quarta-feira, setembro 14, 2005

João Fernandes


"Não queremos
condenar a arte
ao provincianismo"

Serralves começa a ser um museu idêntico aos que visitava na infância. Um espaço acolhedor e de confronto. Mas João Fernandes, que substitui a partir de agora Vicente Todolí, na direcção do Museu de Serralves, é mais ambicioso. Quer apurar o sentido crítico dos cidadãos e continuar a criar condições para que os artistas portugueses tenham oportunidades de defesa e apresentação de obra idêntica à dos artistas internacionais. Do Porto, cidade onde organizou as primeiras exposições, o novo director só espera que não regrida.
(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 25 de Janeiro de 2003)

A programação da nova equipa só entrará em vigor em 2005. Haverá mudanças?
O Vicente Todolí e eu programamos o museu até 2004. Começo agora a pensar na programação de 2005. Não entendo que seja necessário mudar a linha de programação, mas edificá-la e aprofundá-la.O desafio maior diz respeito à colecção. É o momento de fazê-la crescer e assegurar que continua as expectativas que despertou aquando da sua apresentação, na abertura do museu.

O Museu de Serralves, ao integrar a Rede Internacional de Museus, é, por vezes, acusado de privilegiar a arte estrangeira em detrimento da nacional...
Os portugueses não tiveram oportunidade durante uma boa parte do século XX de conhecer os seus artistas, muito menos os que existiam no Mundo. Uma das melhores formas de defender e apoiar a arte que se faz aqui é situá-la numa colecção e numa programação que sejam internacionais. Não queremos continuar a condenar os artistas portugueses à claustrofobia, ao provincianismo. Um terço das nossas exposições é obrigatoriamente constituído por artistas portugueses. Esta proporção permite-nos situar os portugueses no contexto de uma programação internacional e, com isso, abrir portas para que eles possam ser conhecidos no contexto dos outros artistas que vêm cá fazer exposições. Se o contrário acontecesse, estaríamos a confirmar essa regra da excepção e do isolamento que sofreu a arte portuguesa. Não se trata de uma obsessão por uma internacionalização demagógica ou por qualquer detrimento da arte portuguesa.

E em relação à colecção?
Temos uma relação contrária à proporção que temos em relação à política de exposições. A maior parte dos artistas que adquirimos são portugueses. Procuramos ter um núcleo dos anos 60/70 que represente em paridade artistas portugueses e internacionais.Depois dos anos 70 só compramos, de arte internacional, os artistas que apresentamos no museu porque surge como documentação da vida do próprio museu.

Como é que Serralves consegue manter-se incólume aos vários governos e ministros da cultura?
É um projecto curioso e singular da sociedade portuguesa. Em primeiro lugar pela ligação que existe entre a iniciativa pública e privada. É graças à confluência singular desta junção que Serralves consegue desenvolver os seus projectos. É isso que tem feito com que não fique dependente do contexto político. Aliás, uma estrutura cultural não deverá estar dependente de uma flutuação política. Temos conseguido relações extremamente positivas com todos os ministros da cultura que temos conhecido.

O Conselho de Administração de Serralves deliberou agora a criação de um Conselho Consultivo para o Museu. Porquê?
No momento em que o museu passa a ser dirigido por um português, entendeu-se que deveria ter um conselho consultivo constituído por personalidade relevantes do mundo da arte internacional, como o Kynaston McShine, do MOMA, de Nova Iorque.

Quem vai ser o seu director adjunto?
Estamos num processo de selecção e negociação do director, devendo ser anunciado em breve. É uma pessoa com experiência museológica, com uma experiência de trabalho internacional, que permitirá uma integração muito fácil nas linhas de continuidade deste museu.

Como sente o legado de Vicente Todolí?
Não o sinto bem como um legado. É uma experiência que construímos em conjunto, o que faz com que me seja extremamente facilitada a continuidade do projecto.

Relação deficiente com ensino de arte

Qual é a relação de Serralves com o ensino de arte?
É deficiente. Não nos compete apresentar os artistas saídos das escolas, mas as próprias escolas deveriam fazê-lo em condições dignas. Recebo mais convites para visitar escolas de arte lá fora do que cá. Estando num museu, sinto falta de conhecimento de artistas, que apesar de tudo, é compensada pela luta dos próprios artistas. No Porto, têm surgido nos últimos anos artistas que criam os seus próprios espaços. Sem subsídios, mas com coragem, criam projectos condenados a ser efémeros. Faz falta um apoio regular a esses espaços de emergência. Ficaria satisfeito se tivesse espaços na cidade que permitissem o conhecimento do trabalho regular de artistas jovens, criando-me possibilidades para posterior apresentação no museu. Seria importante criar a oportunidade para que artistas jovens de outros países pudessem vir em residência para a cidade, criar intercâmbios e condições de apresentação para os que trabalham cá. Que existissem condições para que Serralves se pudesse associar a outras instituições e criar eventos como o Squatters, em 2001.


"A cultura não pode ser como uma sobremesa"

De que forma se evidencia, em Serralves, a preocupação com a criação de oportunidades?
Em Serralves estamos a conviver com a primeira geração de portugueses que tem direito a conhecer a arte do seu tempo. Independentemente daquilo que os números representam, confesso que o sucesso de um museu não é comensurável pelas estatísticas. Mas fico satisfeito se acreditar que estou a criar a possibilidade para que cada pessoa possa confrontar-se com experiências artísticas que aqui são apresentadas e possa construir a sua própria relação com a obra de arte, não livre de uma domesticação social, mas sim criando uma relação individual e natural com essa mesma obra de arte. Gosto, compreensão, conhecimento, entusiasmo ou até rejeição. Espero que Serralves possa suscitar isso nas pessoas.A cultura não é menos essencial na vida de uma pessoa do que todas as outras actividades do seu dia a dia. Não é a sobremesa que podemos decidir ter ou não ter quando vamos ao restaurante.

De onde lhe vem o encanto pela arte?
A criação artística interessa-me desde miúdo. Apareceu, primeiro, transformada pelos escritores que sobre ela escreviam, Proust, Joyce, Thomas Mann. E depois, pelas viagens. Há viagens muito curiosas... Fui à Flandres e à Holanda em busca dos flamegos primitivos e dos escritores holandeses do século XVIII e descobri os museus de arte contemporânea. Foi a descoberta de toda uma série de artistas. Foi nessas viagens, que fazia em miúdo, que percebi como uma sociedade organizada podia organizar os museus.Para um viajante adolescente significava ser bem acolhido, mesmo com pouco dinheiro. Por isso, acho que os museus devem ser espaços acolhedores, que criem perspectivas de confronto com a arte.Não devem ser demagógicos. A arte é um confronto e para isso as pessoas têm que se libertar de alguns preconceitos. Fico contente por Serralves ter criado um cenário que considero semelhante ao dos museus da minha infância.

Considerando a sua formação, como se posiciona entre o livro e o objecto?
Não faço uma opção. Ambos podem confluir naquilo que é a criação artística do nosso tempo. Ambos são uma experiência artística e uma forma de questionamento para que o nosso relacionamento com o Mundo seja aberto, generoso, disponível. Para não ficarmos perdidos em certezas falsas.

Que exposição gostaria de trazer e nunca conseguirá?
(risos) Não me passa pela cabeça não trazer cá uma exposição que quero mesmo trazer. De qualquer forma, Serralves não importa, não compra exposições, coproduz. Nunca trazemos o que está a acontecer em Londres, Paris ou Nova Iorque. O que se faz neste museu é criativo por si só. É a sua singularidade. Não adianta fazer aquilo que os outros já estão a fazer. Às vezes, nem aceitamos coproduções internacionais, justamente para chamar a atenção do Mundo para o que se passa aqui.

E a exposição de Bacon?
Não é similar às outras que já foram feitas. Só a decidimos fazer a partir do momento em que encontramos um ponto de vista próprio sobre a obra dele.

Em tempo de crise, julga-se que só compensa investir em arte.É um coleccionador?
Acha? Não sei... Os valores atribuídos em mercado não são definidores da própria obra de arte. Sou responsável por uma colecção, mas não é o critério do mercado que me orienta. Mas, fico satisfeito quando obras compradas para Serralves valorizaram cinco vezes mais passados uns anos. Significa que foram feitas apostas interessantes.

