quarta-feira, setembro 14, 2005

Miguel Sousa Tavares


'Quero o meu livro adaptado a filme'

Transportou a história do trabalho escravo em S. Tomé durante dez anos na cabeça. E soltou-a agora em "Equador", o seu primeiro romance histórico que há seis semanas ocupa o top das livrarias. "Queria escrever um livro que desse prazer às pessoas", confessa enquanto substitui, incessante, o cigarro na ponta dos dedos. Miguel Sousa Tavares, em entrevista ao JN, coloca o país à lupa - e fala longamente de si. "Sinto-me idiota a ter opinião sobre tudo".

(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 21 de Julho de 2003)


"Equador" é um romance histórico com algumas imprecisões. São falhas propositadas por ser ficção?
Há erros. O principal foi, misteriosamente, a troca do português pelo colombo. É uma falha da qual desconheço a origem. Depois, há dois ou três erros meus, que passaram. A localização do Forte de S. João Baptista, por exemplo. São erros cometidos por distracção, por escrever tarde. Não têm a gravidade que teriam se fosse uma tese de História.

A pesquisa histórica não foi feita por si. O que é que encomendou exactamente?
Não encomendei. Há dez anos que junto material para este livro.Muitas coisas eram documentação minha. Depois, pedi a colaboração de uma licenciada em História para me ajudar a descobrir coisas: se havia electricidade pública em S. Tomé em 1905, quais os hotéis de Lisboa naquela época, os restaurantes mais frequentados...

O livro tem todos os ingredientes que poderiam fazer da história um bom filme: um herói incompreendido, minorias desfavorecidas, testes de lealdade e um amor absoluto...
Gosto de contar histórias e elas não podem chatear as pessoas.Tentei escrever um livro que a mim me desse prazer escrever e às pessoas prazer ler. Foi voluntário o facto de estar escrito como se fosse um argumento para um filme. Tenho uma ideia muito visual dos livros. Preciso de ver os personagens, os ambientes, a decoração dos sítios onde se passam as coisas. De facto, é uma visão muito cinematográfica. Quero que o meu livro seja adaptado ao cinema.

Diz que desiste de um livro se, à décima página, ainda não estiver preso à história. Teve essa preocupação com o leitor ?
Claro. Se até aí o livro ainda não tiver ganho o leitor, não tem futuro. Ouvi centenas de opiniões sobre o meu livro e todas o leram até ao fim, o que não aconteceu com a maioria dos livros que tive nas mãos.

Prescindiu do vocabulário da época. O livro é escrito em português actual...
É e não é. A narração está escrita em linguagem actual. É uma história contada em 2003. Seria absurdo escrever como há cem anos. A correspondência e os ofícios estão escritos na linguagem da época.

Cem anos depois, a maneira de fazer política em Portugal é diferente da que descreveu?
Se calhar não, mas não me preocupei muito com isso. Mesmo das querelas políticas da altura, falo apenas por alto. A ideia essencial é que somos um país muito provinciano. E continuamos igual, ou se calhar, pior, porque no início do século XX ainda havia um mundo de perspectivas à frente, e hoje são cada vez mais curtas.Nem sequer há um S. Tomé para onde ir.

O golpe de Estado em S. Tomé poderia ser o capítulo seguinte de "Equador"?
Não. É o capítulo seguinte da história trágica da independência de S. Tomé, que não encontra justificação para tanta miséria.

O que adopta da história que escreveu: a coragem de largar tudo, a defesa dos desfavorecidos...?
Nenhuma dessas coisas, ou se calhar um bocado de todas elas.Há um dia - e essa é a missão do personagem que vai para S. Tomé -, em que somos confrontados com a necessidade de que a nossa vida faça sentido. Ele, que era um diletante lisboeta e tinha uma vida cómoda, mas sem sentido, encontra ali um sentido para as coisas.

Escreveu todo o tipo de histórias. Escapou-lhe a poesia e continua a ter uma BD para completar...
Da poesia, que experimentei aos 19 anos, desisti, graças a Deus. Gosto muito de banda desenhada. Gostava muito dessa história inacabada, que saía em fascículos na Grande Reportagem. O desenhador era excelente, mas não cumpria prazos. Fiquei com isso atravessado e deixei-a...

"Toda a gente acha que é um bocado dona de mim"

"Portugal sofre de conferencite aguda". Miguel Sousa Tavares será mais sensível do que deixam transparecer as suas opiniões implacáveis. "Os homens não são necessariamente insensíveis", tentou provar.Mas, apesar da credibilidade indiscutível que adquiriu perante o país, nem sempre se sente tão seguro como demonstra. "Tenho muitas contradições".

