quarta-feira, setembro 14, 2005

Alexandra Lencastre


"Estive muitos anos de castigo"

Tem um sonho recorrente: está a cair e não sabe onde vai parar."Sinto-me a diminuir de tamanho, como a Alice no país das maravilhas". Alexandra Lencastre é a imagem de uma fragilidade que não disfarça, mais do que de um rótulo de sex-symbol, que lhe colaram e que ela odeia, "porque é redutor". E porque nem sequer se sente bonita.Em entrevista ao JN, a actriz anuncia o divórcio com a Comunicação Social que acusa de não ter merecido o seu voto de confiança. "Vida privada, nunca mais", garante. E entusiasma-se com os pormenores dos três filmes que deverão estrear no próximo ano.
(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 30 de Outubro de 2003)

Parece ter, definitivamente, optado pelo cinema. Só nos últimos três anos participou em oito filmes.
Mas estive durante muitos anos de castigo. Estava no banco e não me deixavam jogar. Além de ter feito muita televisão como actriz, cometi o erro de apresentar programas.E paguei uma factura caríssima, porque há um preconceito dos cineastas contra a televisão, o que é perfeitamente ridículo.Resistem por ignorância. Tratam o cinema como se fosse a nobreza do audiovisual e a televisão como a ralé. Estamos a combater isso e os realizadores estão a ficar mais flexíveis.

Aliás, foi esse "castigo" que levou John Malkovich a convidá-la para um filme.
Ele achou que estavam a fazer uma caça às bruxas em Portugal, que seria uma coisa política, e que eu pertencia a uma lista negra. Conhecemo-nos num programa do Carlos Cruz e pouco depois recebi o guião do "Em Clandestinidade" em minha casa.

Acaba de participar em dois filmes ainda sem estreia marcada.Que tipo de mulher interpreta em "Os Imortais"?
Queria muito trabalhar com o António Pedro Vasconcelos, mas havia sempre uma impossibilidade, uma espécie de nevoeiro que nos afastava.Dois anos e meio antes de o filme ser rodado, li o guião, e achei-o fantástico, porque é um filme de acção. Entro só em três cenas: com o Joaquim de Almeida (sou mulher dele), o Nicolau Breyner e a Maria Rueff. Elas apaixonam-se, embora isso nunca se veja.A história delas não é contada, mas é subentendida.

E protagoniza o "Lá fora", de Fernando Lopes, que é uma repetição de realizador.
Tenho uma relação muito especial com o Fernando Lopes. Costumo chamar-lhe "doce vampiro". No momento certo, ele suga-nos o sangue, a alma, o corpo, a voz, a expressão, a emoção. Leva-nos o coração sem pedir licença. É muito comovente a maneira dele trabalhar.(emociona-se e pede desculpa por isso).

Desempenha o papel de uma jornalista dura...
A Laura é uma mulher completamente diferente das que estou habituada a encontrar no meu percurso como actriz. E é, talvez, a mais complicada. Senti que ela me devorou. Mesmo exteriormente, com aquele cabelo todo encaracolado, louro platinado, anos 40. A artificialidade dela é uma metáfora. É uma jornalista que se vai escondendo atrás da imagem pública de mulher bem sucedida, completamente afirmativa e segura. Parece uma predadora, às vezes é quase maquiavélica, mas depois percebem-se uma série de fragilidades.Parece que sabe tudo, mas é como se fosse completamente virgem.Quando conhece Zé Maria (Rogério Samora), volta a acreditar no amor. A ingenuidade dela é quase adolescente. Vê uma luz e não percebe que aquela luz é o fim. É como se fosse uma criança de dois anos a correr atrás de um rapaz de 12. Só que, se ele tropeça, levanta-se e continua a correr, se ela tropeça fica com os joelhos em sangue. Poderia ser um encontro de almas gémeas, mas não é.

Um drama?
É um filme pessimista, fala de impossibilidades. Transmite falta de ar porque passa a noção de que estamos mesmo sozinhos. E fica em aberto. Não dá respostas. Vai causar incómodo em quem o vir, mas causa também em quem o fez. O argumento é muito denso e muito bom.

Em Outubro, regressa às filmagens.
Vou fazer "A costa dos murmúrios", com a Margarida Cardoso, baseado na obra da Lídia Jorge. Mais uma vez, vou contracenar com Rogério Samora, que é um tenente alucinado, fachista, traumatizado, arrogante, sinistro. E eu sou a mulher dele. Uma menina do continente que vai com o marido para África durante a guerra. Uma mulher nervosa, que sente que alinhou num esquema sem se revoltar, uma mulher a quem o marido já não dá valor e que se sente profundamente só. Ela diz que imagina o seu funeral só com o marido a olhar para a campa como uma festa à qual as pessoas se esqueceram de ir.