E pessoalmente?
Não tenho arte em minha casa. É um paradoxo que eu assumo. Acho importante que haja coleccionadores, mas não quero ter uma relação com a obra de arte que passe pela propriedade. A minha relação pessoal com a arte faz-se da minha relação com os artistas, com os projectos nos quais estou envolvido.

Não deveria haver uma relação mais estreita entre o museu e as galerias da cidade?
É curioso o aumento do número de galerias de arte da cidade.Isso coincide com o aparecimento do museu. Poderia ser interessante um mapa de arte contemporânea do Porto, que incluísse o museu, as galerias, o Centro de Fotografia e outras instituições expositivas, para poder haver um percurso de arte visual para quem visitar a cidade.

Que análise lhe merece a política cultural da cidade?
O Porto é hoje uma cidade com projectos nacionais e uma diversidade de experiências culturais extremamente interessantes. 2001 lançou projectos como a Casa da Música e fortaleceu as estruturas nacionais emergentes, como o Rivoli, o Teatro S. João, Serralves. Provou que havia público para a cidade. Foi uma rampa de lançamento para um contexto cultural que não pode regredir, mesmo que haja problemas económicos. À recessão económica não pode ser inerente a regressão cultural. Trata-se de adaptar as possibilidades às condições que existem, nunca abdicando da vida cultural. Não sou tão pessimista como muitos. É impossível regressar aos tempos em que não havia nenhuma iniciativa institucional. A vida política, cedo ou tarde, reconhecerá a evidência disto: a cultura é um facto diário da vida dos cidadãos desta cidade. E não creio que estejam na disposição de abdicar dela.

MARCAR O PASSO DA EXPOSIÇÃO
Do programa de quatro visitas guiadas já alinhavado para a mostra sobre Francis Bacon, em Serralves, uma será feita pelos passos de João Fernandes. É no dia dia 7 de Fevereiro, às 18.30 horas.A primeira, guiada por Fernando Pernes, é no dia 27. Depois, a 7 de Março, João Bénard da Costa dá voz aos olhos dos visitantes e, no dia 30 do mesmo mês, Fernando Pernes encerra as visitas guiadas.
DA LITERATURA PARA AS ARTES VISUAIS
O início da vida, marcado por mais literatura do que qualquer outra coisa, poderia não fazer prever que João Fernandes, transmontano, acabasse por dedicar-se, em regime de exclusividade e paixão absolutas, às artes visuais. Ele, no entanto, que cedo se teria deixado influenciar pelas opiniões dos escritores sobre arte, não ficou admirado. Cursou letras mas, na primeira oportunidade, trocou-as.
FRANCIS BACON NA PASSAGEM DE TESTEMUNHO
A maior exposição realizada em Portugal sobre o pintor Francis Bacon - talvez o mais conhecido na segunda metade do século XX - marca a transição de reinado na Direcção do Museu de Serralves: sai Vicente Todolí, agora a caminho da Tate Gallery, de Londres; e entra João Fernandes. "Cage/Uncaged", mergulho no universo tortuoso do britânico, ficará patente até ao dia 20 de Abril.

Alexandra Lencastre


"Estive muitos anos de castigo"

Tem um sonho recorrente: está a cair e não sabe onde vai parar."Sinto-me a diminuir de tamanho, como a Alice no país das maravilhas". Alexandra Lencastre é a imagem de uma fragilidade que não disfarça, mais do que de um rótulo de sex-symbol, que lhe colaram e que ela odeia, "porque é redutor". E porque nem sequer se sente bonita.Em entrevista ao JN, a actriz anuncia o divórcio com a Comunicação Social que acusa de não ter merecido o seu voto de confiança. "Vida privada, nunca mais", garante. E entusiasma-se com os pormenores dos três filmes que deverão estrear no próximo ano.
(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 30 de Outubro de 2003)

Parece ter, definitivamente, optado pelo cinema. Só nos últimos três anos participou em oito filmes.
Mas estive durante muitos anos de castigo. Estava no banco e não me deixavam jogar. Além de ter feito muita televisão como actriz, cometi o erro de apresentar programas.E paguei uma factura caríssima, porque há um preconceito dos cineastas contra a televisão, o que é perfeitamente ridículo.Resistem por ignorância. Tratam o cinema como se fosse a nobreza do audiovisual e a televisão como a ralé. Estamos a combater isso e os realizadores estão a ficar mais flexíveis.

Aliás, foi esse "castigo" que levou John Malkovich a convidá-la para um filme.
Ele achou que estavam a fazer uma caça às bruxas em Portugal, que seria uma coisa política, e que eu pertencia a uma lista negra. Conhecemo-nos num programa do Carlos Cruz e pouco depois recebi o guião do "Em Clandestinidade" em minha casa.

Acaba de participar em dois filmes ainda sem estreia marcada.Que tipo de mulher interpreta em "Os Imortais"?
Queria muito trabalhar com o António Pedro Vasconcelos, mas havia sempre uma impossibilidade, uma espécie de nevoeiro que nos afastava.Dois anos e meio antes de o filme ser rodado, li o guião, e achei-o fantástico, porque é um filme de acção. Entro só em três cenas: com o Joaquim de Almeida (sou mulher dele), o Nicolau Breyner e a Maria Rueff. Elas apaixonam-se, embora isso nunca se veja.A história delas não é contada, mas é subentendida.

E protagoniza o "Lá fora", de Fernando Lopes, que é uma repetição de realizador.
Tenho uma relação muito especial com o Fernando Lopes. Costumo chamar-lhe "doce vampiro". No momento certo, ele suga-nos o sangue, a alma, o corpo, a voz, a expressão, a emoção. Leva-nos o coração sem pedir licença. É muito comovente a maneira dele trabalhar.(emociona-se e pede desculpa por isso).

Desempenha o papel de uma jornalista dura...
A Laura é uma mulher completamente diferente das que estou habituada a encontrar no meu percurso como actriz. E é, talvez, a mais complicada. Senti que ela me devorou. Mesmo exteriormente, com aquele cabelo todo encaracolado, louro platinado, anos 40. A artificialidade dela é uma metáfora. É uma jornalista que se vai escondendo atrás da imagem pública de mulher bem sucedida, completamente afirmativa e segura. Parece uma predadora, às vezes é quase maquiavélica, mas depois percebem-se uma série de fragilidades.Parece que sabe tudo, mas é como se fosse completamente virgem.Quando conhece Zé Maria (Rogério Samora), volta a acreditar no amor. A ingenuidade dela é quase adolescente. Vê uma luz e não percebe que aquela luz é o fim. É como se fosse uma criança de dois anos a correr atrás de um rapaz de 12. Só que, se ele tropeça, levanta-se e continua a correr, se ela tropeça fica com os joelhos em sangue. Poderia ser um encontro de almas gémeas, mas não é.

Um drama?
É um filme pessimista, fala de impossibilidades. Transmite falta de ar porque passa a noção de que estamos mesmo sozinhos. E fica em aberto. Não dá respostas. Vai causar incómodo em quem o vir, mas causa também em quem o fez. O argumento é muito denso e muito bom.

Em Outubro, regressa às filmagens.
Vou fazer "A costa dos murmúrios", com a Margarida Cardoso, baseado na obra da Lídia Jorge. Mais uma vez, vou contracenar com Rogério Samora, que é um tenente alucinado, fachista, traumatizado, arrogante, sinistro. E eu sou a mulher dele. Uma menina do continente que vai com o marido para África durante a guerra. Uma mulher nervosa, que sente que alinhou num esquema sem se revoltar, uma mulher a quem o marido já não dá valor e que se sente profundamente só. Ela diz que imagina o seu funeral só com o marido a olhar para a campa como uma festa à qual as pessoas se esqueceram de ir.