De certa forma, cultiva essa imagem de pessoa distante, de analista político frio e arrogante... (interrompe)
Não, não cultivo nada. Sou diferente quando estou em Portugal e no estrangeiro. O que tenho aqui é um instinto de autodefesa porque, graças à televisão, não tenho nenhuma espécie de privacidade a não ser quando estou fechado em casa. De resto, desde o café, ao futebol, ao mercado, à praia, as pessoas olham para mim como coisa pública. Toda a gente acha que é um bocadinho dona de mim.No estrangeiro é diferente. As pessoas que me conhecem ficam admiradíssimas com a minha transformação. Volto a ser eu, natural.

Não hão-de ser muitas já que gosta de viajar sozinho...
É verdade. É a minha mulher e pouco mais.

Apesar desse instinto de protecção, escrevia na Máxima crónicas mais íntimas...
Foi um desafio da Manuela Fragoso, directora da revista. Disse-lhe que só escreveria seis coisas e acabei por lá ficar oito anos. O meu objectivo foi mostrar, do ponto de vista do homem, às leitoras da Máxima e à sua redacção 100% feminina, que os homens não são necessariamenete insensíveis. As mulheres acham que os homens sensíveis têm um lado feminino. Nunca pode ser o lado masculino, o que é extraordinário (risos). O lado masculino, do ponto de vista das mulheres, é uma coisa brutal. Mas acho que consegui passar a mensagem, porque ainda recebo cartas a dizer que o melhor do que escrevi está ali.

Publicou uma crónica, que aparece no livro "David Crockett", chamada "Eternamente". Quando perdeu essa ilusão de que tudo é nosso para sempre"?
Com a idade. Com as percas que vamos tendo. A maior ilusão da vida é, de facto, pensar que as coisas boas duram para sempre.Bergson diz que "a felicidade é ausência de dor". Não sou tão extremista, mas acho que não existe felicidade eterna, nem dias eternamente com sol. Existe apenas aquilo que conseguimos salvar.Se salvarmos as memórias boas e apagarmos as más, excelente.

De tudo o que escreveu, o que é que lhe dá mais prazer?
A banda desenhada. O resto, não sei. O que me custou mais escrever foi o "Equador" e um livro para crianças. A escrita tanto dá prazer como o contrário: é fonte de angústia, de sofrimento, de desespero, de frustração e de falta de confiança em nós próprios. Oscila muito.

Considerando a fama do seu mau feitio, seria normal vê-lo menos na imprensa cor-de-rosa. Mas está sempre a aparecer. Gosta ou incomoda-o?
Não posso virar sempre a cara aos fotógrafos. Mas uma das razões porque não tenho tanta vida social é precisamente essa. Aprendi, infelizmente, que às vezes até em casas particulares onde pensamos ir apenas como amigos, vamos também como objecto de fotografia de coluna social. É terrível. Desejaria sinceramente ter uma vida só minha, que não fosse partilhada por toda a gente.

Tem uma imagem 'negligé premeditada'. A imagem é tão importante como a mensagem que quer passar?
De todo. Mas eu não sou nada premeditado (risos). Não sou, sinceramente. Escolho a roupa num minuto. Vou à gaveta das camisas e tiro a que está em cima, vou ao armário das calças e tiro as que estão mais à mão. Sou o tipo de pessoa que, se gosta de uns sapatos, usa-os todos os dias durante dez anos. Cheguei a uma idade a que, em termos de roupa, visto aquilo em que me sinto bem. Não penso se é negligé ou não. Quando era advogado, tinha que usar gravata, senão não me levavam a sério, quando vou à televisão, também a ponho. É a única ocasião em que hoje uso gravata.

Frequentou durante oito anos o colégio S. João de Brito, e transformou-se num agnóstico. O que fizeram os jesuítas de tão perverso para deixar de acreditar?
Não sei como são os colégios jesuítas hoje, mas o meu, na altura, em termos pedagógicos, estava completamente errado. Os jesuítas ensinaram-me o contrário de todos os valores morais em que acredito na vida. Aprendi coisas que repudio, como a delação ou a separação de classes. Percebi logo que não concordava com aquilo, e andei lá dos 7 aos 15 anos. Hoje não tenho qualquer ideia dos jesuítas.Há padres jesuítas que admiro imenso e outros que desprezo. Como em tudo na vida não há categorias, há pessoas. Conheci um padre jesuíta, na Índia, inesquecível. Assim como conheci um, em Lisboa, que é um padre social e da moda, que eu desprezo com todas as minhas forças. Não tenho paciência para padres betinhos.