São papéis completamente diferentes de "A mulher que acreditava ser presidente dos EUA". Gostou de fazer a comédia de João Botelho?
Hoje não aceitaria. Achei que aquilo não tinha piada nenhuma.Mas foi um desafio. E teve a vantagem - por ela ser completamente desfigurada -, dos jornalistas pararem de me perguntar se sou sexy, o que já era incómodo. A única coisa a que achava piada era à Rita Blanco e às outras mulheres.

Continua a preferir trabalhar com mulheres?
Traz imensas vantagens. Podemos falar dos maridos, dos filhos, das fraldas, dos períodos menstruais sem aquilo parecer um disparate.Com homens, quem é que consegue? Além disso, podemos andar aos beijos sem que a imprensa diga que temos um caso. Consegue-se um equilíbrio entre ser mulher, com todas as características que temos, sem isso ser vergonhoso nem inibidor do trabalho.A minha experiência diz-me que se produz lindamente com mulheres.

Tem saudades de fazer teatro?
Imensas. Não faço teatro desde que nasceu a minha filha mais nova, que tem cinco anos. Já tive projectos, subsídios na mão que tive que devolver e fiquei desmotivada. Mas há uma peça escrita pela Clara Ferreira Alves, com uma ideia minha, para ser feita no Vilaret, que ainda pode acontecer. Neste momento, só faz sentido recomeçar devagarinho, com dois ou três actores no máximo, para me poder compatibilizar com a minha família.

É mais complicado conciliar trabalho e família no teatro?
É. Eu sou apologista da quantidade. Aquela teoria dos momentos de qualidade não me convence. Recuso-me a não estar com as minhas filhas. Preciso de tempo para elas, para as conhecer. E os sentimentos, e as ideias erradas, e que amor é que têm para dar. Houve uma altura em que acreditava em compartimentos estanque. Hoje não acredito. Tento explicar isto às minhas filhas, dizer-lhes que a profissão da mãe é dura, não é aparecer com sorriso de plástico nas revistas. Mas, para isso, tenho que me subdividir em várias mulheres. E isso nunca é valorizado pelos maridos, pelos patrões ou pelos realizadores.

Sente-se finalmente protegida pela crítica?
Relativizo a crítica desde os 26 anos. Temos que ser lúcidos e perceber que, às vezes, dizem bem de nós com justiça, outras vezes sem razão de ser. O mesmo se passa quando dizem mal. Os dois Globos de Ouro que recebi são disso exemplo. O primeiro foi um disparate. Eu fazia parte do elenco secundário de uma novela onde havia trabalhos fantásticos da Rita Loureiro, do João Perry, da São José Lapa. Parece que me deram o Globo por uma data de anos em que podia ter sido, pelo menos, nomeada e nunca fui. Recebê-lo naquela altura foi completamente injusto.No caso do "Delfim", não achei tão injusto porque me senti recompensada pelo meu regresso ao cinema. Acho que correspondi às expectativas do realizador, mas achei que o prémio era para ele. Até porque ele não recebeu, o filme também não, e eu não me senti bem a receber. Causa-me incómodo ser exageradamente elogiada.

E pelos colegas?
Sinto-me sobretudo protegida pelos homens. De uma forma geral, têm uma atitude protectora em relação a mim, não sei porquê.Se calhar porque sou muito ansiosa e angustiada. Algumas mulheres também, como a Rita Blanco. E isso sabe-me bem.

De certa forma, a sua carreira é catapultada com a "Banqueira do povo", mas depois não chegou a investir em telenovelas.
Honestamente, em novela, o mais interessante é fazer os papéis principais. Porque é que não aceito papéis secundários? Porque nem sempre aparecem na altura certa. A seguir à "Banqueira" apareceram imensos convites, mas todos a bater no mesmo. Era sempre convidada para fazer a cabra de serviço (ri). Não me apetecia.

Sempre recusou despir-se. A personagem de "Ana e os Sete" foi uma cedência?
Foi, claro. A personagem é tão completa e o projecto tão giro que achei que valia a pena. E tive rapidamente a noção que a versão portuguesa era muito mais suave que a espanhola. O despir aqui é quase adocicado, como num cabaré. Se me pedissem nu integral não aceitava.

É frequentemente acusada de falsos pudores. Há mais condescendência com o excesso de autoconfiança do que com a insegurança?
Não sei. Estou cada vez menos preocupada com aquilo que as pessoas pensam porque não medem o que dizem. Criei uma barreira invisível para me defender.