São papéis completamente diferentes de "A mulher que acreditava ser presidente dos EUA". Gostou de fazer a comédia de João Botelho?
Hoje não aceitaria. Achei que aquilo não tinha piada nenhuma.Mas foi um desafio. E teve a vantagem - por ela ser completamente desfigurada -, dos jornalistas pararem de me perguntar se sou sexy, o que já era incómodo. A única coisa a que achava piada era à Rita Blanco e às outras mulheres.

Continua a preferir trabalhar com mulheres?
Traz imensas vantagens. Podemos falar dos maridos, dos filhos, das fraldas, dos períodos menstruais sem aquilo parecer um disparate.Com homens, quem é que consegue? Além disso, podemos andar aos beijos sem que a imprensa diga que temos um caso. Consegue-se um equilíbrio entre ser mulher, com todas as características que temos, sem isso ser vergonhoso nem inibidor do trabalho.A minha experiência diz-me que se produz lindamente com mulheres.

Tem saudades de fazer teatro?
Imensas. Não faço teatro desde que nasceu a minha filha mais nova, que tem cinco anos. Já tive projectos, subsídios na mão que tive que devolver e fiquei desmotivada. Mas há uma peça escrita pela Clara Ferreira Alves, com uma ideia minha, para ser feita no Vilaret, que ainda pode acontecer. Neste momento, só faz sentido recomeçar devagarinho, com dois ou três actores no máximo, para me poder compatibilizar com a minha família.

É mais complicado conciliar trabalho e família no teatro?
É. Eu sou apologista da quantidade. Aquela teoria dos momentos de qualidade não me convence. Recuso-me a não estar com as minhas filhas. Preciso de tempo para elas, para as conhecer. E os sentimentos, e as ideias erradas, e que amor é que têm para dar. Houve uma altura em que acreditava em compartimentos estanque. Hoje não acredito. Tento explicar isto às minhas filhas, dizer-lhes que a profissão da mãe é dura, não é aparecer com sorriso de plástico nas revistas. Mas, para isso, tenho que me subdividir em várias mulheres. E isso nunca é valorizado pelos maridos, pelos patrões ou pelos realizadores.

Sente-se finalmente protegida pela crítica?
Relativizo a crítica desde os 26 anos. Temos que ser lúcidos e perceber que, às vezes, dizem bem de nós com justiça, outras vezes sem razão de ser. O mesmo se passa quando dizem mal. Os dois Globos de Ouro que recebi são disso exemplo. O primeiro foi um disparate. Eu fazia parte do elenco secundário de uma novela onde havia trabalhos fantásticos da Rita Loureiro, do João Perry, da São José Lapa. Parece que me deram o Globo por uma data de anos em que podia ter sido, pelo menos, nomeada e nunca fui. Recebê-lo naquela altura foi completamente injusto.No caso do "Delfim", não achei tão injusto porque me senti recompensada pelo meu regresso ao cinema. Acho que correspondi às expectativas do realizador, mas achei que o prémio era para ele. Até porque ele não recebeu, o filme também não, e eu não me senti bem a receber. Causa-me incómodo ser exageradamente elogiada.

E pelos colegas?
Sinto-me sobretudo protegida pelos homens. De uma forma geral, têm uma atitude protectora em relação a mim, não sei porquê.Se calhar porque sou muito ansiosa e angustiada. Algumas mulheres também, como a Rita Blanco. E isso sabe-me bem.

De certa forma, a sua carreira é catapultada com a "Banqueira do povo", mas depois não chegou a investir em telenovelas.
Honestamente, em novela, o mais interessante é fazer os papéis principais. Porque é que não aceito papéis secundários? Porque nem sempre aparecem na altura certa. A seguir à "Banqueira" apareceram imensos convites, mas todos a bater no mesmo. Era sempre convidada para fazer a cabra de serviço (ri). Não me apetecia.

Sempre recusou despir-se. A personagem de "Ana e os Sete" foi uma cedência?
Foi, claro. A personagem é tão completa e o projecto tão giro que achei que valia a pena. E tive rapidamente a noção que a versão portuguesa era muito mais suave que a espanhola. O despir aqui é quase adocicado, como num cabaré. Se me pedissem nu integral não aceitava.

É frequentemente acusada de falsos pudores. Há mais condescendência com o excesso de autoconfiança do que com a insegurança?
Não sei. Estou cada vez menos preocupada com aquilo que as pessoas pensam porque não medem o que dizem. Criei uma barreira invisível para me defender.

Lembra-se de quando começou a ser considerada uma sex-symbol?
Estava a fazer uma peça pós-Perestroika, encenada pelo José Wallenstein, "Estrelas no céu da manhã". Era uma prostituta de Moscovo. Houve uma grande mudança com as personagens que tinha feito até aí.No "Sete", fizeram-me uma entrevista, mas publicaram fotografias da peça. Nessa altura achava alguma graça porque sempre tive muitos complexos por ser feia e baixa. Não sabia que ia pagar a factura durante tantos anos. Um rótulo, por melhor que seja, é sempre redutor.

A propósito de facturas, depois de ter ultrapassado a fase "Na cama com", gostava de voltar a entrevistar?
Na altura, fui ingénua ao aceitar esse programa. Deixava-me intimidar pelos convidados. Hoje, gostava de voltar a fazer entrevistas, mas tenho sobretudo vontade de fazer uma espécie de "Frou-frou".Lembra-se?

A sua beleza tem ajudado a impulsionar a carreira?
Não, porque não sou bonita. Posso produzir-me e com isso ficar mais bonita. Mas nunca serei uma Leonor Silveira ou uma Ana Padrão.Tenho horror aos grandes planos em cinema.

Contou que, se lhe tivessem dito, quando era pequena, que só encontraria o amor aos 29 anos, não teria acreditado. Acredita no amor eterno?
Mesmo que a vida me faça passar por experiências mais ou menos negativas, acredito no amor acima de tudo. Acredito nele como uma força enorme onde podemos buscar energia para tudo. O amor é o meu combustível. Sem ele não seria o que sou. Também a nível profissional. Se for, algum dia, privada de amar, uma grande parte de mim irá morrer.

E em contos de fadas, acredita?
Acredito. (risos). E alimento isso nas minhas filhas que estão agora apaixonadas pelo Peter Pan. Digo-lhes que também me apaixonei por ele. No meu caso, ele não apareceu, mas pode ser que apareça no delas. São os contos de fadas que nos dão forças para continuar.E acredito nos anjos da guarda, e sou católica e tenho fé e acho que é assim que se contorna a dor, a morte e os percalços da vida.

Continua a ser possessiva?
É uma coisa que tenho tentado controlar. As pessoas não mudam; refinam com o passar dos anos. É preciso ter a noção que nascemos e morremos sozinhos e, muitas vezes, nas ocasiões mais importantes da nossa vida estamos igualmente sozinhos. Aprendi a controlar isso de forma a não magoar os outros, o que não quer dizer que o meu primeiro impulso não seja esse.

Como se define como mulher?
Uma mulher à procura de equilíbrio. Sinto que estou na fase em que posso abrir o último pacote de foguetes.

E que mulher gostaria de ser?
Uma daquelas mulheres que quando põem as mãos na mala não tiram 500 mil coisas até encontrar a chave. Que são arrumadas. Por dentro.

Idade 37 anos
Filme Azul, de Kieslowski
Livro Todos os de Michael Cunningham. (Na cabeceira, tem sempre a Bíblia e uma compilação de poemas. E agora uma compilação de ofertas.)
Paixão as filhas
Medo de tudo o que lhes possa acontecer
Saudade dos três anos, a altura mais feliz da minha vida
Sonho deixar de ter pesadelos de uma vez por todascidade Amesterdão

Confissões

"A Liberdade de Imprensa sufoca o indivíduo"
Tenho uma relação de amor/ódio com a Imprensa. Nunca mais falarei da minha vida privada. Confiei nas pessoas e elas não mereceram.Agora é o salve-se quem puder. Percebi que toda a noção de ética e respeito e confiança está adulterada. Isto chegou a um ponto em que a liberdade de Imprensa está a sufocar a liberdade do indivíduo.

