... dois discos maravilhosos, o concerto possível. Wild Beasts.
sábado, maio 31, 2014
sexta-feira, maio 30, 2014
quinta-feira, maio 29, 2014
Mark, you're not dead and i love you.
Há momentos na vida em que achamos que temos o monopólio da tristeza, a mais baixa auto-estima, que estamos sozinhos e que nada no mundo pode salvar-nos. Depois aparece Mark Eitzel em auto-desvalorização constante recheada de humor ácido, e percebemos que está tudo bem. Ou tudo mal, mas que há belas canções sobre isso. Mark Eitzel tocou esta noite em Espinho - "Adoro esta cidade! É tão deprimente! Sinto-me em casa", disse ele a rir - e toca amanhã em Guimarães. Não é coisa que deva perder-se, mesmo! Mesmo que no fim ele diga: "Eu sou uma merda e vocês devem ter odiado este concerto".
Ricardo Costa: carta a um irmão político
Hoje, no Expresso diário
Não é a carta de Rilke a um jovem poeta, mas é uma daquelas cartas que não se lêem muitas vezes na vida.
Grande vénia ao Costa Júnior.
quarta-feira, maio 28, 2014
A Bíblia do PS
Em Portugal rasgaram-se os contratos de confiança das pensões, dos salários, quase se rasgou a Constituição. A realidade obrigava, dizem. E o povo, que remédio, aguentou. O PS está ligado às máquinas há pelo menos três anos, quando faz demonstração de vida quase sempre sai delírio, venceu as europeias à tangente sem ter apresentado uma ideia, embandeirou em arco num discurso de vitória estonteante que só pode ser desculpado se por aqueles lado tiver havido álcool, e prepara-se para perder estrondosamente as legislativas contra um governo que estilhaçou o país. Mas adaptar os estatutos para encontrar um novo líder é que não pode ser. Rasgue-se tudo, menos os estatutos sagrados do PS. É de homem! O PS deprime-me, pronto!
terça-feira, maio 27, 2014
Your love is killing me
Break my legs so I won't walk to you
Cut my tongue so I can't talk to you
Burn my skin so I can't feel you
Stab my eyes so I can't see
Break my legs so I won't run to you
Steal my soul so I am one with you
From a distance I am on to you
But I stab my eyes out so I can't see
sábado, maio 24, 2014
José Rentes de Carvalho: Portugal, a flor e a foice
José Rentes de Carvalho fala aqui de "um povo açaimado", visto como "folclórico, estúpido, pobre por culpa da sua própria ignorância", de "uma nação de estufa, com gente de fora", de um protectorado que mais não é do que "um eufemismo diplomático para exploração", de uma Constituição que embora garanta direitos fundamentais desde 1933, "não passa de um papel".
Escreveu tudo isto em 1975, no rescaldo da ilusão de que "o Portugal revolucionário ia ser exemplo, um passo em frente para uma Europa nova, o país cuja sociedade garantiria a cada cidadão um lugar digno", o que mais do que só apenas admirável, é impressionante. Pela lucidez a quente, pela
congruência de não ter querido viver em Portugal, e agora também pelo que parece ser a repetição da História."Um livro é bom e vale a pena quando nos fala ao coração. Se vem com charanga, tambores e foguetório, deixá-lo passar", diz ele. Este livro fala muito mais do que só ao coração. Não sou a primeira a dizê-lo e não hei-de ser a última: devia ser de leitura obrigatória.
"Ao guarda-livros [Salazar] não se pode dar desculpa, mas tem tem de se lhe dar um crédito: o de exigir que as despesas não ultrapassassem as receitas, e a submissão absoluta de todos os ministérios ao das Finanças. Desse modo, pela terceira vez em setenta e cinco anos, o orçamento do Estado apareceu equilibrado. (...) Mas acrescente-se o que os panegiristas sempre passaram por alto e o que os bajuladores nunca quiseram ver: orçamentos equilibrados graças à miséria atroz para quase todos, privilégios desmesurados para um pequeno grupo. Tudo isso em nome de Cristo, da Família e da Ordem, e de uma bizarra concepção de sociedade, infelizmente partilhada por mais, e exposta pela última vez num discurso do ditador proferido em 1967: "Sempre houve pobres, sempre os há-de haver, é preciso que os haja"
quarta-feira, maio 21, 2014
National a 7 de Junho no Primavera Sound
Matt Berninger tem sempre o coração amarrotado, a garganta arranhada, as entranhas desfeitas. Matt Berninger está sempre todo fodido. Nós absolutamente amamos Matt Berninger. Não é um silogismo, mas podia muito bem ser.
Em 2008, recém editado "Boxer", superadíssima prova de fogo depois do trampolim que foi "Alligator" (2005), Matt chegou a Guimarães para um concerto que não era de festival nem de estádio. Um concerto de jardim, início de noite, lua cheia, famílias inteiras, crianças pela mão, tantos ao engano. Sobe ao palco já bêbado, cambaleia, tropeça, quase cai. Segura-se, equilibra-se na garrafa de vinho que nunca larga e no pé de microfone que qualquer mulher desejaria ser. Despeja insatisfação, angústia, caos, frustração, estilhaços de coração. Diz-nos que vivemos semi-acordados num império falso (Fake Empire poderia ser hino mundial), que somos polidos pecadores, que facilmente os amigos se tornam (nos tornam?) perecíveis, que o amor desencontrado (ou perdido ou rompido, ou lá o que acontece ao amor quando nos trai o sonho e troca as voltas) enlouquece, que sentiremos falta da liberdade que fomos, que acabamos sempre a chorar.
