Revienga no Herberto: se eu quisesse, enlouquecias. Sei uma quantidade de comentários terríveis. (Finta, passa, recebe na linha, cruza, bola na meia-laranja, remata Assírio, golo. Golo!)
Hitler Salazar Torquemada, nazi fascista, inquisidor evangelista, ateu funcionário cientista, republicano reviralhista, imperialista colonialista comunista, estalinista maoista castrista, branco preto amarelista, azedo cadáver modernista, imberbe pelintra caciquista, judeu crente islamista, lobo borrego abrilista, isolado pascácio centralista, censor acelerado passadista.
Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio...
(Está tudo no Herberto, mas não está.) Há poesia suficiente nas caixas de comentários para mil servidões, dez mil ofícios, cem mil mortes, mil milhões de photomatons &. Não há estratégia nenhuma nisso – editorial ou outra. Se houvesse, enlouquecias. Se eu quisesse, se tu quisesses, enlouquecíamos todos.
Se o mundo desabasse, os comentários online resistiriam. Contra a entrega da soberania do planeta às poeiras cósmicas, contra o fim, contra o nada. Se o desaparecimento do mundo durasse o suficiente, haveria quem comparasse o fenómeno ao III Reich ao Holocausto aos gulags à ocupação do Tibete ao genocídio do Ruanda ao neoliberalismo estatista ao Sócrates.
Qual é o problema do Corinthians? Ninguém se entende. Não sei se, a certa altura, não é bom haver seis meses sem democracia, mete-se tudo na ordem e depois, então, venha o Benfica. Nunca me deu para insultar o árbitro. Nem nos jogos do Varzim. Palhaço! Palhaço! Anda um tipo a segurar as taxas de juro, a agradar aos mercadinhos aos machadinhos, e isto é penálti?
Tenham calma, tudo se resolve. Não não não: esperem. Tenham calma. Leiam tudo. Leiam até ao fim. Aqui ninguém é pago pela CIA, ninguém é ex-KGB. Que as sardinhas me caiam no lume. Vá, olhem o coração, o aneurisma, as hemorróidas. Ninguém se desgraça. Todos a contar até dez. Inspira, expira. Inspira, expira. O que pensa que vai fazer? Pouse essa palavra no chão – é uma ordem! Vamos jantar ao bom-senso – pronto, está resolvido. Mantemos o Velho Oeste no cinema e ninguém se mexe até o filme acabar. Até o texto acabar. Até acabarmos todos.
A vida. Inteira. Acontecimento. Excessivo. Tem de se arrumar muito depressa e felizmente há o estilo, diz o Herberto, mas para ele é fácil e para os outros não é tão simples, não é só acordar às quatro da manhã e rezar pela literacia dos leitores, embalar e mandar para a gráfica, não é assim, às três da manhã estão a assar-nos a carne e às cinco roem-nos os ossos. Moem-nos durante o sono e acordamos com aspas. Jornalistas com as aspas. Gente com aspas.
Ninguém.
Participa, filho, participa. Seu vendidozinho mangas-de-alpaca, meu pós-modernistazinho, minha bomboca revolucionária. Senta-te direito! Porta-te como um homem! Finge que és 2.0 e esconde-te nos outros. Evangeliza, filho, evangeliza. Só sobrevivem os irredutíveis. Só dialoga quem nunca se engana. Só tem dúvidas quem não puxa pelo Google. Faço-me entender?
Fazer sentido está sobrevalorizado. A política está sobrevalorizada. A cultura, a educação, a saúde, as viagens, os vinhos, a gastronomia, a ciência, a tecnologia. Tudo está sobrevalorizado: segundo os mais recentes estudos, acabaremos todos por morrer. Não sabiam? Isto é um jornal ou um pasquim sem préstimo? Já não é o que nunca foi e eu tenho muito pena. Tanta.
Quando foi a última vez que pediu o café e a torrada, e disse ao empregado: o senhor é um ignorante, um cábula, uma besta? Quando foi a última vez que: o senhor anda conluiado com as forças ocupantes da manteiga e com os lacaios do pão às postas. Não tem geleia? Censura!
Estamos tão focados nas falhas dos outros que não damos conta de como as repudiamos e de como as debatemos. As caixas de comentários online são usadas para expelir agressividade e desconfiança. Conversamos ao ataque e, por vezes, debitamos generalidades antes de ler. Mesmo quem lê vocifera. Como se estivesse num processo visceral, como se escrevesse poesia: não aguentamos a desordem estuporada da vida. Toda a democracia digital para isto.
Não são os trolls, somos todos. Uns mais do que outros. A maior parte suficientemente contida para passar na moderação. Apontamos muitos dedos. “De facto, se os participantes num debate online deixassem de se envolver em ataques ad hominem, os debates teriam relativamente pouca incivilidade”, diz-nos um estudo publicado no Journal of Communication. Então, por que não? E por que não ouvir, tolerar, respirar? E não misturar: para tudo, o Passos, o Cavaco, o poder, a corrupção. Cada pé em seu sapato. E bola para a frente.
* Hoje, no P3, o melhor texto que lemos nos últimos tempos
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