"O suicídio não é uma cobardia; é uma opção"
Tentei suicidar-me depois de, contra a vontade da família, ter trocado o curso de Filosofia por teatro. No fim do trimestre tive uma avaliação muito dura e senti que tinha feito a opção errada. Fiz um disparate para chamar a atenção. Mas, de facto, não considero o suicídio uma cobardia ou uma fuga; é uma opção.Depende das circunstâncias.

"Sinto-me como a Alice no país das maravilhas"
Tenho causas perdidas, mas tento não pensar nisso, porque sou pessimista, e rapidamente caio como a Alice no país das maravilhas.Sinto-me a diminuir de tamanho. Cair sem saber para onde é um pesadelo recorrente que tenho. Esse filme é um dosque mais me marcou - é terrivelmente adulto e cruel. Não deixo que as filhas o vejam.
Filmografia

Lá Fora (2004)
Imortais, Os (2003)
A Mulher que Acreditava Ser Presidente Dos EUA (2003)
O Delfim, O (2002)
The Dancer Upstairs (2002)
Paisagens Intermédias (2002)
A Falha (2000)

Jorge Vaz de Carvalho

"Reagirei ferozmente
se a Casa da Música não integrar
os músicos da ONP"

Jorge Vaz de Carvalho promete "reagir ferozmente" se os 94 músicos que actualmente integram a Orquestra Nacional do Porto (ONP) não transitarem todos para a Casa da Música. O director da ONP, que terminará funções dentro de três meses, vai mais longe e sublinha que não basta incorporar os executantes - é preciso também contar com a mais-valia de técnicos e administrativos. Muito crítico em relação à forma como todo o processo está a ser conduzido, Vaz de Carvalho reforça a necessidade de um "estatuto especial" para a estrutura sinfónica e sublinha as dificuldades que a ONP já está a encontrar: "A Casa da Música tem uma sala de ensaios onde a orquestra não cabe toda".

(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 9 de Setembro de 2005)


Por que é que o seu mandato, que não foi renovado, foi prolongado por mais três meses?
Tendo em conta que o Ministério da Cultura decidiu que a Orquestra Nacional do Porto (ONP) vai ser integrada na Casa da Música (CdM), perdendo autonomia como instituto público, não fazia sentido renovar o mandato. Entretanto, o secretário de Estado pediu-me que ficasse em funções até à integração, e eu aceitei porque isso está previsto na lei. Farei, apenas, uma gestão corrente, uma vez que a época de 2006 já está planificada.

A ONP passa a ser um agrupamento como o Remix?
Suponho que sim.

Ou seja, o contrário do que sempre defendeu...
Sempre afirmei que a ONP não devia integrar a CdM em pé de igualdade com os outros agrupamentos. O peso artístico e funcional é incomparável. Basta olhar para a programação da CdM para se perceber que a ONP é o motor daquela Casa, e que, sem ela, a CdM nem teria razão de existir. A ONP devia ter um estatuto especial. Mas isso tem a ver com uma lógica funcional que não é a de quem decide. É interessante comparar os salários: há músicos do Remix que reprovaram nos testes de adesão à ONP e, no entanto, ganham infinitamente mais.

Herdou 49 músicos da ONP. Quantos existem agora?
Construí uma orquestra sinfónica com 94 músicos. Mas a ONP é também o pessoal técnico e administrativo - pessoas de grande qualidade técnica e humana, que vai ser a grande mais-valia da CdM.

Todas passarão para a CdM?
Nem me passa pela cabeça que uma instituição que se quer de excelência possa prescindir de pessoas com esta qualificação. Sem a qualidade da minha coordenadora artística de produção e dos técnicos de palco, a CdM não teria aberto, na data em que abriu, sem problemas.

Mas é líquida a transferência total dessas pessoas?
Para mim, é. Se isso não acontecesse, seria profundamente injusto. Seria uma atitude ignóbil. E se assim não for, reagirei ferozmente na Comunicação Social. Espero que a integração seja pacífica mas, na realidade, não sei de nada.

Não seria expectável que estivesse mais informado?
Já estou habituado a não ser ouvido sobre coisas importantes. Por isso é que a CdM tem uma sala de ensaios onde a orquestra não cabe. E um palco subdimensionado e problemas logísticos e estruturais que têm sido um verdadeiro teste ao profissionalismo dos músicos.


Como é que funciona uma orquestra que não cabe na sala
de ensaios?
Com grande paciência. Compreendemos que não é possível ensaiar sempre no grande auditório, mas devia ter sido pensada uma sala de ensaios com tamanho e condições de ergonometria, qualidade acústica, temperatura e dimensão do próprio espaço que permitam condições normais. É pena que isso não aconteça num edifício que custou o que custou. Aliás, se pudesse, mandava instaurar um inquérito para saber quem deu as medidas das salas ao arquitecto e quem permitiu que fossem separadas por vidros.

Também aposta na integração do maestro Marc Tardue?
Ele tem contrato até ao fim de 2007. Na última renovação foi-lhe acrescentada uma cláusula em que o contrato pode ser rescindido unilateralmente, seis meses antes. Seria ignóbil que alguém da CdM não honrasse o contrato do maestro até ao fim. Se o futuro director for uma pessoa de bem e tiver a qualidade esperada, é evidente que não irá cometer essa injustiça.

Encontra vantagens na integração da ONP na CdM?
Tem uma grande virtude: houve grandes restrições orçamentais na ONP, mas como a CdM não as tem, é evidente que será possível, em 2006, contratar um nível de maestros e solistas superior. Não os pude contratar - não porque não os conheça ou porque precise receber lições de qualquer director artístico -, mas porque nunca tivemos os privilégios orçamentais que, pelos vistos, a CdM tem.

Concorda que a acústica é uma das melhor do Mundo?
Nem nada que se pareça. O Europarque tem muito melhor acústica. E tem fosso e teia. E o recém inaugurado de Faro tem uma acústica notável. A da CdM deve ser corrigida urgentemente.

Sente alívio por não fazer parte de uma integração com a qual não concorda, ou lamenta não fazer parte disso?
Não é uma questão sentimental; é uma questão lógica. Quando está a tratar-se de coisas importantes, que podem definir estratégias que condicionam o funcionamento de uma instituição tão grande, tão ambiciosa e tão cara como a CdM, as pessoas que estão no terreno e que conhecem as questões devem ser consultadas. Mas era o que me faltava: tomar qualquer iniciativa para me apresentar como candidato a uma dessas reuniões! Nunca farei essas figuras na vida. Sempre que for necessário, estarei disponível.

Miguel Sousa Tavares


'Quero o meu livro adaptado a filme'

Transportou a história do trabalho escravo em S. Tomé durante dez anos na cabeça. E soltou-a agora em "Equador", o seu primeiro romance histórico que há seis semanas ocupa o top das livrarias. "Queria escrever um livro que desse prazer às pessoas", confessa enquanto substitui, incessante, o cigarro na ponta dos dedos. Miguel Sousa Tavares, em entrevista ao JN, coloca o país à lupa - e fala longamente de si. "Sinto-me idiota a ter opinião sobre tudo".

(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 21 de Julho de 2003)


"Equador" é um romance histórico com algumas imprecisões. São falhas propositadas por ser ficção?
Há erros. O principal foi, misteriosamente, a troca do português pelo colombo. É uma falha da qual desconheço a origem. Depois, há dois ou três erros meus, que passaram. A localização do Forte de S. João Baptista, por exemplo. São erros cometidos por distracção, por escrever tarde. Não têm a gravidade que teriam se fosse uma tese de História.

A pesquisa histórica não foi feita por si. O que é que encomendou exactamente?
Não encomendei. Há dez anos que junto material para este livro.Muitas coisas eram documentação minha. Depois, pedi a colaboração de uma licenciada em História para me ajudar a descobrir coisas: se havia electricidade pública em S. Tomé em 1905, quais os hotéis de Lisboa naquela época, os restaurantes mais frequentados...