Matt Berninger é um poço de problemas à espera de redenção, é itinerário terapêutico da catástrofe, é acrobacia temperamental a aprender a maturidade, é medo sanguíneo do que é bafiento, é uma espiral terrivelmente comovente. É uma revolução. E, em palco, era então apenas um embrião da explosão em que depois se tornou.
Volta em 2010, maior. Ao Meco. Ah, se fosse possível ver um concerto de joelhos! Com ele traz o ainda tenro "High Violet", promessa de felicidade, mesmo se tudo nele é tão pesado, aranhas e fantasmas incluídos. Contraditório e desesperado, como só a vida e o amor podem ser. “I'll try not to hurt anybody i like, but i don't have the drugs to sort it out”. Pois, quem tiver a poção que a partilhe. Inaugura aí a oração de apoteose com que passaria a acabar os concertos. "Vanderlyle Crybaby Geeks", esse arrepio contínuo que se alastra aos músculos, ordenando-nos de cor em coro, cúmplices e condenados: “All the very best of us string ourselves up for love”.O alinhamento é uma simbiose perfeita entre passado - todos os hits a que temos direito, Mr. November é via verde para outro mundo – e presente, Terrible love e Sorrow e Bloodbuzz Ohio e England a parecer que fazem parte da nossa vida desde sempre. E depois, um glorioso final com “About today”, marcha lenta em se ouve repetidamente, quão perto estou de te perder?, e que não é justo porque nos manda embora com vontade de chorar. Matt, incurável sofredor, podia ser fadista. É um amplificador de apocalipse, um miserabilista contagioso, é um trágico gigante. Não há banho de multidão que não seja merecido.
O ano seguinte foi ano de coliseus, Porto e Lisboa. E dessa prece inacreditável que inexplicavelmente não figura em qualquer disco, e que é provavelmente uma das canções mais bonitas e desarmantes alguma vez escritas, “Think you can wait”. Cândido desejo de espera, mesmo se não invalida a forte probabilidade de nunca conseguirmos vir a ser melhores. Sim, Matt Berninger é uma epifania e um sismo. É uma espada cravada no peito e um despenhamento que é bizarro porque é assustadoramente belo. Não o ouvimos para sentirmos que podemos ser salvos, ouvimo-lo para fustigarmos o delírio de qualquer esperança. Mas dançamos loucamente nesse prelúdio de desgraça. É quase sinistro. E simples. Gente de carne e osso que falha e avaria quando a carne dói e os ossos quebram. E ele canta sobre isso. Ele é isso. Matt Berninger faz magia com a dor. Simples?
Os últimos quase dois anos foram uma eternidade. Canções libertadas a conta gotas, um sexto disco que nunca mais chegava. Quando finalmente chegou (2013), trouxe Pink rabbits, e só isso faria valer a espera. Mas o disco não tem só essa "versão televisiva de coração partido", tem 13 canções, todas a arder, e mais uma que não está lá e deveria - Lean, outra prece indescritível. E tem também uma crítica ambígua, há quem esteja farto das lamúrias de Matt. Paciência. Matt gosta de tempestades, mas não gosta de relâmpagos. Neste disco parece que alguma tempestade passou - "When they ask what do I see, i see a bright white beautiful heaven hanging over me -, mas o título do álbum, The troubles will find me, antecipa que é fase provisória. É infalível, ele nunca escreverá sobre a felicidade, escreverá sempre só sobre o momento em que a felicidade desaparece. No fim acabamos sempre a chorar. "If you lose me, i'm gonna die".
Não é preconceito, mas não é indiferente o cenário em que se vê um concerto. Em 2005, Matt Berninger não era ainda Matt Berninger - era o vocalista dos National. Estreou-se em Portugal a partir de Coura, naquilo que deveria ter sido, como sempre é naquela colina mágica do Taboão, o início instantâneo de um caminho sem volta. Ainda meio desconhecido, já alcoólico, Matt foi nesse ano inevitavelmente ofuscado pela efervescência dos Arcade Fire. O Primavera Sound, irmão de sangue de Coura, é uma transfusão de milagre, é a oportunidade rara, que a música dá e a vida não, de ser a primeira vez outra vez, outra vez no lugar certo.
Matt Berninger é um conto de terror infantil para adultos. É a banda sonora das nossas vidas, onde nos sepultamos e ressuscitamos sem nunca sabermos em qual das duas fases vamos estacionar definitivamente. Sem pudor, com todo o exagero que justifica a vida e o sangue que nela corre, o concerto de Matt Berninger não é para gente equilibrada, que sabe relativizar os desgostos e avançar impermeável à dor, é para gente exagerada que faz de qualquer ferida uma melodramática hipérbole sem porta de saída. Seja qual for o alinhamento, será sempre o best of dos nossos desastres. Momento de devoção.
