque o amor, meu amor, é esta necessidade que o humano tem de lhe dizerem quem ele é. A necessidade de acreditar no que lhe dizem; a necessidade que o humano tem de acreditar no que uma pessoa lhe diz. Meu amor, sem amor somos apenas tudo aquilo que podemos ser e não aquilo que somos. Não te admires tanto de estranhares a pele do outro que levas pela mão, meu amor, ele não te pode dizer quem és. Perdoa-lhe, assim como eu te perdoo.
O teu.
Paulo José Miranda, Todas as cartas de amor
[Não há cartas de amor a fazer de conta. Pode inventar-se um romance, mas não pode inventar-se uma carta de amor, acho. Por isso, é preciso coragem para publicar esta colecção. Sobretudo, porque não são cartas trocadas como as de Anais Nin e Henry Miller, ou como as de Fernando Pessoa e Ofélia. São cartas sem resposta, o que as torna ainda mais nuas. Escritas por um homem, ainda por cima. Neste tempo.]
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