Tarde de segunda. Em 1921. Franz Kafka escreve pela segunda vez no mesmo dia a Milena Jesenská. À noite, haveria ainda de escrever uma terceira vez. Talvez porque na véspera estivera com Milena em Viena, o tom da correspondência não deixa dúvidas sobre o entusiasmo de Kafka com o que era ainda um conhecimento recente. Kafka descreve como foi o seu penoso e atribulado regresso de comboio a Praga. Não há amargura nesta carta; só medo e esperança. "Todo o tempo querem afastar-me de ti, mas não o conseguirão nunca, Milena, não é verdade?"
O século XX trouxe o homem nervoso, assim como o século XIX inventou o romântico. O homem que passou a depender cada vez mais do poder dos outros; o homem que precisa de fazer face a férreas burocracias e organizações; o homem que, arrastado para um mundo que não domina, para um mundo que lhe impõe maior sofreguidão e destreza, não sabe literalmente o que fazer.
Com o visto austríaco expirado, Kafka é barrado na fronteira. O revisor apreende-lhe o passaporte. Vem ter com ele um polícia solícito. Kafka imagina que é Milena, benfeitora, querendo libertá-lo, agindo contra as forças contrárias. Sai do comboio. O polícia acompanha-o até aos serviços de fronteira. Encontra uma judia romena, outra infractora. O inspector-chefe, mais o seu adjunto, são implacáveis. "Tem de regressar a Viena e fazê-lo visar pela polícia." Kafka responde: "Isso é um desastre. Mesmo pagando todas as despesas?" "Tem de voltar."
Conformado em regressar para visar o passaporte, Kafka espera pelo comboio das dez da noite que chegaria às duas e meia a Viena. A essa hora conseguirá alojamento, cogita? Em que estado se encontrará depois desta viagem, visto que terá de voltar para Praga logo a seguir no comboio das dezasseis? Não seria melhor pernoitar na fronteira viajando de manhã no das cinco e meia? E que dirá disto o seu chefe a quem precisa de telegrafar para a prorrogação da sua licença? Mas tem de ir, pensa, pois precisa do visto revalidado na segunda de manhã para voltar a Praga. Ainda assim, pergunta se o obterá de imediato ou se terá de esperar até terça.
Agora o adjunto, antes em silêncio, oferece-se para o ajudar. Se Kafka dormir na estação, ele deixa-o seguir de manhã para Praga, fazendo crer ao inspector que iria para Viena. Combinado com o adjunto, Kafka e a romena saem da estação em busca de um hotel. Mas os desvios não acabam. Ao saírem da estação, os dois avistam um comboio de carga em passagem. A romena quer cruzar a linha antecipando-se no comboio, Kafka escolhe ficar para trás. Seria novo ataque das forças contrárias? Novamente Milena intercedendo por ele? Por não terem passado antes do comboio, conseguem ouvir o polícia: "Voltem depressa, o inspector deixa-os passar."
Será possível, espanta-se Kafka, que já não sabe em que mais acreditar? Ainda há tempo para apanhar o comboio. Recolhe a bagagem, corre para a inspecção da fronteira, depois para a alfândega. Os azares não terminam, não podem terminar. O comboio para Praga está de partida. Não há muito tempo. Incapaz de correr com a mala, esbarra num rapaz carregador. Atropelado pela multidão, um polícia abre-lhe o caminho. Apercebendo-se que tinha perdido as chaves, um empregado encontra-as e entrega-las.
Até entrar finalmente no comboio este Kafka podia ser qualquer um de nós, o homem nervoso, acomoda-se, sossega, limpa o suor do rosto e fecha a carta com um último pedido: "Não me abandones nunca."
[Hoje, no Público]
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