sábado, junho 29, 2013

Guilherme de Melo: Como um rio sem pontes



"Qual de vocês não quis lançar, por sobre o rio, a ponte? Não, não quero ouvir mais aquele relógio - mas ele continua a marcar o tempo, impiedoso, cronometricamente exacto. E não são já horas o que nele me resta para ouvir; simplesmente minutos, talvez apenas segundos. Mas não é medo o que sinto. Não é angústia, sequer. É somente pena, uma pena imensa e funda e magoada, uma pena infinita de já não ter tempo de vos dizer tanta coisa que desejaria ter-vos dito e nunca disse.

(...)

Estou sozinho e o coração galopa-me cada vez mais descontrolado no peito. Sinto-o como um corcel que toma o freio nos dentes, de encontro às costelas que já nenhum tecido protege, nenhuma carne suporta. Dói-me, o seu galope. Abro a boca para que o ar entre, para que o ar chegue até aos pulmões desfeitos, mas o tubo que me desce até à traqueia desloca-se, sinto que me arranha por dentro, quero tossir e sufoco. É como se uma mão invisível me tapasse a boca, me comprimisse as narinas. Só o coração não pára, neste galope que o irá fazer estoirar contra a montanha. A montanha que está cada vez mais perto, a montanha em direcção à qual caminho pela mão do Timbo.
Mas antes de começar a subi-la quero dizer-te ainda qualquer coisa, pai, sei que tenho ainda uma coisa para dizer-te, mãe, e olho para trás uma vez ainda, e olho e vocês estão já longe, cada vez mais longe, mas eu queria dizer-vos, mas eu tenho que dizer-vos que..."

[Li este livro em 1993, numa altura em que talvez não tivesse ainda idade para o ler. Porque fiquei muito triste, durante muito tempo, depois de o ler. Mas talvez também por isso Guilherme de Melo me tenha então ganho a para a vida. Este é o meu livro preferido dele, livro a que voltei milhares de vezes, é sobre a morte e é belíssimo. Hoje é um dia triste.]

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