quarta-feira, maio 02, 2012

"Quando o cinzento é a cor da moda, o arco-íris é um insulto"


Frei Fernando Ventura, ontem, na SIC N. Maravilhoso!

"Não é tempo de pendurar as esperanças no senhor do tempo, num qualquer messias. Este tempo é um ponto de chegada, um momento de antítese dos ismos todos que não funcionaram à espera da síntese final. É um tempo em que a nossa missão é ser gente com gente para que cada vez mais gente seja gente. É o tempo da serenidade consciente, que terá de levar fatalmente à cidadania praticante. Eu tenho muito medo dos cidadãos não praticantes. É tempo de mobilizar a urgência urgente deste tempo. Não são os nossos governos que nos governam! Nós vivemos numa fatalidade edipiana de termos de bater no pai, mas o pai é pobre. Por ali não haverá salvação.

Quando vi as imagens do Pingo Doce, fiquei triste e alarmado. Vi isto na Venezuela, com o Chavez, exactamente o mesmo tipo de reacção. Fiquei com esta imagem como um ícone, ou como um contra ícone, uma mensagem de sinal contrário daquilo que é uma das urgências a descobrir hoje. Desde logo, querem convencer-nos que economia e finanças é a mesma coisa - e não é. As finanças serão uma pequena parte daquilo que é a economia, a gestão da casa, que tem de ser uma casa comum. Estamos confrontados com um discurso de inevitabilidades - que não existem! Nós, enquanto seres humanos, independentemente das nossas sensibilidades políticas ou religiosas ou seja o que for, nós enquanto seres existimos entre dois abismos de solidão: nascemos sozinhos e morremos sozinhos, ninguém nasce por nós e ninguém morre por nós. O desafio e o bloqueio que neste momento nos mata... porque a crise não é económica, a crise é racional acima de tudo. A crise tem a ver com isto: quem és tu para mim? Nestes dois limites de solidões, aquilo que se nos pede enquanto seres humanos é que sejamos capazes de criar redes de solidariedade. Desculpem lá puxar a brasa para a minha sardinha franciscana: nós vivemos um mito urbano quando para se falar dos franciscanos se continua a falar da pobreza franciscana, como se Francisco de Assis fosse tolinho da cabeça e como se alguém no seu perfeito juízo fosse capaz de optar por um não-valor. O que Francisco traz à História é uma opção pela fraternidade, o que é outra coisa - e tem consequências. Tem consequências na relação com o outro, tem consequências naquilo que tem que ser - e isto é que nos vai doer muito - o milagre que pode levar à saída da crise. Não quero proclamar que tenho a chave para a saída da crise, mas tenho pelo menos uma pista de reflexão. Ou pelo menos uma ideia que gostava de partilhar. Há uma ideia que me arrelia muito: nos últimos tempos, temos uma sociedade marcada por uma partidarite aguda, tribalizada. E a partidarite é uma inflamação da democracia. Vivemos esta falta de ideias e tantas vezes damos conta que em vez de termos uma linha de pensamento, só temos uns gatafunhos ideológicos que nos matam e que nos prendem, que não nos deixam depois chegar a esta que pode ser uma primeira pista de reflexão para nos entendermos e para nos situarmos. Porque quando o cinzento é a cor da moda, o arco-íris é um insulto. E nós estamos cinzentos, demasiado cinzentos. 

Deixem-me deixar esta ideia bíblica: nós, em alguns arroubos místico-gasosos, ficamos muito alarmados e muito agitados interiormente com a multiplicação dos pães e dos peixes. Se nós percebêssemos o que está ali, se nós percebêssemos o desafio de construção social e de acusação contra o egoísmo cego do capitalismo que mata a História, ou dos ismos todos, quaisquer que eles sejam, quando a pessoa não está no centro, e que matam a História!... Sejam totalitarismos de direita ou totalitarismos de esquerda (mantendo-nos ainda nesta linguagem primitiva de separações destes géneros). O que aconteceu naquele momento? A cena é descrita como tendo sido ao final da tarde, imensa gente, tudo cheio de fome, é preciso dar de comer a esta gente. A resposta de Jesus à cena foi: "dai-lhes vós de comer". Pânico! Como é que vamos arranjar de comer para esta gente toda? Quem teve a solução ali naquele momento? Um catraio, alguém que não tem nada a perder. Só uns pães e uns peixes. Só houve multiplicação porque houve divisão. A solução tem que passar por aqui: é preciso dividir para multiplicar e é preciso somar sem subtrair nada a ninguém. O segredo está aqui. A chave está aqui. E por aqui pode construir-se a esperança. Por aqui pode criar-se redes de relações, por aqui pode dizer-se às pessoas que a esperança é possível. É preciso organizar esta esperança. 

