terça-feira, março 24, 2015

Herberto Helder (1930-2015)


"Os animais podem ser humilhados ou destruídos. Há uma espécie de dignidade por falta de recursos morais, há uma inteireza fundada no mundo natural. Por meio de consciência, o homem alcança o poder ou a vulnerabilidade que o destrói. Escolhe-se a força ou a destruição própria, através da inspiração passada às provas, na enigmática malha da vida, opondo as astúcias do talento a cada repto de coisas. É o génio íntimo de cada um. Génio que não dá paz, que se contenta de si, e se alimenta no seu mesmo exercício. O poder é o poder, mais nada.

Um bicho, depois de fugir do pânico, assenta as patas na terra e avança inteiro, com os cornos baixos, ele todo projectado na violência da cabeça. Passa ou não passa. Passa ou morre. A morte é o seu abismo. Não pede perdão. Porque a inteireza animal é cega, limpa como a luz. Então, no largo onde o touro lutara com os homens, encontram-se agora os dois homens, um diante do outro, a cinquenta passos de distância, com a carga da consciência pessoal, o poder e a vulnerabilidade.

O rosto do homem que ressuscitou é agora um rosto fixo e acerbo, o rosto de um homem que morreu e, cerrado, se pôs lentamente a ressuscitar. E o outro estremece, porque de súbito encontrou a sua própria vulnerabilidade. O homem avança como se o seu corpo nem sequer se movesse, e quando chega perto nada resta ao outro senão deixar que a sua vulnerabilidade o torne inteiramente sensível, tome conta dele, alastre como a lepra, e ele fique vulnerável de uma ponta à outra. Então cai de joelhos e diz: - Perdão!
O homem murmura algumas palavras que apenas os dois podem perceber, mutuamente fascinados, o poder e a vulnerabilidade frente a frente. Diz: - Vou matar-te. O rosto é o mesmo - tenso e triste; e os olhos, extraordinariamente límpidos, assim: frios, vazios. Então grandes lágrimas sobem aos olhos do outro, e escorregam-lhe pela cara. Está imóvel, caído de joelhos, com as mãos no chão, e pela cara soerguida escorrem lágrimas. Repete: - Perdão! E o homem, que parece nem olhá-lo, que olha para dentro, sussurra ainda com a mesma tenebrosa cumplicidade: - Perdoo-te se disseres…

A cabeça do outro está exposta - nua e frágil - à luz muito alta. A luz corta-a. - Se disseres: tu tiraste-me a vida e tornaste a dar-me vida. E a luz parece agora fluir e refluir naquele rosto entregue, parece fazer nele um nó doloroso, e a boca diz: - Tu tiraste-me a vida e tornaste a dar-me vida.

O homem sorri de leve, como se tivesse ouvido uma frase infantil, e o seu espírito violento e irónico não pudesse captar toda a graça de uma frase tão inocente. Como se o poder se houvesse esgotado no poder, e o homem estivesse agora longe, de novo só, de novo isento e fundo, no lado de lá. O outro cai para diante, com a cara na poeira, e fica a tremer e a soluçar debaixo da luz esplêndida, cada vez mais alta."
Herberto Helder, Os passos em volta

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