O livro tem todos os ingredientes que poderiam fazer da história um bom filme: um herói incompreendido, minorias desfavorecidas, testes de lealdade e um amor absoluto...
Gosto de contar histórias e elas não podem chatear as pessoas.Tentei escrever um livro que a mim me desse prazer escrever e às pessoas prazer ler. Foi voluntário o facto de estar escrito como se fosse um argumento para um filme. Tenho uma ideia muito visual dos livros. Preciso de ver os personagens, os ambientes, a decoração dos sítios onde se passam as coisas. De facto, é uma visão muito cinematográfica. Quero que o meu livro seja adaptado ao cinema.

Diz que desiste de um livro se, à décima página, ainda não estiver preso à história. Teve essa preocupação com o leitor ?
Claro. Se até aí o livro ainda não tiver ganho o leitor, não tem futuro. Ouvi centenas de opiniões sobre o meu livro e todas o leram até ao fim, o que não aconteceu com a maioria dos livros que tive nas mãos.

Prescindiu do vocabulário da época. O livro é escrito em português actual...
É e não é. A narração está escrita em linguagem actual. É uma história contada em 2003. Seria absurdo escrever como há cem anos. A correspondência e os ofícios estão escritos na linguagem da época.

Cem anos depois, a maneira de fazer política em Portugal é diferente da que descreveu?
Se calhar não, mas não me preocupei muito com isso. Mesmo das querelas políticas da altura, falo apenas por alto. A ideia essencial é que somos um país muito provinciano. E continuamos igual, ou se calhar, pior, porque no início do século XX ainda havia um mundo de perspectivas à frente, e hoje são cada vez mais curtas.Nem sequer há um S. Tomé para onde ir.

O golpe de Estado em S. Tomé poderia ser o capítulo seguinte de "Equador"?
Não. É o capítulo seguinte da história trágica da independência de S. Tomé, que não encontra justificação para tanta miséria.

O que adopta da história que escreveu: a coragem de largar tudo, a defesa dos desfavorecidos...?
Nenhuma dessas coisas, ou se calhar um bocado de todas elas.Há um dia - e essa é a missão do personagem que vai para S. Tomé -, em que somos confrontados com a necessidade de que a nossa vida faça sentido. Ele, que era um diletante lisboeta e tinha uma vida cómoda, mas sem sentido, encontra ali um sentido para as coisas.

Escreveu todo o tipo de histórias. Escapou-lhe a poesia e continua a ter uma BD para completar...
Da poesia, que experimentei aos 19 anos, desisti, graças a Deus. Gosto muito de banda desenhada. Gostava muito dessa história inacabada, que saía em fascículos na Grande Reportagem. O desenhador era excelente, mas não cumpria prazos. Fiquei com isso atravessado e deixei-a...

"Toda a gente acha que é um bocado dona de mim"

"Portugal sofre de conferencite aguda". Miguel Sousa Tavares será mais sensível do que deixam transparecer as suas opiniões implacáveis. "Os homens não são necessariamente insensíveis", tentou provar.Mas, apesar da credibilidade indiscutível que adquiriu perante o país, nem sempre se sente tão seguro como demonstra. "Tenho muitas contradições".

De certa forma, cultiva essa imagem de pessoa distante, de analista político frio e arrogante... (interrompe)
Não, não cultivo nada. Sou diferente quando estou em Portugal e no estrangeiro. O que tenho aqui é um instinto de autodefesa porque, graças à televisão, não tenho nenhuma espécie de privacidade a não ser quando estou fechado em casa. De resto, desde o café, ao futebol, ao mercado, à praia, as pessoas olham para mim como coisa pública. Toda a gente acha que é um bocadinho dona de mim.No estrangeiro é diferente. As pessoas que me conhecem ficam admiradíssimas com a minha transformação. Volto a ser eu, natural.

Não hão-de ser muitas já que gosta de viajar sozinho...
É verdade. É a minha mulher e pouco mais.

Apesar desse instinto de protecção, escrevia na Máxima crónicas mais íntimas...
Foi um desafio da Manuela Fragoso, directora da revista. Disse-lhe que só escreveria seis coisas e acabei por lá ficar oito anos. O meu objectivo foi mostrar, do ponto de vista do homem, às leitoras da Máxima e à sua redacção 100% feminina, que os homens não são necessariamenete insensíveis. As mulheres acham que os homens sensíveis têm um lado feminino. Nunca pode ser o lado masculino, o que é extraordinário (risos). O lado masculino, do ponto de vista das mulheres, é uma coisa brutal. Mas acho que consegui passar a mensagem, porque ainda recebo cartas a dizer que o melhor do que escrevi está ali.

Publicou uma crónica, que aparece no livro "David Crockett", chamada "Eternamente". Quando perdeu essa ilusão de que tudo é nosso para sempre"?
Com a idade. Com as percas que vamos tendo. A maior ilusão da vida é, de facto, pensar que as coisas boas duram para sempre.Bergson diz que "a felicidade é ausência de dor". Não sou tão extremista, mas acho que não existe felicidade eterna, nem dias eternamente com sol. Existe apenas aquilo que conseguimos salvar.Se salvarmos as memórias boas e apagarmos as más, excelente.

De tudo o que escreveu, o que é que lhe dá mais prazer?
A banda desenhada. O resto, não sei. O que me custou mais escrever foi o "Equador" e um livro para crianças. A escrita tanto dá prazer como o contrário: é fonte de angústia, de sofrimento, de desespero, de frustração e de falta de confiança em nós próprios. Oscila muito.

Considerando a fama do seu mau feitio, seria normal vê-lo menos na imprensa cor-de-rosa. Mas está sempre a aparecer. Gosta ou incomoda-o?
Não posso virar sempre a cara aos fotógrafos. Mas uma das razões porque não tenho tanta vida social é precisamente essa. Aprendi, infelizmente, que às vezes até em casas particulares onde pensamos ir apenas como amigos, vamos também como objecto de fotografia de coluna social. É terrível. Desejaria sinceramente ter uma vida só minha, que não fosse partilhada por toda a gente.

Tem uma imagem 'negligé premeditada'. A imagem é tão importante como a mensagem que quer passar?
De todo. Mas eu não sou nada premeditado (risos). Não sou, sinceramente. Escolho a roupa num minuto. Vou à gaveta das camisas e tiro a que está em cima, vou ao armário das calças e tiro as que estão mais à mão. Sou o tipo de pessoa que, se gosta de uns sapatos, usa-os todos os dias durante dez anos. Cheguei a uma idade a que, em termos de roupa, visto aquilo em que me sinto bem. Não penso se é negligé ou não. Quando era advogado, tinha que usar gravata, senão não me levavam a sério, quando vou à televisão, também a ponho. É a única ocasião em que hoje uso gravata.

Frequentou durante oito anos o colégio S. João de Brito, e transformou-se num agnóstico. O que fizeram os jesuítas de tão perverso para deixar de acreditar?
Não sei como são os colégios jesuítas hoje, mas o meu, na altura, em termos pedagógicos, estava completamente errado. Os jesuítas ensinaram-me o contrário de todos os valores morais em que acredito na vida. Aprendi coisas que repudio, como a delação ou a separação de classes. Percebi logo que não concordava com aquilo, e andei lá dos 7 aos 15 anos. Hoje não tenho qualquer ideia dos jesuítas.Há padres jesuítas que admiro imenso e outros que desprezo. Como em tudo na vida não há categorias, há pessoas. Conheci um padre jesuíta, na Índia, inesquecível. Assim como conheci um, em Lisboa, que é um padre social e da moda, que eu desprezo com todas as minhas forças. Não tenho paciência para padres betinhos.

Tem uma pesadíssima herança. Lê os livros todos da sua mãe (Sophia de Mello Breyner Anderson) e ela lê os seus?
Claro. A minha mãe é minha grande fã. Aliás, houve um livro que escrevi que levei à sua apreciação antes de publicar. E ela deu-me uma ideia que eu usei.

