sábado, junho 22, 2013

Rui Nunes: A boca na cinza


"o mundo, de vez em quando, é-me indiferente, são volumes e espaços que o meu corpo não compreende, aleijo-me, tenho braços e pernas cheios de nódoas negras, arranhões nas mãos, hematomas, lambo as minhas feridas, como dantes se dizia que u...m cão lambe as suas feridas, sei o gosto das crostas, do sangue, dos coágulos, da pele tensa sobre a dor, se houvesse deus, eu não seria mais do que um animal a passar a língua pelos joelhos, a sujidade que se acumula neles, porque estão perto da rua, do alcatrão, da terra, dos passeios, sabe-me sempre a pó a minha pele, e em pó me hei-de tornar, ou num rolo de cactos secos, no deserto dos filmes, que se move pelas ruas vazias até parar contra a parede, e um rosto surgir, mudo, como se o silêncio o abrigasse, ou fosse o tecto da casa, ou a parede que desce num movimento de braços,

- a harmonia apaga-nos, apaga, afaga, isto é, lima-nos até sermos uma nota consonante, uma raiva que outros lábios possam dizer.
(...)
- quando olho as pessoas vejo-as sempre mortas,
(pausa)
- entram no teu olhar e ficam vagarosas a morrer?
- não. É já mortas que as vejo
- mesmo as que amaste?
- nunca amei ninguém
- não acredito
- só poderia amar quem eu não visse morto. E isso ainda não aconteceu."

["A boca na cinza" tem dez anos. Penso muitas vezes que o melhor de Portugal são os escritores. Rui Nunes é mais do que obrigatório, é imperdível]

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