Sábado, 7 de Junho, no Parque da Cidade, no Porto. Faltam duas semanas.
terça-feira, maio 13, 2014
Dilema
19 de Julho é o meu 17 de Maio da música. O dilema - saída limpa ou programa cautelar - é: Portishead no Marés Vivas ou Kills no Meco?
segunda-feira, maio 12, 2014
José Sócrates, Rimbaud, Kerouac e Torga
[Em Matosinhos, no Festival de Literatura de Viagem]
Num país que adora odiar Sócrates, aquilo que é uma notável conferência sobre literatura de viagem pode facilmente ser reduzida a pó. Mas a verdade, para quem quiser despir-se do preconceito, é que é uma apresentação absolutamente extraordinária. Talvez tenha só faltado Thoreau. Ou não. Talvez fosse demasiado óbvio, não sei. Sei que já assisti a inúmeras conferências em que os oradores não se deram sequer ao trabalho de preparar o que iriam dizer. Sócrates preparou - e preparou muitíssimo bem. É uma viagem pela literatura de viagem. Vale mesmo a pena ouvir. Cinquenta minutos entusiasmados e entusiasmantes. Mas como só a voz dele irrita tanta gente, vale mesmo a pena ler.
Num dia em que a SIC encetou a série "Os dias da troika", é também a demonstração de que as pessoas podem mesmo reiventar-se.
"(...) Quando me falaram da viagem [tema da conferência], comecei a perguntar-me a que propósito se convida um ex-político, um político retirado, para falar de viagens. A política e a viagem têm muita coisa a ver. Daria para muitas conferências. Mas há uma particularidade em que a viagem se aproxima de forma definitiva da política. A acção política é lidar com o desconhecido, com o imprevisível, com a contingência. É sempre lidar com aquilo que não se pode prever. Porque tudo aquilo que se pode prever com exactidão não é entregue à política, é entregue ao nível técnico. E a política tem outra característica, que é a de ter que lidar com a sua própria frustração. Porque a política serviu sempre para ambicionar ir mais além, para ambicionar transpôr aquilo que conhecemos. Não há político sem imaginação. Ou pobre do político que não tem imaginação. Notei, aliás, ao longo destes anos que passei em Paris, estudando filosofia política, e tendo também algumas cadeiras de sociologia, que o que me separa do sociólogo é que o sociólogo tem a ambição de descrever a situação. Nenhum político tem essa ambição. A ambição do político é sempre a de mudar para melhor a situação. É por isso que o político pensa com a imaginação. Como dizia Fernando Pessoa, “sente com a imaginação”.
O que tem isto a ver com a viagem? A viagem também lida com o desconhecido, com o imprevisto. Quando partimos em viagem, o mais que desejamos é sempre lidar com alguma coisa que não conhecemos. Com o imprevisto, com a contingência. Há sempre alguma coisa de surpreendente que nos puxa, que nos apela.
Um grande filósofo disse, um dia, que “o grande exercício da política é também o eterno convívio com a decepção”. Também o viajante tem que aprender a lidar com a decepção. Quantas das nossas viagens são decepcionantes! Ou porque não estavam à altura daquilo que sonhámos que era o nosso destino, ou porque não conseguimos chegar, ou porque ficámos aquém. A viagem e a política têm essa mistura: a mistura de quem ambiciona sempre lidar com aquilo que não é conhecido, com aquilo que é imprevisto, com aquilo que é a contingência que as circunstâncias da vida nos trazem. Numa palavra, o que une a viagem e a política é o sentido de aventura. Não há político que não tenha o gosto pela aventura. Tal como não há viajante que não goste da aventura.
E tomei justamente para início de conversa um verso de um grande poeta de Trás-os-Montes:
“A aventura não é chegar, é partir”
É um verso de Miguel Torga.
Devo confessar que a primeira vez que comecei a interessar-me por Miguel Torga era já adulto. Lembro-me de fazer muitas vezes a viagem entre a Covilhã e a aldeia transmontana do meu pai, e de o meu pai tentar convencer-me da beleza das encostas durienses. E eu, menino da cidade, achava tudo aquilo rude e áspero. Para ser honesto, achava o campo insuportável. E depois, aquela viagem era absolutamente horrível! Aqueles doze quilómetros entre Lamego e a Régua eram absolutamente insuportáveis! Mas o meu pai insistia, nessa viagem, em chamar-me a atenção para a beleza das fragas. E eu achava aquilo apenas rude, achava aquilo apenas pedras. Não diziam nada de poético. Até que, um dia, li pela primeira vez a palavra “fraga” num poema do Torga. E foi aí que comecei a amar verdadeiramente Trás-os-Montes e a perceber o quão de poético há naquelas montanhas durienses.
Isto vem só a propósito de introduzir a minha conversa genérica com esta ideia: não há viajante que não adore a aventura. A viagem pressupõe isso mesmo, lidar com o desconhecido, com o pequeno grão de aventura. E a aventura, como dizia Miguel Torga, “não é chegar, é partir”.
