segunda-feira, junho 03, 2013

O tempo do tempo todo que não se soube como passou



Podia ser o fim de qualquer amor. É sempre nos mesmos sítios. Diz que sim. Na alma bate a mesma chuva pesada. O tempo levanta-se contra quem o tem. O riso não separa os dias uns dos outros. Está o coração entreaberto. A vida nota-se em demasia. A vida nota-se em demasia numa sala escura. O amor chama muito. As pessoas deixam-se prender pela luz. Fazem fogo fácil. Param. E não fica nada. E não fica nada daquele dia branco. Um dia olhou para as mãos de quem amou e já não se viu dentro delas. Agora lembra-se do dia em que quis ser igual a ela. E do que nunca lhe disse. "Se te visses uma única vez, se te sentasses à tua frente e te ouvisses a falar, se te pudesses segurar, percebias porque é que as pessoas se apaixonam por ti". Às vezes a verdade é a última coisa que se pode dizer. Ele não disse, ela não ouviu e nada ficou. Nem sequer para lembrar. Quando a paixão é tão grande nenhuma memória presta. Fica só muito tempo. Fica só muito tempo do tempo todo que não se soube como passou. O amor é um trabalho de atenção. Diz que sim. Basta um abrir e fechar de olhos e perdeu-se. E o coração lançado à rua, desempregado de repente. Num dia de sol. O amor é uma força que não presta para mais nada. O que é que se pode fazer? O que se pode fazer quando o amor nos larga? De repente há tempo para ler, tempo para os amigos, tempo para o trabalho, tempo para o olhar. Diz que sim. Há tempo para tudo, mas é tudo sem querer. E depois um dia acorda-se, vai-se à mesa, lê-se a última página do último livro que se tinha para ler, abre-se a agenda, e verifica-se que tudo está em ordem e que se está finalmente em dia. Em Dia. Em dia de inverno, no fim de uma história. Sentado num banco de Hotel quase vazio, com um livro ao lado. O amor é uma forma de organização. Ocupa, arruma, decide por nós. Telefona-se antes de dormir, almoça-se de costas para o mar, discute-se tudo o que acontece. O amor. O amor tem os dias contados. Não se pode contar com a força dele. Não se pode contar uma verdadeira história de amor. Quem é que a queria ouvir? Só uma história passada com outras pessoas. Só uma história parada antes de chegar ao fim. Os sítios sabem mais que as palavras. Diz que sim. A coisas acontecem mais em elas do que em nós. As janelas altas estão todas a falar. As janelas altas estão todas a falar durante o tempo inteiro que lá está. Quem sabe o que aconteceu? A luz entra a matar. Diz que sim. Diz que vai. É um dia de semana. Não há problemas. Não há atrasos. É um dia novo. Diz que sim. Pensando bem. Com a vida inteira à frente como se nunca tivesse amado. Não. Não como se nunca tivesse amado. Na verdade como se nunca tivesse sido amado. Porque afinal, à coisa mais pequena da vida morre a coisa maior.

Miguel Esteves Cardoso
Independente, 1989

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