O poder inevitável, por Pedro Lomba
I
Medida por Medida pode bem ser considerada a peça mais explicitamente política, no sentido moderno, de Shakespeare. O seu ponto de partida é uma típica cedência provisória do poder. Um governante, o Duque de Viena, prepara-se discretamente para sair da cidade em missão diplomática e tem de escolher quem o substitua durante a sua ausência. Hoje diríamos que o impedimento do Duque requer um interino. Viena não pode ficar sem governo, entregue a si própria e à crescente anarquia dos seus cidadãos. Mas, ao contrário das nossas sociedades políticas que definem à partida quem poderia ser esse interino e por que meios assumiria o cargo, aqui a escolha é da inteira liberdade do Duque. E, ao contrário de nós que também não confundimos papéis – o interino é sempre e só um interino –, o Duque de Viena não ignora que a cidade passará a ser governada por outro. Mesmo que transitoriamente, o seu poder ficará nas mãos de outro.
No primeiro diálogo com Éscalo, logo na abertura da peça, o Duque torna claros os termos de um dilema, que pode ser caracterizado pela contradição que sempre existe entre a teoria e a prática do poder. Ao perguntar a Éscalo se ele aprova a escolha de Ângelo, o Duque não quer saber se este fará boa figura, nem se procederá com zelo e competência. A preocupação do Duque é que Ângelo possa fazer bem a figura dele, encarnando assim “o seu próprio poder”:
– Parece-vos que ele fará bem a minha figura?
Digo-vos que com especial cuidado
O elegemos para velar a nossa ausência,
Usar o nosso terror, vestir o nosso amor,
E dispor no seu mando de todas as artes
Do nosso próprio poder.
Visto desta perspectiva, Ângelo é um executor da vontade do Duque, de quem recebeu o cargo para ser “inteiro” como ele, para usar do seu “terror” e do seu “amor”, para aplicar a “pena de morte” e o “perdão em Viena”. A medida de Ângelo só pode ser a medida do Duque. Não receberia um poder que pudesse proclamar seu.
Mas esta insistência do Duque nas “artes” que vêm com o poder já nos revela aquilo que mais o preocupa. O Duque cedeu o poder a Ângelo. Para aquilo que mais importa, é Ângelo que agora passa, de facto, a exercer o poder. A entrega do governo a um delegado temporário está carregada de significado político. Ângelo, não o Duque, assumirá a partir daí visível e publicamente os encargos do poder. Será ele o responsável por aplicar as leis e por distribuir justiça ou injustiça em Viena, pois não encontramos aí qualquer separação moderna entre o poder executivo e o poder judicial: o governante é ao mesmo tempo o mais alto magistrado da cidade. Há um só poder, como há um só rosto do poder. O poder de punir, reprimir, julgar. Este poder, na sua visibilidade, na sua presença, existe para ser exercido com todos os custos e sacrifícios inevitáveis. Terá o delegado Ângelo melhores condições do que o Duque para “no seu mando dispor de todas as artes do poder”? Terá o Duque escolhido Ângelo para que este realize aquilo de que o Duque não é capaz: o exercício e a decisão difícil do poder? A ambiguidade de Medida por Medida enquanto teatro da experiência do poder reside nestas perguntas. Pode alguém que tem o poder encontrar formas de escapar ao seu exercício?
II
O diálogo inicial com Éscalo, compreendemos agora, foi retórico. A preocupação do Duque não está tanto em garantir que Ângelo cumpra bem na sua ausência. Pois ficamos a saber que a saída do Duque não passou de uma encenação. O Duque não saiu, está em Viena e disfarçou-se de frade para poder acompanhar Ângelo. O Duque quer testar menos Ângelo do que o povo. A transferência do poder para o delegado é uma hábil estratégia política do Duque, que pretende afastar-se dos “holofotes” para fugir momentaneamente ao fardo do governo.
Viena, ao fim de vários anos de domínio, está afundada na libertinagem e na indisciplina. As leis não são respeitadas. Os costumes estão dissolutos. Viena precisa de governo. Para alterar este estado de coisas, será precisa uma força tal que restitua o sentido da lei e da obediência, que proíba e sancione a “lascívia”, como fará Ângelo sentenciando imediatamente o pobre Cláudio. Chegados aqui, é difícil evitar paralelos entre esta Viena em decomposição, que tinha leis duras, e o Portugal financeiramente assistido de hoje, que igualmente as tinha:
Bons freios e bridões em pilecas rebeldes,
Que nestes anos deixámos fugir da mão.
O Duque está cada vez mais afastado do povo, cada vez mais isolado nas vestes formais do seu poder, com os quais não parece confortável. A sua renúncia e a transferência do poder para Ângelo assinalam o fracasso da sua governação:
Amo o povo,
Mas não gosto de me exibir diante deles.
Sabe que amei sempre a vida retirada,
E tive em fraca conta estar em assembleias.