Eu, hoje, vi as cenas do Pingo Doce e vi as cenas das manifestações das duas centrais sindicais. As manifestações têm uma função catártica, porque é preciso gritar e é preciso explodir e é preciso libertar energias. Mas depois do final da manifestação, depois de enrolar a bandeira, o que é que eu faço com aquilo, para onde vai a minha desesperança? Eu que deixei a minha centralidade, e aqui voltamos a Emaús, eu que deixei a minha esperança pendurada na centralidade de uma Jerusalém qualquer, e vou a caminho da minha Emaús do desespero. Hoje não são só dois que vão a caminho de Emaús do desespero, são milhões no mundo inteiro, que perdem o emprego, que deixam de poder satisfazer as necessidades da sua família, onde a esperança desaparece. São às centenas os que morrem como gatos afogados no mediterrâneo a saltar do Norte de África para chegar a Lampedusa, à Sicília, às costas do Sul de Espanha. É este subir, pegar no cachorro para ver o muro do outro lado. Quem tem a História nas mãos somos nós. As revoluções nunca se fazem pelas estruturas, as revoluções começam por baixo contra as estruturas. As estruturas são coisas estáticas, têm um medo desgraçado de serem tocadas. Isto é a piscina de água choca, está toda a gente com a água por aqui [pelo pescoço], quando alguém faz onda, todos gritam: não faças ondas! Todas as estruturas sofrem deste mal.

Hoje, depois da manifestação, pensei: para que Emaús vai esta gente? Que esperança podemos trazer à História? Será que as centrais sindicais, a Igreja, as associações do bairro, não têm uma responsabilidade social? Têm! Têm que ter! A nossa resposta e o nosso grito não pode ser só enrolar a bandeira até à próxima manifestação ou até à próxima greve geral. É preciso sermos imaginativos e fazer outra coisa. Deixem-me ser profundamente demagógico agora: nós estamos todos com a corda ao pescoço. De cada vez que metemos gasolina, os nossos carros andam a impostos, 84% do que metemos no carro são impostos e aquilo anda. E os preços estão a subir, não porque a matéria prima esteja a subir, mas porque o consumo está a baixar. Isto é maquiavélico, um ciclo vicioso. Temos quatro companhias em Portugal a vender gasolina. O Governo já disse, pela activa e pela passiva, várias vezes, que não tem poder para mexer naquilo. O lobi está instalado. Mas nós temos maneira de mexer. Imagine que durante uma semana a CGTP e a UGT dizem: esta semana ninguém compra gasolina e gasóleo em duas destas marcas. Aqueles senhores, ao fim de uma semana, terão os preços mais baixos. E as outras duas vão ter que baixar também, por causa da concorrência. De cada vez que vou na auto-estrada, sinto-me insultado. Porque é que gastaram aqueles milhões a colocar aqueles painéis sobre a informação de preços quando os preços são todos iguais? Isso é brincar!

Ou nos galvanizamos ou nos albanizamos! Não há via do meio.

2 comentários:

  1. Cinzento de facto. Isto hoje está muito cinzento. Por causa do que assistimos - envergonhados, impotentes - nas tais cenas do Pingo Doce, pelas bandeiras que sabemos se enrolarão em complexos partidários e de simpatias.

    Cinzento. Porque a Solidão Ideológica e Antropológica é dessa cor. Por mais Arcos Íris que inventemos e criemos, insultando assim os outros com a nossa positividade, o nosso direito ao optimismo, os nossos pequeninos gestos de solidariedade que sabem sempre a pouco - aos olhos dos outros e nas mãos de quem recebe.

    Hoje, ao cinzento, junta-se a água. Da chuva para uns e das lágrimas dos que ontem gastaram o dinheiro do mês e sabem que a meio do mesmo não terão nem o dinheiro nem os bens que adquiriram e a certeza que a felicidade de ter durou pouco, muito pouco.

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  2. O que me custa não é a prepotência dos senhores do Pingo Doce, numa chalaça com a população ávida de consumo, não posso, sequer, dizer que não fazia o mesmo no lugar deles, fazia, é golpe de génio, com péssimo timing, que lhes permite transformar dia morto em dia rentável. O que me custa, realmente, é a ausência de consciência, de unidade, de comunhão, de sermos, todos e não individualmente. Não se pode pedir que quem correu desenfreadamente para o Pingo Doce na esperança de consumir um pouco mais tenha consciência do que fez, mas pode-se pedir, aos que tem a consciência do acto vil, que se insurjam e que combatam isso. Há muito tempo que defendo que não temos elites, intelectuais ou não, e que sem elas o Maio, seja ele de que data for, é um acto muito difícil e de que precisamos, desesperadamente, mais do que de pão para a boca.

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