É por isso que em toda a viagem há uma ambição de liberdade. Mas de tudo o que li – sou um apaixonado por viagens e pela literatura de viagens -, lembro-me de um dia ler uma entrevista de um actor já envelhecido, que na altura era muito charmoso, com boa aparência, que se chama Omar Sharif [protagonista de “Doutor Jivago”, 1965]. Era conhecido não apenas por ser um grande actor de Hollywood, mas também por jogar bridge. Um dia, perguntaram-lhe: “Olhe lá, porque é que você, sendo um dos grandes actores de Hollywood, é o único que não tem uma grande casa na Califórnia ou em Nova Iorque?” E ele respondeu assim: “Não tenho, porque não preciso. A minha casa são os hotéis das grandes capitais europeias”.
Imaginem a impressão que esta frase causou num miúdo – eu teria 14 ou 15 anos – que na altura vivia em Portugal. “Os hotéis das grandes capitais europeias”. Isto só é comparado com o verso de Cesário Verde, que também fala disto. Assim: “Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!”. Tudo aquilo foi uma impressão cosmopolita para quem vivia neste Portugal fechado da ditadura e sonhava com o mundo. A aventura, portanto.
Não há viajante que não adore a aventura. E a aventura tem sempre um aspecto de liberdade. Mas, na reflexão que fiz para partilhar esta noite, gostaria de dizer que acho que o viajante tem não um tipo de liberdade, mas vários tipos de liberdade. Gostaria de falar de três liberdades da viagem. Ou de três viagens e três liberdades.
A primeira viagem, ou a primeira liberdade, é a liberdade suspensiva. A liberdade provisória.
Viajamos, e quando viajamos esquecemos o fardo das nossas preocupações. Esquecemos também – por um tempo, é certo – os nossos assuntos, as nossas obrigações, os nossos hábitos, as nossas rotinas. Nessa viagem há sempre uma liberdade que consiste num certo desligamento. Desligamento da rede que nos envolve, dos sons, das caras, das imagens, das informações. É nisto que consiste a viagem. Mesmo as viagens curtas. Mas nessa viagem, por pequena que seja, há sempre uma certa descoberta. É a descoberta de que, afinal de contas, ficarmos privados das nossas ligações, da nossa rede, não é assim tão mau. E em vez de encararmos esse desligamento - das pessoas, dos assuntos, das informações – como uma privação, a maior parte das vezes, o que a viagem nos permite é olhar para tudo isso como uma libertação.
Sim, viajamos, partimos, desligamos. Mas descobrimos também que o mundo não acaba com a nossa partida. O mundo não se afunda. Nada desaparece, nada acaba quando nos libertamos disso. Vamos, e quando chegamos está tudo na mesma.
Essa descoberta é interessante. De certa forma, é descobrir a simplicidade. Primeiro, no sentido que, afinal, as nossas ligações, as nossas preocupações, só têm a importância que lhes queremos dar. Afinal, todos descobrimos, numa certa viagem, que as nossas preocupações estavam hipervalorizadas. Afinal, tudo se arranjou por cá. Já fui primeiro-ministro. E sei que, apesar de tudo, depois de quinze dias fora, quando regressava, estava tudo igual.
Tão imprescindíveis que nós somos! E basta uma viagem para percebermos que afinal não somos assim tão necessários. E é assim que descobrimos a simplicidade. Mas também num outro sentido. Em todas as viagens descobrimos um pouco melhor aquilo que ocupa grande debate nos mundos da filosofia, que é a separação entre o útil e o fútil. Quantos de nós, em viagem, não descobrimos que afinal tudo aquilo de que nos ocupamos tem uma grande dose de futilidade? E quantos de nós não descobrimos já em viagem que afinal aquilo que é verdadeiramente útil permence desvalorizado nas nossas preocupações diárias?
É por isto que a viagem, e esta liberdade suspensiva, é um convite e uma bênção que nos dá essa possibilidade, essa oportunidade, essa aventura de descobrirmos também a nossa simplicidade. Afinal, nada é assim tão importante quanto pensámos. Afinal, o mundo pode viver e tudo marchar e tudo avançar sem nós. E afinal o que é verdadeiramente útil é menos do que aquilo que nós pensávamos.
Simplicidade.
Poucos contactos, pouca informação, poucas trocas, e pode ser mesmo pouco tempo. Mas esse tempo faz-nos bem. É aquela viagem de que regressamos e nos dizem: “mudar de ares fez-te bem”. Na viagem há essa libertação. Uma libertação a que eu chamaria liberdade provisória. É uma liberdade suspensiva. Suspendemos aquilo que eram as nossas rotinas, as nossas obrigações, os nossos deveres e partimos. E nesse partir há sempre esta felicidade de reencontrar a liberdade. Que é uma liberdade provisória, é uma liberdade entre parêntesis. É apenas um parêntesis e isso é a característica desta viagem. Partimos felizes, mas regressamos também felizes. E regressamos com vontade de regressar. Parti, mas regressei. Parti com a felicidade de me libertar da velocidade, da excitação, da fadiga, do atordoamento. Mas fico feliz por regressar à mesma velocidade, ao mesmo atordoamento, à mesma fadiga, ao mesmo esquecimento de nós e às vezes ao esquecimento dos outros. Regressamos ao quotidiano, regressamos à vida, àquilo que nos faz andar - e depressa.
