Ninguém quer ser jornalista para enriquecer. Ao contrário, ser jornalista é ter a certeza de que se será sempre pobre (esses que conseguem salários mirabolantes e cláusulas milionárias de rescisão não contam). E, ainda assim, escolhe-se ser jornalista, escolhe-se ser pobre, escolhe-se não ter horários, escolhe-se ser pequeno depois de adulto, porque escolhe-se continuar a acreditar que é possível mudar o mundo. Mesmo que seja só um bocadinho, mesmo que seja só de vez em quando. Mesmo quando o mundo não muda. O jornalismo é um vício e é uma profissão de fé. Insistir, acreditar, insistir, acreditar, insistir contra tudo e contra todos. E é amor destrambelhado, porque continua a fazer parte de nós, do que queremos continuar a ser, mesmo quando nos deixa ficar mal. E deixa tantas vezes.
Quando corre bem, a felicidade que o jornalismo nos dá não é comparável a nenhuma outra. Quando corre mal, é uma merda. É difícil de superar. Em quase 14 anos de profissão, já tive dias em que me apeteceu insultar pessoas, dias em que me apeteceu bater em pessoas, dias em que me apeteceu partir tudo no jornal. E muitos dias em que me apeteceu desistir. E, no entanto, o pior dia da minha vida no jornal foi, de longe, aquela sexta-feira em que vi o Jorge ir embora. Pior do que esse dia só mesmo o dia seguinte, quando cheguei e o Jorge já não estava aqui, na secretária em frente à minha. E o Paulo já não estava em Lisboa, à distância de um telefonema repetido mil vezes por dia. Os dois para me editarem, para me fazerem rir, para me ensinarem tanto, para me colmatarem uma memória que não posso ter. Os dois, dessa gente rara que não precisa de gritar para ser obedecida, nem de atropelar para ser respeitada. Os dois, enormes, preparados para trabalharem em qualquer jornal deste país. Esses dois que, entre tantas outras coisas impagáveis, devolveram-me a alegria no trabalho.
Devia estar hoje a fazer greve por eles? E pelo Madaíl e pelo Hélder e pela Joana e pelo Lobo e pela Lisa e pelo Carmo e pelo Mota e por esses tantos e tantos que foram despedidos? Talvez devesse. Mas não consigo. O desconforto que sinto por estar a trabalhar não supera a hipocrisia que sentiria se tivesse faltado. Não identifico na greve, arma anacrónica, qualquer resquício de eficácia. Ainda assim, votei em plenário uma moção em que foi dito que discutiríamos os termos, a data e a duração de uma possível greve. Votei a possibilidade, não a greve. Ter sido essa greve apresentada como acto consumado, sem a prometida discussão, é uma deslealdade do sindicato.
Mais importante, há meses e meses que sabíamos que o grupo tinha a cabeça a prémio. O assunto foi noticiado inúmeras vezes no último ano. Não sou sindicalizada, posso estar a ser injusta, mas não me parece que o sindicato tenha tratado de antecipar os danos. Criar agora nas pessoas a expectativa de que é possível reverter o processo, parece-me novamente uma deslealdade. E se estiver enganada, ficarei muito feliz por isso.
Finalmente, a greve não responde a nenhuma das inquietações que creio não serem só minhas, nem responde a nenhuma das perguntas para as quais gostava de ter respostas, nem invalida sequer a continuação da derrocada. Pessoalmente, gostava de saber quanto ganha a direcção do meu jornal e as direcções de todos os outros títulos do grupo. Gostava de saber quantos directores têm direito a carro e a cartão de crédito e porquê. E gostava de saber que percentagem representam no universo salarial do grupo. Não sou aumentada desde 2007, provavelmente estou só a ser mesquinha. Mas recentemente a administração de um jornal da praça ameaçou despedir não sei quantos jornalistas e os directores propuseram uma redução nos seus próprios salários para impedir esses despedimentos. Com sucesso, tanto quanto sei. Também gostava de saber se a direcção do DN ganhou no ano passado, ano em que as vendas do jornal tiveram uma quebra substancial, um prémio de produtividade ou se isso não passa de boato. Também gostava de saber se o director do DN tem uma cláusula de rescisão de contrato de um milhão de euros ou se isso é um mito urbano.
Também gostava de saber que critérios foram usados para despedir os jornalistas e abolir secções. Ou que critérios são usados para manter quem cá ficou. Ou que garantia dá essa poupança para a sustentabilidade do grupo. Ou que estratégia está a ser desenvolvida para crescermos. Ou que critérios editoriais pautarão o futuro. E que valores. E se haverá fusão de títulos. E ancorada em que argumentos. E que direcção, em cada título, cai ou continua. E porquê. E a que preço. E quem é afinal a administração que agora temos? De onde vem e o que pretende?
Também gostava de saber por que razão qualquer político do burgo, por mais anão que seja, sabe sempre antes de qualquer um de nós o que nos espera. Ou por que razão - mais isto, concedo, já é outro assunto - as autarquias do Porto, Gaia e Matosinhos estiveram, e bem, ao lado do centro de produção da RTP Porto e não se pronunciaram sobre o JN, único diário no Norte? Ou por que razão a Câmara de Gaia anunciou que queria ser accionista da agência Lusa para evitar uma putativa privatização, alegando como interesse a democratização da informação, e nada disse sobre o JN?
Antes de ir embora, o Jorge disse que todos temos culpa do que está a acontecer-nos. E é verdade. E continuaremos a acumular culpa se continuarmos a querer desmascarar os pecados dos outros e a varrer os nossos para debaixo do tapete. Se continuarmos a querer sacar a verdade aos outros para emoldurar belas manchetes e pouparmos os nossos do cumprimento dos mínimos olímpicos da verdade.
Infelizmente, a greve não repõe esse implacável desejo de verdade pelo qual pauto a minha vida e que me fez querer ser jornalista. Nem me dá a sensação de estar a salvar um colega que seja. Não é uma desculpa cobarde, é um apelo de consequência. Gostava que fôssemos mais longe, muito mais longe, do que uma greve de sindicato.
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