E da parte do seu pai, Francisco Sousa Tavares. Licenciou-se em Direiro, como ele. Queria salvar o Mundo?
Teve mais influência o facto de não haver um curso de jornalismo na altura que era o que eu queria ser já. Mas ele tinha razão quando dizia: "Vai para Direito e depois logo se vê". Gostei muito de ser advogado. Gostei muito da parte do tribunal. Aliás, há no livro um episódio que é uma espécie de tributo a isso.A parte burocrática da advocacia detestei. Queria ser jornalista, não para salvar o Mundo, mas porque queria contar histórias.A primeira reportagem de jornalismo que escrevi foi sobre um patrão de uma multinacional sueca que tinha ordenados em atraso, e os trabalhadores foram sequestrá-lo ao hotel. Teve um enredo policial porque consegui chegar à fala com o sueco e adorei aquilo. Adorei. Quando a li, no dia seguinte, no jornal pensei que era aquilo que tinha querido a vida toda.

Como vê o estado actual da Grande Reportagem da qual foi director durante dez anos?
Fico sobretudo triste com a ideia de a revista passar a ser um encarte dentro do DN e do JN. Não sei se foi a solução de sobrevivência, mas será a morte da Grande Reportagem. A crise publicitária é indesmentível. O ano passado houve uma queda de 15% na imprensa escrita. E o editorial era fatal que mudasse, porque aquilo é a revista do director.

Esteve em todas as televisões e passou por alguns jornais, mas fica a ideia de que o maior laço afectivo é com o Público. Lembro-me daquela intensa crónica de despedida, há dois anos...
É verdade. Gosto muito do Público. É um jornal infinitamente melhor que os seus destinatários. Não aqueles que o compram, mas os que deviam comprar e não compram. O Público é bom de mais para o meio cultural, intelectual, para as exigências dos portugueses.Gosto muito de escrever num jornal que leio exaustivamente todos os dias.

Assume-se como pessoa de contradições?
Claro. Tenho muitas contradições. Mas se calhar dentro das contradições existe uma certa coerência. Não sou uma pessoa de verdades adquiridas.Sou uma pessoa de valores adquiridos. Não tenho muitos, mas os poucos que tenho são firmes. Se calhar, daqui a três anos, conversamos e digo tudo ao contrário. Não quer dizer que não perdure aquilo em que acredito. Se as circunstâncias mudam, o nosso olhar sobre as coisas muda também.

É uma contradição o facto de ter condenado o projecto da estação de televisão onde hoje é comentador semanal?
Condenei o projecto da Igreja que não tem nada a ver com o projecto de agora. A Igreja quis ter uma televisão por favor político, o que é um escândalo. Na altura, concorri com outro projecto que perdeu para o da Igreja. Hoje, toda a gente está de acordo comigo. D. José Policarpo já disse que a Igreja devia pedir desculpa pela aventura na TVI, para onde arrastou o dinheiro de muita gente e o próprio nome da conferência episcopal.

Identifica-se com o projecto actual da TVI?
Não me identifico com nenhuma informação televisiva neste momento.Se fosse director, não faria nenhuma daquelas. Mas também é verdade que não aguentaria mais de uma semana no cargo. Antes havia uma separação entre programação que cativa audiências e informação que dá prestígio à estação. Isso mudou radicalmente a partir do dia em que se descobriu que fazer informação tablóide também capta audiências. A primeira vez que apareceu escrito foi numa informação interna, na SIC. Portanto, vivemos com esse princípio de que informação não é o interesse público, mas o interesse do público.

Via a informação da SIC por ser fã do José Alberto Carvalho.Opta agora pela informação da RTP 1?
Vejo bastante mais do que via antes. De facto, sou fã dele.

Como classifica a informação da estação pública de televisão?
Como uma manta de retalhos. Pode ser boa, má, imprevisível ou absurda. Estão reunidas todas as condições para que a RTP possa ter uma informação inatacável e não tem. Acho, sinceramente, que as pessoas que serviram determinado projecto da RTP dificilmente poderão continuar agora a servir um projecto oposto.

Continua, então, a achar que não há solução para a RTP?
Há solução. Sempre defendi a existência de uma televisão pública.Acho é que é difícil fazer uma RTP nova com pessoas velhas e gastas politicamente. Estive lá dez anos. Sei que aquela televisão desgasta muito as pessoas, suga-lhes o melhor e deixa-lhes só vícios burocráticos.

Nunca teve paciência para andar em digressão a fazer palestras. Diz que não o faz a não ser a troco de dinheiro...
Odeio conferências, palestras, simpósios, jornadas. Tenho três tipos de carta para responder a esses convites. Há um modelo em que pergunto às pessoas se imaginam que não tenho que trabalhar para ganhar. Todos os dias, sem exagero, recebo dois convites para fazer uma palestra. Será que estes tipos todos imaginam que podem dispor do tempo e do dinheiro de uma pessoa que se mete no comboio, paga as suas viagens, vai na véspera, e perde dois dias para fazer uma palestra? Se querem conferências - e Portugal sofre de conferencite aguda - façam-no profissionalmente.Esses convites vêm sempre de pessoas que trabalham para o Estado.Estão chateados com trabalho e decidem fazer simpósios. Só que eles continuam a ganhar e eu não.

Isso acontece porque parece ter sempre opinião sobre tudo. Não se sente, às vezes, um pouco idiota nesse papel?
Sinto (risos). Ninguém pode ter opiniões interessantes e válidas sobre tudo. É óbvio. É uma profissão que se inventou agora: o 'opinion maker', que é suposto ser um generalista de ideias.Não me posso queixar, porque vivo dela e, em termos comparativos, em Portugal paga-se muito bem aos cronistas de opinião.

Qual o preço a pagar por dizer sempre o que pensa?
O mais evidente é a saturação. O excesso de exposição cansa. Mas é uma coisa sem grande longevidade. As pessoas perguntam como posso ter opinião sobre tudo. Poder posso, tanto que tenho.Mas sou o primeiro a dizer que essa opinião não é sempre bem fundamentada. Seria impossível.

Portugal à lupa

Universidade Moderna: Condenação simbólica
O caso da Moderna vai acabar em nada. Houve expectativas tão altas que já se sabia que ia ser assim. A partir do momento em que a justiça não conseguiu levar as investigações até ao fim, houve uma tentativa de incriminar Paulo Portas para salvar o caso.Como a operação falhou, vai acabar numa condenação simbólica para justificar a prisão preventiva dos que estão lá dentro.

Subsídios da UE: Choque Nacional
Todos os que se habituaram a viver da mama dos dinheiros europeus vão ter um choque completo, e ainda bem, quando grande parte dos subsídios forem desviados para o leste. Os portugueses perderam a noção do que é mérito, competência, competitividade, esforço e trabalho. Perderam a noção de que o país tem que criar riqueza e não pode viver eternamente de esmolas dos países ricos. Habituaram-se a que as coisas caiam do céu. Tudo é subsidiado, toda a gente fez cursos de formaçao. Já é altura de perceber que nem tudo é exigivel e há coisas que têm que ser conquistadas com o nosso esforço.

Casa Pia: Carne para canhão
Espero que não seja um fogo fátuo. A Casa Pia foi um crime continuado ao longo dos anos, consentido, incentivado, mantido com responsabilidades das pessoas que estavam lá dentro. Mais do que condenar figuras públicas, o importante é que a estrutura humana que transformou crianças orfãs confiadas ao Estado em carne para canhão seja condenada e julgada.
Livros
Equador Romance histórico sobre as roças de S. Tomé e Príncipe, no início do século XX.
Não te deixarei morrer David Crockett Compilação de crónicas
Anos perdidos Crónicas escritas, semanalmente, no Público, entre 1995 e 2001.
Sul Relato de viagem. "O excesso de tudo que nos engole e arrasta como uma vaga gigantesca."
O segredo do rio História para crianças em que o autor desmistifica a morte.
Perfil
Idade 51anos
Defeito A caridade é a mãe de todos os vícios
Qualidade A coragem
Música O tango é a minha última descoberta
Escritor Yourcenar, Nabokov, Tchekov, Sepúlveda
Fobia Andar de avião
Paixão A vida
Cidade Buenos Aires, onde todos os presidentes de Câmara, actuais e passados, do Porto a Lisboa, deviam ir para uma cura de humildade

Pedro Roseta


"Não temos assim
tão pouco dinheiro"