Esta é a primeira liberdade de um certo tipo de viagens que todos nós já fizemos. Interrompemos a nossa vida e partimos. Claro que muitos dirão: será isso uma verdadeira libertação? Já veremos. Mas há nisso um certo sentido de aventura. Claro que há muita gente que nunca viajou. Mas o verdadeiro viajante parte sempre com o sentido da aventura.
Nunca viajo com muitas pessoas. Viajar tem de ser com poucas pessoas. Com muitas pessoas é viajar em colmeia. Como numa sociedade, começamos também a querer ter o nosso papel naquele conjunto. Nada disso! É preciso partir, viajar com poucas pessoas. Isso é fundamental. E, por outro lado, não ter tudo planeado. Não saber onde vamos estar às cinco da tarde. Partir significa não saber exactamente o que se vai fazer. Não há maior liberdade do que essa, de partir sem se saber quantas horas exactas é que vamos demorar, para onde vamos exactamente e quantos dias vamos ficar.
É esta a primeira liberdade de um certo tipo de viagem - a liberdade suspensiva.
Mas há uma segunda liberdade. E essa é talvez um pouco mais agressiva, mais rebelde. A primeira permite um desligamento, mas é provisória. Vamos e voltamos. E ficamos até felizes de reencontrar o mundo. "Escapo à rede durante uns dias, faço nos caminhos desertos a experiência da liberdade fora do sistema, mas volto. Volto e reencontro-me com o sistema."
Mas nesta segunda liberdade já não há voltar, há apenas partir. É a liberdade da ruptura. É a viagem como ruptura.
Muita literatura convida-nos a isso, é a viagem em que há a liberdade de decidir romper. “Vou e não quero voltar”. Aqui reencontramos certamente os apelos que a viagem nos dá como transgressão. E como apelo ao grande exterior. Isto lembra-me, imediatamente, “On the road”. Kerouac. A viagem, mas não como vontade de interromper, de fazer um intervalo, de ir. A viagem de Kerouac não era para voltar, era só para partir. Porque há viagens que não são provisórias, são de ruptura. E o que Kerouac nos queria dizer no livro “On the road” é que é preciso viajar, mas para longe de tudo, viajar para romper. E romper com quê? Romper com as convenções estúpidas e imbecis. Viajar para fugir da segurança que nos adormece nos muros da cidade, daquilo que damos por adquirido. Viajar para fugir das repetições. Viajar para fugir do aborrecimento. Da frivolidade daqueles que estão tão bem instalados que já são incapazes de nos dizer alguma coisa de novo.
Esta é a liberdade que uma viagem dá como forma de transgressão. Uma viagem alimentada pela imaginação, uma viagem alimentada pela loucura, pelo excesso, pelo sonho. Essa é a viagem de Kerouac.
E atenção, esta viagem, partir como acto de rebeldia, de transgressão - “Não, não aceito as vossas regras! Quero ir para outro sistema! Ou ir para fora do sistema!” - não é tanto a ideia da procura de si mesmo. Esta liberdade de ruptura não é tanto a procura do "eu" que se deve libertar das alienações presentes para procurar um "eu" autêntico, a identidade perdida. Há gente que faz essas experiências, que acha que o seu "eu" está alienado, isto é, transformou-se naquilo que não queria ter-se transformado. Por força das circunstâncias, por força da sociedade, das convenções, das regras. E procura um "eu" perdido. Não, não é isso. É porque esse "eu", mesmo perdido, continua a ser alguém.
E ser alguém, o que é? É ter um nome, é ter uma história, é ser um "eu" que nós passamos a vida a contar a nós próprios nos salões mundanos em que nos encontramos. Falamos de nós e os outros falam deles. E toda a gente sabe que está a representar o seu papel. Este "eu" é uma coisa boa para esses salões. E também talvez para os gabinetes dos psicólogos. Porque para ser alguém é preciso ter um papel na sociedade, é preciso ter obrigações. Esse "eu" é uma ficção que carregamos nos nossos ombros, como alguém disse. A liberdade da ruptura não significa ir à procura do "eu" perdido, do "eu" autêntico, do "eu" libertado das convenções. Não. A liberdade da ruptura consiste em assumir que não somos ninguém. "Não sou ninguém enquanto viajo, sou apenas um corpo sem história, um animal de duas pernas, mas que vive essa intensa liberdade de contacto com a natureza." É por isso que, para Kerouac, a liberdade exaltada que se descobre nas montanhas, ou não apenas no contacto com a natureza, mas também nas festas, nos excessos, na droga, nos sonhos, essa liberdade exaltada é a liberdade de viajar como recusa, como rompimento. Porque há nisto também um sonho, o sonho de romper com aquilo que é a civilização.
Isto era uma literarura que estava muito em voga nos anos 70, e que fez parte da minha geração. Romper com uma civilização declinante, decadente, que não amamos, em que não nos sentimos integrados, uma civilização apodrecida, poluída, alienante, desprezável.
Esta não é uma viagem em que vamos e voltamos. É viajar para sempre, para o grande fora, para lá do sistema. “Não, não quero mais nada convosco. Vou retirar-me de vós e vou viajar para sempre.”