Incapaz de governar, de pôr ordem na cidade, de fazer cumprir decretos e leis, escondido, quais os caminhos que restam ao Duque? Poderia demitir-se, para usarmos a nossa linguagem democrática, mas isso seria uma confissão imperdoável de derrota; ou poderia endurecer o seu poder com uma nova e mais implacável presença, mas aí passaria a ser visto como um abominável tirano e perderia todo o respeito e afecto do povo.
O Duque opta por uma terceira estratégia, a de recorrer a um delegado com reputação de “austero” para impor leis mais duras a um povo que tem vivido às “largas”. Ângelo, voltamos ao nosso paralelo, será o equivalente à troika internacional no Portugal de 2012? A psicologia autoritária de Ângelo é aquilo de que o Duque necessita para restaurar a ordem e a licença em Viena, para fazer a justiça rigorosa e a austeridade, sem as quais o poder pode soçobrar. É o Duque, de resto, que expressamente o admite:
Já que foi erro meu dar largas ao povo,
Era grande tirania açoitá-los e moê-los
[…] Foi por isso, meu padre
Que entreguei a Ângelo este cargo.
E escondido no meu nome ele cumprirá,
Sem que vá a minha autoridade a essa luz
Ouvir calúnias.
Este artifício do Duque não deixa de surpreender pela sua extraordinária actualidade. Os políticos que conhecemos não desejam tanto escapar ao estatuto do poder, de cuja aura naturalmente precisam, como às dificuldades de exercer o poder contra o povo. O Duque encontra-se na mesmíssima posição daqueles governantes democráticos que estão mais disponíveis para a indulgência, para a permissividade, para distribuir favores e prebendas, como diríamos hoje, do que para a face mais agressiva e drástica do poder. Ângelo parece por isso uma via perfeita para o Duque governar por interposta pessoa, protegendo de qualquer maneira todas as formas da sua autoridade – “sem que vá a minha autoridade a essa luta / ouvir calúnias”. As ditas “calúnias” são o julgamento do povo, agora exclusivamente dirigido contra o delegado:
E o novo delegado do nosso Duque –
Seja por falta ou por fogo da novidade,
Ou por ser o corpo do Estado
Um cavalo para o governante montar,
E esse, acabado de sentar, para dizer
Quem manda, dá-lhe logo a espora,
Seja por estar a tirania no seu posto,
Ou apenas a vaidade ter enchido o lugar.
III
Será então legítima esta táctica de o Duque endossar provisoriamente o poder para se poupar a si mesmo? No Príncipe, Maquiavel afirma que sim. Segundo Maquiavel, depois de conquistar a Romagna, Cesare Borgia deparou-se com um território dividido e desgovernado que era necessário pacificar. Em 1501, Borgia nomeou o delegado Remirro de Orco, conhecido por ser enérgico e cruel, à semelhança de Ângelo, e a quem concedeu plenos poderes. Como o delegado fosse bem-sucedido, Borgia arranjou maneira de concentrar em Orco, e não nele, a responsabilidade por todos esses actos violentos e cruéis. Logo que teve oportunidade, exibiu a cabeça de Orco na praça pública a fim de suavizar e impressionar o povo.
Esta aproximação histórica, a que muitos têm recorrido para explicar Medida por Medida, defende que o Duque de Viena manifesta a mesma premeditação do príncipe maquiavélico. O único problema é que, tal como nos mostra a intrincada teia de Medida por Medida, o seu plano inicial falha. A partir do momento em que, disfarçado de frade, o Duque vai percebendo que Ângelo executa cegamente a lei em Viena, a tentativa de fugir ao exercício do poder sai frustrada. E é ele próprio, Duque, quem no fim acaba por ser forçado ao que desejou evitar: o peso do poder. Esconder-se por trás do delegado, ceder a Ângelo a solidão áspera da governação, o embate com o povo, revelam-se ambições simplesmente irrealizáveis para o Duque.
Nesse sentido, com todas as suas ambiguidades e indecisões, Medida por Medida possibilita uma leitura anti-maquiavélica. Se o poder existe para ser exercido, não é apenas impossível escapar ao peso do poder – é impossível escapar à responsabilidade pelo exercício do poder. Correndo o risco de extremarmos a analogia com o presente, pensemos nas nossas democracias, que, dir-se-á, passaram a ser governadas nesta década por delegações temporárias de Ângelos. Sabendo-se provisórios, estes podem atribuir-se o direito de serem tão ríspidos e punitivos contra uma sociedade acusada, certa ou erradamente, de viver como a Viena da nossa peça. Os políticos eleitos destas democracias austeras podem aspirar a esconder-se atrás dos novos delegados, na expectativa de serem publicamente poupados ao severo julgamento popular. Se o fizerem, tarde ou cedo irão perceber o seu fútil engano e experimentarão talvez o mesmo destino do Duque de Viena.
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