"A cultura distingue-se pela qualidade e não pela quantidade de dinheiro disponível". Num ano de cortes orçamentais na área da Cultura como não há memória na última década, Pedro Roseta, ministro da tutela, em entrevista ao JN, admite o refluxo em relação a 2001 - "mas isso é óbvio" -, ainda que faça questão de vincar: "Houve um corte, mas não temos tão pouco dinheiro quanto isso". Mas se a dotação financeira não estica, as oportunidades devem ser extensíveis a todos. "Os benefícios não podem contemplar sempre os mesmos", diz, elogiando Coimbra Capital Nacional da Cultura 2003 e recusando ver no Porto 2001 uma oportunidade perdida - "Não creio", sustenta. Em visita oficial ao Porto, anteontem, por ocasião do Porto Cartoon World Festival, o JN interpelou Pedro Roseta, que falou do estado de um país "culturalmente riquíssimo".
(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 23 de outubro de 2002)

O seu discurso sobre "qualidade cultural" parece estar em perfeita sintonia com a política adoptada pela Câmara do Porto. No entanto, essa linha está a ser fortemente contestada...
Não me pronuncio sobre as acções culturais de nenhuma entidade, autarquia, grupo ou fundação. Para o fazer sobre uma, teria que o fazer sobre todas. E não creio que seja uma missão do ministro da Cultura fazer apreciações sobre as 308 câmaras ou sobre as áreas da sua competência. Não sou um crítico.

No contexto de contenção orçamental, o Porto 2001 poderá ter sido uma oportunidade perdida, considerando, sobretudo, a agitação cultural que despertou?
Não creio, pelo menos, na parte que diz respeito ao Ministério, que é a única sobre a qual eu posso responder. Note agora a nomeação de Ricardo Pais, note todas as actividades previstas até ao final do ano. Há coisas muito interessantes. Pode haver, na quantidade, algum refluxo em relação a 2001, mas isso é óbvio, porque esse ano foi absolutamente excepcional.

E Coimbra? A Capital Nacional da Cultura absorve, este ano, uma fatia considerável do orçamento...
É verdade. Coimbra também tem direitos. Os beneficiados não podem ser sempre os mesmos. De resto, estas coisas têm que ser vistas ao nível do país inteiro. Não podemos ver as coisas só ao nível das cidades, porque hoje as deslocações são tão fáceis que só não participa quem, de facto, não tem vontade.

O novo director da Biblioteca Nacional já nomeado...
Foi escolhido pelo primeiro-ministro e por mim. É uma personalidade notável, cujo currículo é suficientemente conhecido. Actualmente, desempenhava as funções de presidente da Comissão Internacional da UNESCO. É uma pessoa muito conhecida, até porque também escreve nos jornais.

O ex-director, Carlos Reis, demitiu-se por questões orçamentais. A situação foi revista?
Sim, o orçamento foi alterado. Houve um pequeno reforço. Veremos, na Assembleia, a que percentagem nos estamos a referir.

A demissão de José Wallentein, ex-director do Teatro Nacional de S. João, prendeu-se exactamente com a mesma questão. Ricardo Pais também viu a verba reforçada?
Claro, mas isso já estava determinado antes. Já estava previsto um reforço para o S. João. Não está em causa o facto de o Ricardo Pais nos ter convencido a aumentar o orçamento. É uma questão de repartir as coisas por projectos de qualidade e por aquilo que é essencial. Obviamente, não se pode fazer tudo. Eu tenho, todos os dias, entidades, autarquias que gostariam de ter mais dinheiro. Mas não se pode fazer tudo ao mesmo tempo. Também é um acto cultural saber escolher aquilo que se faz em cada momento para as coisas saírem com qualidade. O Porto Cartoon é disso exemplo.

Há quatro institutos que irão ser reduzidos a dois. A lei orgânica que permitirá a fusão estará, como previsto, concluída no próximo mês?
Está a avançar. O grupo prometeu que sim, que estaria concluída na data prevista.
O Instituto Português do Livro e da Leitura sofreu uma redução de 40%; o Instituto Português dos Museus cerca de 5%. Na totalidade, foi exercida sobre a cultura uma dieta de 6%.
É possível cultura sem dinheiro?
Não, claro que não. É absolutamente impossível.

E com pouco dinheiro?
Tem que ser possível. É isso que estamos a tentar fazer. Mas nós também não temos tão pouco dinheiro quanto isso. Houve, de facto, um corte, mas que se deve a questões herdadas do passado.Como disse na Assembleia, quando apresentei o orçamento, se não tivesse havido desperdícios no passado, talvez agora não houvesse cortes.

Portugal é um país culto?
Depende do sentido, mas claro que sim. Quem é que duvida que os portugueses têm uma cultura milenar? A cultura é tudo, é a forma de estar na vida, é a arte e a tradição popular, é o artesanato, é a música. As pessoas estão cada vez mais cultas, mas queremos que fiquem ainda mais. Sobretudo, queremos que tenham - além dessa cultura herdada, de que nos devemos orgulhar -, a capacidade de ter um espírito crítico para compreender o mundo de hoje e do futuro. Isso é que importa conseguir. Mas é evidente que a nossa cultura é riquíssima. Basta olhar para as produções culturais, os monumentos...

O património é uma prioridade do seu mandato...
É uma delas. Sem dúvida. Estamos a fazer um grande esforço nessa área.

Em termos de conteúdos, defende a política de aproximar a cultura em direcção ao gosto médio das pessoas?
Isso daria um longo debate.

Descentralizar e reconhecer
Em sete meses de governação, o Ministério da Cultura privilegiou a fusão de institutos e a reformulação de projectos. O objectivo político pauta-se pela descentralização e pela aposta no fortalecimento da identidade nacional. Eis os pontos fortes de pouco mais de meio ano de Pedro Roseta à frente da pasta da Cultura:
1. Nomeou Diogo Pires Aurélio como director da Biblioteca Nacional, de Lisboa.
2. Nomeou para a Direcção do Teatro Nacional S. João, no Porto, Ricardo Pais.
3. Aprovou os projectos para o Teatro Aveirense, Teatro Circo, em Braga, Cineteatro Avenida, em Espinho, e Auditório Carlos Alberto, no Porto.
4. Criou a Sociedade Casa da Música/Porto 2001.
5. Apresentou o novo mecenas para o Teatro Nacional D. Maria II e estabeleceu uma parceria entre Coimbra Capital Nacional da Cultura 2003 e a Fundação Bissaya Barreto
6. Reforçou a acção do Instituto Português de Museus, através da preparação da nova Lei-Quadro dos museus.
7. Reformulou o projecto de Vila Nova de Foz Côa.
8. Prepara as fusões de quatro organismos em dois: do Instituto Português do Património Arquitectónico com o Instituto Português de Museus; e do Instituto Português das Artes do Espectáculo com o Instituto de Arte Contemporânea.

João Reis


"Estou cansado
da palavra sobrevivência"

É a última vez, pelo menos, a médio prazo, que João Reis, "actor fétiche" de Ricardo Pais, subirá ao palco do Teatro Nacional S. João (TNSJ), no Porto. "Preciso cortar o cordão umbilical", confessa o artista, que saiu de Lisboa há 11 anos para desafiar o que se dizia sobre o encenador de cujas peças foi, quase sempre, o protagonista. Não sabe o que vai fazer a seguir, mas sabe que está cansado de Portugal. "Da rasquice, da impunidade". Se pudesse, não saia do Porto; saía do país. "Ubu's", que reabre hoje a temporada do TNSJ, é sobre isso: "Portugal das feiras, dos rabos e dos traques".
(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 16 de Setembro de 2005)

Veio para o Porto há 11 anos para desafiar o que diziam de Ricardo Pais. Que imagem tinha dele?
Uma imagem completamente desfocada, de uma pessoa difícil e colada ao poder, o que é uma injustiça. O Ricardo é um homem de teatro, verdadeiramente. Tem crises como toda a gente, mas tem uma capacidade imensa de juntar diferentes pessoas e criar um excelente ambiente de trabalho. Depois, é como todos os encenadores: é preciso conhecer bem a linguagem dele, perceber o que quer, estar disponível. Dou por bem empregue o tempo que aqui passei, mas o problema de trabalhar muito tempo com o mesmo encenador é ficar-se muito colado à sua imagem.