Lembra-se de quando começou a ser considerada uma sex-symbol?
Estava a fazer uma peça pós-Perestroika, encenada pelo José Wallenstein, "Estrelas no céu da manhã". Era uma prostituta de Moscovo. Houve uma grande mudança com as personagens que tinha feito até aí.No "Sete", fizeram-me uma entrevista, mas publicaram fotografias da peça. Nessa altura achava alguma graça porque sempre tive muitos complexos por ser feia e baixa. Não sabia que ia pagar a factura durante tantos anos. Um rótulo, por melhor que seja, é sempre redutor.

A propósito de facturas, depois de ter ultrapassado a fase "Na cama com", gostava de voltar a entrevistar?
Na altura, fui ingénua ao aceitar esse programa. Deixava-me intimidar pelos convidados. Hoje, gostava de voltar a fazer entrevistas, mas tenho sobretudo vontade de fazer uma espécie de "Frou-frou".Lembra-se?

A sua beleza tem ajudado a impulsionar a carreira?
Não, porque não sou bonita. Posso produzir-me e com isso ficar mais bonita. Mas nunca serei uma Leonor Silveira ou uma Ana Padrão.Tenho horror aos grandes planos em cinema.

Contou que, se lhe tivessem dito, quando era pequena, que só encontraria o amor aos 29 anos, não teria acreditado. Acredita no amor eterno?
Mesmo que a vida me faça passar por experiências mais ou menos negativas, acredito no amor acima de tudo. Acredito nele como uma força enorme onde podemos buscar energia para tudo. O amor é o meu combustível. Sem ele não seria o que sou. Também a nível profissional. Se for, algum dia, privada de amar, uma grande parte de mim irá morrer.

E em contos de fadas, acredita?
Acredito. (risos). E alimento isso nas minhas filhas que estão agora apaixonadas pelo Peter Pan. Digo-lhes que também me apaixonei por ele. No meu caso, ele não apareceu, mas pode ser que apareça no delas. São os contos de fadas que nos dão forças para continuar.E acredito nos anjos da guarda, e sou católica e tenho fé e acho que é assim que se contorna a dor, a morte e os percalços da vida.

Continua a ser possessiva?
É uma coisa que tenho tentado controlar. As pessoas não mudam; refinam com o passar dos anos. É preciso ter a noção que nascemos e morremos sozinhos e, muitas vezes, nas ocasiões mais importantes da nossa vida estamos igualmente sozinhos. Aprendi a controlar isso de forma a não magoar os outros, o que não quer dizer que o meu primeiro impulso não seja esse.

Como se define como mulher?
Uma mulher à procura de equilíbrio. Sinto que estou na fase em que posso abrir o último pacote de foguetes.

E que mulher gostaria de ser?
Uma daquelas mulheres que quando põem as mãos na mala não tiram 500 mil coisas até encontrar a chave. Que são arrumadas. Por dentro.

Idade 37 anos
Filme Azul, de Kieslowski
Livro Todos os de Michael Cunningham. (Na cabeceira, tem sempre a Bíblia e uma compilação de poemas. E agora uma compilação de ofertas.)
Paixão as filhas
Medo de tudo o que lhes possa acontecer
Saudade dos três anos, a altura mais feliz da minha vida
Sonho deixar de ter pesadelos de uma vez por todascidade Amesterdão

Confissões

"A Liberdade de Imprensa sufoca o indivíduo"
Tenho uma relação de amor/ódio com a Imprensa. Nunca mais falarei da minha vida privada. Confiei nas pessoas e elas não mereceram.Agora é o salve-se quem puder. Percebi que toda a noção de ética e respeito e confiança está adulterada. Isto chegou a um ponto em que a liberdade de Imprensa está a sufocar a liberdade do indivíduo.

"O suicídio não é uma cobardia; é uma opção"
Tentei suicidar-me depois de, contra a vontade da família, ter trocado o curso de Filosofia por teatro. No fim do trimestre tive uma avaliação muito dura e senti que tinha feito a opção errada. Fiz um disparate para chamar a atenção. Mas, de facto, não considero o suicídio uma cobardia ou uma fuga; é uma opção.Depende das circunstâncias.

"Sinto-me como a Alice no país das maravilhas"
Tenho causas perdidas, mas tento não pensar nisso, porque sou pessimista, e rapidamente caio como a Alice no país das maravilhas.Sinto-me a diminuir de tamanho. Cair sem saber para onde é um pesadelo recorrente que tenho. Esse filme é um dosque mais me marcou - é terrivelmente adulto e cruel. Não deixo que as filhas o vejam.
Filmografia

Lá Fora (2004)
Imortais, Os (2003)
A Mulher que Acreditava Ser Presidente Dos EUA (2003)
O Delfim, O (2002)
The Dancer Upstairs (2002)
Paisagens Intermédias (2002)
A Falha (2000)

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