Por uma vez, os líderes europeus deviam fechar-se numa sala sem ser para falar de uma moeda. Mas para falar de sociedades. De Nações. De europeus. Pode o euro não implodir se um país explodir? Só outra política europeia salvará a própria Europa. De outra forma, a bandeira azul estrelada que já não representa ninguém passará a não representar nada.
O euro vive da Europa, não o contrário. Mas estamos tão consumidos nos problemas orçamentais que não vemos o retrato largo de um continente a desfazer-se. Os radicais temeram a guerra entre povos, mas não previram a ruptura dentro dos povos. Mas o que se está a passar em Espanha é muito mais que um aproveitamento político de líderes regionais em manobras de diversão.
Até os tecnocratas estão aterrorizados com o protesto violento em Espanha, com o descontrolo na Grécia, com as manifestações tomba-políticas em Portugal. Num editorial há dois dias, o "Financial Times" dizia que Portugal atravessa um caminho estreito entre democracia e reformas. É uma perigosa dualidade: ou democracia ou reformas. É disto que estamos a falar.
Em Madrid, a polícia de choque sova os desordeiros. Cinco regiões estão sem financiamento. Rajoy anuncia alvoroçado mais um plano de austeridade e em silêncio sucumbe ao fracasso de um resgate. A Catalunha ameaça com secessão. O País Basco entra em greve geral. Atenas parece cenário de guerra civil. Lisboa desfila desempregados ao lado de tributados. É isto a Europa? Uma terra sem esperança, sem justiça, uma União entre sobreviventes que se alimentam dos que vão caindo como Saturno, pintado por Goya, comia os seus filhos?
Há demasiado tempo que não queremos ser uns como os outros. Portugal não é a Grécia, Espanha não é Portugal, o norte não é o sul, o centro não é a periferia. Somos um grupo de Estados que se definem por quem não são. Estamos na Europa, mas não somos Europa.
A crise sempre foi da moeda única, mas rompeu na periferia, por fragilidade específica dos países da periferia. O facto de o Norte nos tratar como ovelhas ronhosas não é apenas indigno. É provocatório. E é errado até para quem se julga próspero. Porque a política europeia para os aflitos está a falhar.
É claro que Espanha, Grécia e Portugal devem enfrentar austeridade. Mas mesmo fazendo tudo o que se lhes pede, como mostra o caso português, sem sementes de crescimento as economias entram em espiral recessiva e em insustentabilidade da dívida. Hoje, não é só Portugal que subitamente enfrenta um problema de credibilidade externa e o seu Governo um problema de credibilidade interna. É também a política da troika que testa a sua credibilidade técnica.
São precisas políticas alternativas que estão além das possibilidades do Governo. Políticas económicas integradas que não sejam simultaneamente contraccionistas em todos os Estados, como há muito defendem economistas como Krugman. Financiamentos a Portugal a prazos mais longos e com juros mais baixos, como a Alemanha teve depois da II Guerra Mundial. Capitalização de bancos a taxas mais baixas, com o compromisso de que estes financiem empresas, como defende Vitor Bento. E sim, tempo, mais tempo.
O que está em causa é a sobrevivência das economias portuguesa, grega e espanhola. Mas é também a vida de quem lá anda. E a Europa, que tão justamente critica os onzeneiros americanos pela fabricação da crise, responde afinal com submissão à finança.
Democracia não pode ser o oposto de reformas e, se o for, que prevaleça a democracia. Essa é apenas uma das perfídias deste tempo. Não há erros de comunicação, há falta de política. As Nações são mais que devedores. A sociedade é mais que a economia. A paz nunca é troca de uma moeda. Mas quem não perceber que a Europa está a viver um tempo histórico de desagregação, impiedosa e incontrolável, só acordará quando ouvir a sua vidraça estalar.
Estreou ontem, em Lisboa, uma exposição, O Sonho de Wagner cujo nome se decorre da tetralogia "O Anel de Nibelungo", que "refere como a sociedade se torna refém do poder e do dinheiro e, como isso é destrutivo". Não é a falta de dinheiro, mas de esperança, que está a aniquilar esta construção a que chamámos União Europeia. Gregos, irlandeses, portugueses, cipriotas e espanhóis são carne sem canhão. Sem coesão europeia e uma política integrada até o degredo falhará, o fim da moeda única será apenas um capítulo menor da História. E a bandeira azul estrelada será a mortalha de um continente fracassado.
Querida Europa, somos nós. Está aí alguém?
[Hoje, Jornal de Negócios]
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