É uma colagem que lhe pesa?
Revolta-me sobretudo quando estou em Lisboa e ouço comentários maldosos. Trabalhei com 12 encenadores, apesar de ter sido com o Ricardo que estabeleci maior cumplicidade. Por outro lado, fico orgulhoso. Tenho muito apreço pelas coisas que fiz aqui.

Veio numa altura em que dizia não ter já nada a provar a ninguém. Mas foi no Porto que a sua carreira se consolidou...
Os realizadores de cinema não vão ao teatro - logo não conhecem os actores. Na televisão, as escolhas são muito aleatórias. O facto de ter reconhecimento aqui [no Porto] prende-se com a acumulação de espectáculos com sucesso, em que fui protagonista. Mas tenho a sensação de que se os tivesse feito em Lisboa, o impacto teria sido maior. Houve encenadores que deixaram de me convidar porque têm um sentimento de posse em relação aos actores e não aceitam quando dizemos "não". Trabalhar no Porto criou-me uma espécie de terra queimada em Lisboa.

Diria "não" a Ricardo Pais?
Já disse - em relação ao próximo espectáculo. Sair daqui é abandonar a casa-mãe. Mas preciso cortar o cordão umbilical.

Sente-se condicionado quando Ricardo Pais diz que não encenaria determinada peça se o João não estivesse disponível?
É uma forma de elogiar o meu trabalho, a nossa cumplicidade e isso deixa-me feliz. Ao mesmo tempo, coloca-me no fio da navalha. Sinto que tenho que fazer bem porque ele me escolheu. Foi o que aconteceu com 'Hamlet'. Achava que era muito cedo para o fazer.

Mas, na altura, desvalorizou...
Obviamente. Tinha que sacudir o peso da responsabilidade. Enquanto o actor, "As lições" [de Ionesco] até foram mais importantes porque, pela primeira vez, fiz um papel de composição com aquela extensão e dificuldade.

Recusar o próximo espectáculo no Porto implica novos projectos noutros sítios?
Não. Não sei o que vou fazer a seguir. Somos sempre trabalhadores a prazo. Se não fosse actor, já tinha ido embora. Estou cansado deste penico que é Portugal. Da mentalidade, da rasquice, das promessas adiadas, da irresponsabilidade, da impunidade, dos políticos, de algumas pessoas do meio. Apontamos, sistematicamente, os problemas e nunca nada se resolve. Estou cansado da palavra sobrevivência.

De certa forma, é essa a temática do "Ubu's". Revê-se nesta interpretação mais folclórica?
Completamente. É como todos os textos clássicos: suficientemente rico e aberto a imensas leituras. Revejo-me neste lado mais rasca do Ubu, mais folclórico, porque é o retrato do país. É actualíssimo. Portugal é um bocadinho medieval. Dom Ubu tem esse lado rasca dos país, das feiras, dos rabos, dos traques.

A crítica elogiou a sua "atitude física, vocal e facial". A que esforços o obriga Dom Ubu?
Estou constantemente a lutar contra os efeitos secundários do fato. Como tem muita espuma, cria um calor imenso, transpiração, dores de cabeça, de costas. É um trabalho árduo que, às vezes, impede-me de poder ir mais longe com o texto. Tenho que encontrar um equilíbrio entre o texto e o corpo. Chego ao fim do espectáculo completamente arrasado.

É uma peça que vive muito da reacção do público. Consegue abstrair-se disso?
Não. O espectáculo é uma comédia. Apanho bem a energia do público: nuns dias ri-se de coisas mais ordinárias; noutros, de coisas mais subtis. Nós também somos diferentes todos os dias.

Que expectativa tem em relação à digressão da peça que, pela primeira vez, será representada em Roma?
Não tenho. Ouço falar em digressões desde que aqui estou. Pela primeira vez, isso vai acontecer. Já não há efeito surpresa. Há uma certa frustração por saber que as pessoas não vão perceber tudo. Mas vai ser fantástico. Só tenho pena de não ir a Lisboa. Seria tão importante como ir a Roma.

A primazia dada aos textos clássicos é uma opção?
Tenho trabalhado, sobretudo, no Teatro Nacional, e aí faz-se teatro de repertório, textos simbólicos da dramaturgia clássica, que tratam como nenhum outro os problemas actuais. Mas já fiz, e continuo aberto a fazer, textos contemporâneos. Gostava muito de fazer Bernard-Marie Koltes.
"Não quero ser popular ou conhecido"

Nem sempre os textos que interpreta nas telenovelas portuguesas o satisfazem - às vezes tem que os salvar, algo que não gosta de fazer -, mas participar numa produção brasileira está fora de questão. João Reis gostava que "se investisse mais na qualidade". E gostava de fazer mais cinema - mas diz que "funciona num circuito fechado". Quem é ele para o romper?

Lamenta não fazer mais cinema em Portugal?
Claro. Mas a maior parte do realizadores não conhece os actores. É grotesco quando nos convidam para um filme com dois meses de antecedência - às vezes, com critérios completamente absurdos. O cinema funciona numa espécie de circuito fechado. Quem sou eu para o romper?

Manifestou sempre alguma aversão relativamente à forma de fazer televisão em Portugal. As telenovelas não cumprem a realização do actor?
Excluindo participações breves, o "Amanhecer" [exibido pela TVI] foi a que me deu mais trabalho. Gostei da experiência. De trabalhar naquele ritmo e naquele registo. Gostei de vencer as dificuldades do texto, de o salvar...

Mas não gosta de os salvar...
Porque não me pagam para isso. Pagam-me para o interpretar. Se o texto é, por natureza, mau - como é quase sempre em televisão -, o actor tem duplo trabalho. No início, pode ser desafiante, mas depois acaba-se por desistir.

Tornar perceptível para o público um texto de teatro não é também salvá-lo?
É. Mas uma coisa é pegar num texto cuja estrutura e funcionalidade são grandiosas. Outra coisa é pegar num texto pequenino. O objectivo é o mesmo, mas também há o prazer intrínseco do actor. E eu tenho mais prazer a lançar-me no Shakespeare do que nas obras pequenas que nos aparecem nas novelas.

Em "Amanhecer" contracenou com Fernanda Serrano, ex-manequim. Como enfrenta esta vaga de actores importados de outras áreas?
Não tenho prurido, nem preconceito, nem resistência. Mas as diferenças notam-se logo na contracena, que é a coisa mais difícil que há em teatro, no cinema ou na televisão. Há pessoas sem formação específica que funcionam bem; outras que não. O que me revolta é a facilidade com que as pessoas se intitulam 'modelo' e 'actriz', como se cinco minutos de aparição numa novela criasse o estatuto de actor.

Como encara o sucesso de "Morangos com açúcar"?
Não encaro. A minha filha, quando está comigo, não vê. As crianças estão a tornar-se demasiado prematuras: falam de adultério, beijos na boca, cama. É grotesco. A coisa mais fascinante da infância é a inocência.

Que virtudes encontra na actual produção nacional?
Há dois pontos de vista: o trabalho, sendo que, hoje, ele é distribuído por gente sem formação enquanto actores extraordinários permanecem na prateleira. E há outro: se as novelas fossem uma forma de aproximar as pessoas da sua realidade social, sem imitar o Brasil, era positivo. Quando os responsáveis perceberem que se investirem mais na qualidade os resultados podem ser melhores, teremos a chave da solução para o que pode ser a produção nacional dos próximos anos. Pessoalmente, não acredito que isso aconteça.

Colocaria como hipótese ir para o Brasil fazer uma novela?
Nem de longe nem de perto. Tive um convite e recusei. Não me interessa ser conhecido nem popular. Mais facilmente iria para Paris, Londres ou Estocolmo.

É ingrato ser mais conhecido pelo trabalho em televisão do que pelo teatro?
É, mas já aprendi a aceitar. Mais vale cinco minutos de televisão do que dez anos de teatro.

E ser mais conhecido pelas revistas sociais?
Tenho um péssimo feitio em relação à invasão da vida privada. Lido com isso de forma distanciada. Não alimento a máquina.