Tem uma pesadíssima herança. Lê os livros todos da sua mãe (Sophia de Mello Breyner Anderson) e ela lê os seus?
Claro. A minha mãe é minha grande fã. Aliás, houve um livro que escrevi que levei à sua apreciação antes de publicar. E ela deu-me uma ideia que eu usei.

E da parte do seu pai, Francisco Sousa Tavares. Licenciou-se em Direiro, como ele. Queria salvar o Mundo?
Teve mais influência o facto de não haver um curso de jornalismo na altura que era o que eu queria ser já. Mas ele tinha razão quando dizia: "Vai para Direito e depois logo se vê". Gostei muito de ser advogado. Gostei muito da parte do tribunal. Aliás, há no livro um episódio que é uma espécie de tributo a isso.A parte burocrática da advocacia detestei. Queria ser jornalista, não para salvar o Mundo, mas porque queria contar histórias.A primeira reportagem de jornalismo que escrevi foi sobre um patrão de uma multinacional sueca que tinha ordenados em atraso, e os trabalhadores foram sequestrá-lo ao hotel. Teve um enredo policial porque consegui chegar à fala com o sueco e adorei aquilo. Adorei. Quando a li, no dia seguinte, no jornal pensei que era aquilo que tinha querido a vida toda.

Como vê o estado actual da Grande Reportagem da qual foi director durante dez anos?
Fico sobretudo triste com a ideia de a revista passar a ser um encarte dentro do DN e do JN. Não sei se foi a solução de sobrevivência, mas será a morte da Grande Reportagem. A crise publicitária é indesmentível. O ano passado houve uma queda de 15% na imprensa escrita. E o editorial era fatal que mudasse, porque aquilo é a revista do director.

Esteve em todas as televisões e passou por alguns jornais, mas fica a ideia de que o maior laço afectivo é com o Público. Lembro-me daquela intensa crónica de despedida, há dois anos...
É verdade. Gosto muito do Público. É um jornal infinitamente melhor que os seus destinatários. Não aqueles que o compram, mas os que deviam comprar e não compram. O Público é bom de mais para o meio cultural, intelectual, para as exigências dos portugueses.Gosto muito de escrever num jornal que leio exaustivamente todos os dias.

Assume-se como pessoa de contradições?
Claro. Tenho muitas contradições. Mas se calhar dentro das contradições existe uma certa coerência. Não sou uma pessoa de verdades adquiridas.Sou uma pessoa de valores adquiridos. Não tenho muitos, mas os poucos que tenho são firmes. Se calhar, daqui a três anos, conversamos e digo tudo ao contrário. Não quer dizer que não perdure aquilo em que acredito. Se as circunstâncias mudam, o nosso olhar sobre as coisas muda também.

É uma contradição o facto de ter condenado o projecto da estação de televisão onde hoje é comentador semanal?
Condenei o projecto da Igreja que não tem nada a ver com o projecto de agora. A Igreja quis ter uma televisão por favor político, o que é um escândalo. Na altura, concorri com outro projecto que perdeu para o da Igreja. Hoje, toda a gente está de acordo comigo. D. José Policarpo já disse que a Igreja devia pedir desculpa pela aventura na TVI, para onde arrastou o dinheiro de muita gente e o próprio nome da conferência episcopal.

Identifica-se com o projecto actual da TVI?
Não me identifico com nenhuma informação televisiva neste momento.Se fosse director, não faria nenhuma daquelas. Mas também é verdade que não aguentaria mais de uma semana no cargo. Antes havia uma separação entre programação que cativa audiências e informação que dá prestígio à estação. Isso mudou radicalmente a partir do dia em que se descobriu que fazer informação tablóide também capta audiências. A primeira vez que apareceu escrito foi numa informação interna, na SIC. Portanto, vivemos com esse princípio de que informação não é o interesse público, mas o interesse do público.

Via a informação da SIC por ser fã do José Alberto Carvalho.Opta agora pela informação da RTP 1?
Vejo bastante mais do que via antes. De facto, sou fã dele.

Como classifica a informação da estação pública de televisão?
Como uma manta de retalhos. Pode ser boa, má, imprevisível ou absurda. Estão reunidas todas as condições para que a RTP possa ter uma informação inatacável e não tem. Acho, sinceramente, que as pessoas que serviram determinado projecto da RTP dificilmente poderão continuar agora a servir um projecto oposto.