Kerouac dizia isto de uma forma muito bonita. Dizia ele que, ao ler [Walt] Whitman, lia um mundo de pessoas errantes que se vão encontrando nas estradas, de pessoas que recusam ser uma peça da engrenangem. “Não, não quero ser um consumidor, não quero comprar as coisas que estão à venda, nem quero produzir as coisas que estão à venda! Não me fazem falta frigoríficos (hoje, diríamos computadores), nem nenhuma dessas máquinas. A única coisa que quero é pôr um saco às costas, ter uma estrada e partir.” Isto levou a que milhares e milhares de americanos fizessem essa experiência da viagem. Normalmente para Oeste, para fora do sistema.
Entre a primeira liberdade e a segunda há uma grande diferença. A primeira é suspensiva. Em linguagem marxista, uma libertação burguesa. “Vamos, mas voltamos. Vamos, mas vocês esperam por nós”. Há nisso uma certa liberdade, mas esta liberdade de Kerouac é uma liberdade que não tem retorno. E é uma liberdade que eu, talvez na minha fantasia, sempre considerei acima da outra. Nunca tive essa coragem de partir. Partir sem destino. Isso sim, uma aventura. Nunca tive. Mas esta liberdade, a liberdade da ruptura que essa viagem dá, é uma liberdade acima da outra.
Esta é a segunda liberdade, a segunda viagem.
Mas há uma terceira. Esta é mais rara, mas também mais sublime. E para explicar esta terceira liberdade talvez deva expôr aquilo que na tradição da filosofia hindu são consideradas as diferentes etapas da vida.
Na tradução da filosofia hindu, o homem tem quatro etapas.
A primeira etapa é a do jovem que aprende, da criança que é aluno, aprendiz, discípulo. É a fase da vida em que devemos obediência aos nossos mestres, em que aprendemos os códigos da vida em comum, em que escutamos as lições, em que nos são dados os bons exemplos, os bons exemplos de conduta, os heróis que devemos apreciar. Essa é a juventude da vida.
Depois, há uma segunda fase da vida. É a fase de adulto. O casamento, a família, o trabalho, as obrigações sociais, a carreira, o nosso papel na sociedade. Essa é a fase adulta, aquele momento de maturidade em que a sociedade confia em nós para fazermos aquilo que é necessário fazer. Por nós e pelos outros.
Mas há uma terceira etapa, que é aquele momento em que os nossos filhos já estão criados, em que porventura já não necessitam de nós. Nessa altura, já podemos libertar-nos da carga social, das obrigações familiares, daquilo que são as nossas preocupações económicas. Esse é o momento que é descrito nessa filosofia como a ida para a floresta. “Vamos para a floresta, já não precisam de nós." E porventura também para aliviar do fardo que já somos para os outros. "Vamos para a floresta."
A literatura descobre então essa imagem do viajante. Ou melhor, ainda não do viajante, mas do ermita, daquele que vai à descoberta de si próprio. “Pronto, acabou a minha vida mundana, acabou a minha vida de responsabilidade, e agora é o momento para a meditação e para a redescoberta de mim próprio." Recolhimento e meditação. É a terceira etapa.
Mas há uma quarta, em que depois de aprender a viver com aquilo que é imutável em nós, o nosso "eu" liberto de todos os constrangimentos sociais, das máscaras sociais que utilizamos, das identidades que ostentamos, da história do passado, liberto disso tudo, esse "eu" então inicia a errância. É aí que surge a quarta fase, a da peregrinação.
“Reconcliado comigo próprio, sabendo quem sou, vou então por esse mundo.” E nessa fase, na passagem do ermita ao peregrino, há uma viagem infinita, uma itinerância constante. E nessa itinerância, o que há? O que vejo aí? Essa partida, depois da meditação, da reflexão, do recolhimento, é uma coincidência entre aquilo que somos - o "eu" que já não tem nome, nem história, nem carreira, que já não é quem foi – e o nosso coração, que está um pouco espalhado por todo o mundo. É por isso que o ermita anda, anda porque o seu coração está em todo o mundo. Mas ele já não é ninguém. Já não é ninguém a não ser ele próprio.
Esta é a liberdade daquele que renuncia, daquele que se afasta de tudo aquilo que nós amamos no mundo. Daquilo que são as nossas prepcupações, daquilo que são as nossas ansiedades. E esta é, para quem ama a viagem, para quem entende a viagem, a mais alta das liberdades que a viagem pode dar. É o desligamento perfeito. Porque já nada conta.
“Já não conta o meu passado, nem a hora que é, nem quantas horas faltam para chegar, já nem sei para onde vou, nem sei por que razão vou. Apenas vou”.
É nesse momento que nos sentimos livres da prisão do inferno. A prisão do nosso nome, da nossa identidade, da nossa profissão, da nossa carreira. Porque tudo, nesse momento, nos parece mesquinho, minúsculo e sem importância. O que é bonito.
E agora vou citar um dos autores com base nos quais fiz esta reflexão, porque ele só fala disto. Diz ele:
“Indiferente ao passado e ao futuro, não sou nada mais do que o eterno presente.”
É neste momento em que renunciamos a tudo, que tudo nos é dado.
É no momento em que já não reclamamos nada, que tudo nos é oferecido.
