segunda-feira, julho 14, 2014

Paulo José Miranda: A máquina do mundo


"O medo existe. O medo é real; não é um estado de espírito como o amor. Não podemos construir o amor com as nossas próprias mãos, mas podemos construir o medo com as mesmas mãos que nada podem fazer para a construção do amor. (...) Há ainda ingénuos que pensam que o pior que pode acontecer é estar vivo! A tortura é muito pior que estar vivo. O mundo caminha para muito pior que estar vivo. Felizes aqueles que estão tristes! O medo fica para além da tristeza. A tristeza é um medo pequenino, um medo de crianças. O mundo e o medo estão a crescer. O ser humano só é triste antes de ser torturado. A tortura acaba coma tristeza. A tortura é o exercício máximo de poder. Através da tortura mudamos o destino, mudamos a natureza das coisas. 

(...) Os objectos, as coisas são substitutos das faltas que não conseguimos colmatar nem explicar. Sente-se um vazio enorme dentro de nós, como a fome. Um vazio enorme à nossa volta, continuamente à nossa volta, como um cão abandonado a pedir comida. E, perante isto, o que fazemos? Damos-nos coisas, compramos coisas. E o tamanhos das coisas que nos oferecemos não é necessariamente proporcional ao nosso vazio. Neste vazio, e na invenção da sua sublimação, está provavelmente a origem da violência. A violência é o modo mais eficaz de se apagar o vazio dentro de nós, de fazê-lo parar de correr ao nosso redor. (...) Querer negar a violência é querer negar a própria história do homem, negar até o próprio homem. Há entre a humanidade e a violência uma indesmentível e forte ligação.

(...) O mundo não é outra coisa senão uma empresa, a Existe Lda., na qual apenas alguns participam nos lucros, e os outros fazem o que lhes mandam, ainda que julguem que não é assim, que não estão a ser mandados, que têm livre-arbítrio social e político, ao invés de estarem a ser manipulados por quem realmente manda, por quem realmente decide, por quem tem os dados nas mãos."

[É oficial: Paulo José Miranda é a melhor coisa que nos aconteceu este verão. Por razões outras que não a de querer proteger-nos de uma ressaca, o mercado livreiro brindou-nos com três livros do autor ao mesmo tempo, os três completamente diferentes, mas o resultado final é esse: proteger-nos da síndrome de abstinência em que mergulharíamos se não pudéssemos imediatamente saltar para outro livro. "A máquina do mundo", com maravilhosas ilustrações do André Carrilho, é absolutamente genial! Não é sobre a violência, é violento, é para maiores de 18 anos, impõe bola vermelha no canto superior direito, obriga a esgares de terror que geralmente só fazemos no cinema. É sobre mercados, sobre dinheiro, sobre política, sobre poder. Sobre morrer ou matar. Tudo em cima da mais subtil das metáforas: o que faríamos se tivéssemos cinco vidas para desperdiçar antes de perdermos? E se o amor correspondido fosse uma das duas únicas formas de ganharmos uma vida extra? É sobre existir ou viver. Absolutamente magnífico.]

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