Continua, então, a achar que não há solução para a RTP?
Há solução. Sempre defendi a existência de uma televisão pública.Acho é que é difícil fazer uma RTP nova com pessoas velhas e gastas politicamente. Estive lá dez anos. Sei que aquela televisão desgasta muito as pessoas, suga-lhes o melhor e deixa-lhes só vícios burocráticos.

Nunca teve paciência para andar em digressão a fazer palestras. Diz que não o faz a não ser a troco de dinheiro...
Odeio conferências, palestras, simpósios, jornadas. Tenho três tipos de carta para responder a esses convites. Há um modelo em que pergunto às pessoas se imaginam que não tenho que trabalhar para ganhar. Todos os dias, sem exagero, recebo dois convites para fazer uma palestra. Será que estes tipos todos imaginam que podem dispor do tempo e do dinheiro de uma pessoa que se mete no comboio, paga as suas viagens, vai na véspera, e perde dois dias para fazer uma palestra? Se querem conferências - e Portugal sofre de conferencite aguda - façam-no profissionalmente.Esses convites vêm sempre de pessoas que trabalham para o Estado.Estão chateados com trabalho e decidem fazer simpósios. Só que eles continuam a ganhar e eu não.

Isso acontece porque parece ter sempre opinião sobre tudo. Não se sente, às vezes, um pouco idiota nesse papel?
Sinto (risos). Ninguém pode ter opiniões interessantes e válidas sobre tudo. É óbvio. É uma profissão que se inventou agora: o 'opinion maker', que é suposto ser um generalista de ideias.Não me posso queixar, porque vivo dela e, em termos comparativos, em Portugal paga-se muito bem aos cronistas de opinião.

Qual o preço a pagar por dizer sempre o que pensa?
O mais evidente é a saturação. O excesso de exposição cansa. Mas é uma coisa sem grande longevidade. As pessoas perguntam como posso ter opinião sobre tudo. Poder posso, tanto que tenho.Mas sou o primeiro a dizer que essa opinião não é sempre bem fundamentada. Seria impossível.

Portugal à lupa

Universidade Moderna: Condenação simbólica
O caso da Moderna vai acabar em nada. Houve expectativas tão altas que já se sabia que ia ser assim. A partir do momento em que a justiça não conseguiu levar as investigações até ao fim, houve uma tentativa de incriminar Paulo Portas para salvar o caso.Como a operação falhou, vai acabar numa condenação simbólica para justificar a prisão preventiva dos que estão lá dentro.

Subsídios da UE: Choque Nacional
Todos os que se habituaram a viver da mama dos dinheiros europeus vão ter um choque completo, e ainda bem, quando grande parte dos subsídios forem desviados para o leste. Os portugueses perderam a noção do que é mérito, competência, competitividade, esforço e trabalho. Perderam a noção de que o país tem que criar riqueza e não pode viver eternamente de esmolas dos países ricos. Habituaram-se a que as coisas caiam do céu. Tudo é subsidiado, toda a gente fez cursos de formaçao. Já é altura de perceber que nem tudo é exigivel e há coisas que têm que ser conquistadas com o nosso esforço.

Casa Pia: Carne para canhão
Espero que não seja um fogo fátuo. A Casa Pia foi um crime continuado ao longo dos anos, consentido, incentivado, mantido com responsabilidades das pessoas que estavam lá dentro. Mais do que condenar figuras públicas, o importante é que a estrutura humana que transformou crianças orfãs confiadas ao Estado em carne para canhão seja condenada e julgada.
Livros
Equador Romance histórico sobre as roças de S. Tomé e Príncipe, no início do século XX.
Não te deixarei morrer David Crockett Compilação de crónicas
Anos perdidos Crónicas escritas, semanalmente, no Público, entre 1995 e 2001.
Sul Relato de viagem. "O excesso de tudo que nos engole e arrasta como uma vaga gigantesca."
O segredo do rio História para crianças em que o autor desmistifica a morte.
Perfil
Idade 51anos
Defeito A caridade é a mãe de todos os vícios
Qualidade A coragem
Música O tango é a minha última descoberta
Escritor Yourcenar, Nabokov, Tchekov, Sepúlveda
Fobia Andar de avião
Paixão A vida
Cidade Buenos Aires, onde todos os presidentes de Câmara, actuais e passados, do Porto a Lisboa, deviam ir para uma cura de humildade

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