Se quiserem ler mais sobre esta libertação que a viagem permite, aconselhar-vos-ia a lerem os “Cadernos de peregrinação”, de um tal Swami Ramdas, que li há uns três anos e que é absolutamente extraordinário, permitindo-nos o convívio com a filosofia hindu.
São estas as três liberdades que sempre encontrei na literatura de viagens.
O que é que têm em comum? A aventura, o partir.
Há uma liberdade que é provisória, entre parêntesis, é uma liberdade só por um momento. Mas isso já é alguma coisa, se a soubermos aproveitar. Isso é uma redescoberta daquilo que é verdadeiramente importante e do que não é. E também uma oportunidade de conhecer mais. Depois vem a liberdade da ruptura, a viagem como ruptura. “Não vou. Parto! Parto porque não gosto das vossas regras, não gosto do vosso sistema e quero estar fora.” E há esta liberdade final, que é a liberdade de quem renunciou a tudo. “Já não faço nada por ser contra, já não faço nada por ser a favor. Estou apenas acima.” É a liberdade de quem renuncia.
Liberdade provisória
Liberdade da ruptura
Liberdade da renúncia.
São estas as três liberdades que vejo em várias viagens. Não que tenha feito, mas que de certa forma partilhei lendo sobre essas viagens.
Depois, pensei também que para vos falar da literatura em viagem, devia falar-vos de um autor. Sendo português, isso convidaria a falar-vos de um português. Porque do que não temos falta é de literatura sobre viagens. Toda a grande literatura portuguesa foi sempre sobre a aventura. Camões, Pessoa, Cesário Verde, que aliás não viajou muito, mas sonhava com imaginação. Tal como Pessoa.
“Há um terraço sobre uma coisa ainda
Ah, e essa coisa
Essa coisa que é linda”
Poder-vos-ia falar sobre a “Peregrinação”, talvez o grande livro de viagens que nós temos. E que beleza de livro! Mas decidi falar-vos não de um português, mas de um francês que descobri recentemente. Ou talvez não tão recentemente. Descobri-o por acaso, numa viagem que fiz, dessas da liberdade suspensiva, já era primeiro-ministro. Decidi passar o fim-do-ano no deserto da Argélia com os meus dois filhos. E lá fomos os três. E foi uma viagem tão interessante! E uma das coisas que contribuiu para esse interesse foi ter tropeçado num verso deste poeta de que vos quero falar. Este poeta também visitou o sul da Argélia.
E disse assim, quando terminou a viagem:
"Bom, agora está feito.
Agora sei como saudar a beleza"
Achei aquilo esmagador. E comecei a interessar-me por aquele poeta. E li não apenas a sua poesia como a sua biografia. Esse poeta chama-se Rimbaud. E teve uma vida extraordinária. E se queremos saber alguma coisa de viagem, podíamos saber tudo com a vida de Rimbaud.
Rimbaud teve um grande amigo, [Paul] Verlaine, que um dia disse que ele era “um homem com solas de vento”. Solas de vento. Um caminhante. E o que é que vejo em Rimbaud? Vejo a vontade da escapada, a vontade de fugir, a vontade de partir.
Aos 15 anos, fugiu pela primeira vez. Manhã cedo, sem dizer nada a ninguém. Fugiu para Paris, alimentado pela vontade de se fazer conhecer, de mostrar os seus versos, de os ler em voz alta, de se fazer amar como todos os poetas gostam. Fugiu para Paris. Uma viagem que não correu bem. Ele morava em Charleville. Caminhou até apanhar o comboio, e como tinha pouco dinheiro não pagou o bilhete. Quando chegou a Paris foi preso pela polícia, acusado de roubo e vagabundagem. Passou uma noite na prisão. Foi em seu socorro o seu mestre de retórica (ele era um excelente aluno) e libertou-o da prisão. Mas essa viagem foi frustrada. Tinha 15 anos.
Depois, foi para a terra de seu mestre, onde esteve mais uns meses e voltou a fugir. Manhã cedo, sem dizer nada a ninguém. Foi para Charleroi, onde se foi oferecer para ser jornalista de um jornal. Recusado. E depois para Bruxelas, sempre a pé, sempre caminhando. E ao longo destes meses, destes anos, construiu das poesias mais bonitas sobre a viagem e sobre a caminhada. É uma poesia de uma alegria, de uma juventude, de um prazer e de uma confiança em si próprio absolutamente extraordinários. É uma poesia que conta não apenas as partidas, as viagens, mas também o repouso nas estalagens.
"Feliz, estiquei as pernas sobre a mesa."
Aquele é um momento único! Aquilo canta a juventude, a vontade, a bondade, a crença em tudo!
