quinta-feira, agosto 09, 2007

Califórnia dreaming


Problema: Dezasseis horas de viagem para pôr o pé no território do abominável Bush, que atropelaria de bom grado se pudesse. Irresponsável escala no Bairro Alto lisboeta, no albergue desse quase desconhecido Beto que, por alguma estranha razão, me faz sentir em casa, obriga-me a adormecer, indefesa e literalmente de pé, ainda no corredor do aeroporto da Portela. Arrasto-me, mais sonâmbula que os sonâmbulos, pelo avião da Continental; só acordo no dia seguinte. Muda. E do avesso. Percebo que passei mais de 24 horas sem comer. Não tenho fome. Só fome de apagar a última paragem, o último take, a última conversa, o último caldo entornado.

Recolha de dados:Uma semana inteira com pessoas que nunca vi; que à partida supunha que nunca mais veria; e com quem me apetecia tudo menos partilhar o que quer que fosse. Uma semana inteira em Los Angeles dos 88 condados, sem qualquer desejo de pisar o passeio da fama, de fotografar o Kodak Theatre, de cumprimentar o Mickey, de entrar no "Bates Hotel" do Psyco, de beber café de litro em Santa Mónica, de pedir milagre a Steven Spielberg ou explicação neurológica a António Damásio, de abrir a boca de espanto, de fingir ser turista de havaiana no pé quando na realidade não posso enterrar o corpo na cama sem antes despachar mais uma entrevista no computador. Todos os dias.

Proposta de hipótese:Talvez não seja tudo realmente possível em Hollywood, talvez o sonho americano não seja senão o que sempre foi para mim: uma mentira de açucar. Talvez o "Enjoy" sucessivo dos néons, o "dream come true" omnipresente, a banda sonora apoteótica e constante não passe de uma lavagem cerebral sugestiva de resultados aleatórios e pouco fiáveis. Talvez... mas, engolida ou não por esse contexto, foi possível acontecer-me tudo ao contrário do que imaginei. E viver de mãos dadas com pessoas com uma extraordinária capacidade de me surpreender, e que espero voltar a ver depressa. Sobretudo essa Ana dos cabelos ruivos, menina-mulher de algodão doce com quem a praia e o fogo, os passeios e as palestras, as noites e os concertos, os carrosséis e o vinho, as conversas e as gargalhadas, as compras e as futilidades provaram o que desde os 17 anos me parecia impossível: cumplicidade feminina, genuína e profunda. Instantânea e para sempre.
Testar hipótese: Sou obrigada a abortar a viagem a meio, a trilhar as não sei quantas milhas de regresso sozinha. Já estava previsto. Mas o que no início me parecia uma benção, pesa-me agora algures no peito. Recebo as primeiras mensagens de telemóvel, de ausência notada, ainda no aeroporto de L.A., decido não acrescentar as oito horas no relógio que separam os dois continentes, eventualmente ter os pés num lado e a cabeça no outro. Não estou triste por voltar, mas não estou contente por não ficar.

Análise dos resultados: Se o sonho americano é isto, este 'bling bling' no coração, esta porta escancarada por onde entraram, e me permitiram entrada, a Ana e a Bárbara, a Isabel e a Margarida, a Dalila e a Célia e o Nuno, então, o sonho americano, o que não se contabiliza em dólares na algibeira, existe mesmo. Há quem, como os mexicanos, e tantos da América latina, venda tudo para o conseguir e nunca o alcance - como Bob, o intrépido motorista; como Laura, a animadora que faz figuras tristes com esperança de ser descoberta por um qualquer realizador; como Jason, o menino guia que sonha um dia ganhar um Oscar como alguns da sua Universidade. E há quem não faça nada por ele e o veja sentar-se ao lado, como uma estrela que, podendo ser só cadente, iluminou mais do que ela própria poderá saber - como eu.

Conclusão: Cheguei da Califórnia cheia de Sol. Bronzeada por dentro. As cidades, como tudo o resto, são as pessoas. Mesmo as cidades americanas. Thanks.

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