Volta depois à sua terra e prepara nova fuga para Paris. Acontece que é surpreendido nessa viagem com a guerra franco-prussiana. Tudo isso bastou para lhe estragar a viagem. Ele ia para Paris para conhecer a literatura e o assunto que encontrou foi a guerra e não a literatura. Mas, ainda assim, deu-lhe para ver as vitrines da livraria, para conhecer o que ali se fazia em poesia. Tudo isto dormindo nos barcos de carvão. Mas... teve que regressar. Regressou por causa da guerra, atravessando as linhas inimigas, e voltou à sua terra. Mas quando chega - este rapaz devia ter uns 16 anos – dá-se a comuna de Paris. E ele, que tinha tido uma via pia e católica, e que se tinha revoltado contra tudo isso, ele que tinha escrito uma constituição comunista, ele que era um anticlerical feroz, foi impedido de participar. Há dúvidas sobre se ele foi ou não a Paris durante a comuna nessa Primavera. Mas, tendo ou não tendo ido, a verdade é que foi depois uma outra vez, em Outubro desse ano. E, nessa altura, leva já o seu livro “Bateau ivre”. Barco embriagado. Uma poesia absolutamente resplandecente. E leva isso como penhor, como identificação. “Aqui está, sou eu. Rimbaud”.
Não sei se já viram uma fotografia de Rimbaud. Olhos azuis, rapaz frágil e romântico, uma bela cara com uns olhos azuis sonhadores. Tudo nele me faz lembrar um poeta frágil. Mas a verdade é que, a partir daí, vai para Paris, mas já com viagem marcada. Avisa a mãe. Uma espécie de viagem oficial. Verlaine já está à espera dele. E escreve: “Venez, venez vite, grand âme chére!” Vem, vem depressa, grande alma querida.
São três anos de encantamento, ele e Verlaine, companheiros de muitas viagens, uma relação tempestuosa, com discussões monstruosas, mas também com reconciliações sublimes.
E chegamos ao final dos seus 20 anos. Ele está ainda em Paris e já tem uma reputação. Mas é uma reputação horrível, de poeta excêntrico, de miúdo insolente, grosseiro, mal educado. E, ainda por cima, alcoólico inveterado. É nessa altura que publica dois dos seus grandes livros: “Um saison enfer” [Uma temporada no inferno] e “Illuminations”. Estas publicações foram um desastre. Não só não conseguiu pagar ao editor, como vendeu poucos livros.
Tinha 20 anos. Em 1875. Nunca mais escreveu um poema. Escreveu depois muitas cartas, mas nunca mais um poema. E entre 1870 e 1875, em cinco anos, um jovenzinho, um rapaz, mudou por completo a literatura mundial. Cinco anos. E se lerem a sua poesia, vêem que ele evoca sempre a viagem. Talvez a expressão que ele mais utiliza é “Allons”. Vamos! Claro, tem vinte anos.
E depois tem mais duas fases na sua vida. Isto, para resumir. Uma fase em que decide, depois da sua separação de Verlaine, dedicar-se às grandes viagens. Decide ir à Rússia, não chega lá, fica em Viena, mais vai. Vai a Milão, vai a Estocolmo..., mas são sempre viagens de ida e de volta. No Inverno ficava em casa, a aprender línguas, partia na Primavera.
Como ele diz:
Allons, chapeau, capote, les deux poings dans les poches, et sortons!”
Não há melhor hino à viagem do que este.
Diz ele: "Je suis un piéton, rien de plus". Eu sou um caminhante, nada mais.
Esta segunda etapa da sua vida foi dedicada às grandes viagens, mas na Europa.
Mas há uma terceira etapa. Esta sim, a mais deliciosa. É a etapa em que ele decide viajar, sim, mas para o Sul. Para a luz. Para a luz encandescente. E então vai para Chipre, para a Argélia, para todo o sul. As viagens mais extraordinárias, mas que incluem sempre montanhas e deserto. Montanhas e deserto. Dez anos de aventuras, de viagens. E sempre a mesma ideia: é preciso partir, aqui é que não.
Diz ele:
"Ici c'est impossible. Ici c'est atros. Au revoir ici. N'importe qu'os."
Adeus aqui, não importa para onde. Encontram verso mais aventureiro do que este? Adeus aqui? Não importa para onde?
Em 1891, Rimbaud tinha 36 anos. Depois de tudo isto, das fugas da casa materna, manhã cedo, sem dizer nada a ninguém, sem dinheiro, das fugas para Paris, das excursões à Bélgica, da travessia dos Alpes, da ida a Viena, de dez anos no Sul, do deserto, ele que achava que a melhor coisa que tinha eram as suas duas pernas excelentes, o joelho começa a inchar, a inchar...
No hospital de Marselha, amputam-lhe a perna. Mas depois de lhe amputarem a perna, ele quer partir uma última vez. E contra a vontade dos médicos, e da irmã que o acompanha nesses últimos tempos, impõe uma última viagem. Para o Sul. A viagem é um calvário. São 16 as pessoas que contrata para o levar. Mas ainda tem a esperança de conseguir uma perna artificial, que só pesa dois quilos. “Com essa perna vou regressar à viagem”.
Não regressará. Regressa, isso sim, ao hospital de Marselha. Nas memórias da sua irmã, a parte que mais gosto é a do delírio dele. Delírio de quem já tem poucos dias de vida. O delírio: ele vê-se de novo a caminhar. Allons! Quantas vezes pronuncia esta palavra! Allons! “É necessário organizar a caravana, é necessário procurar os camelos”. "Vite, vite! On vous attend. Fermez des valises et partons!"
Morreu no dia 10 de Novembro de 1891. Tinha 36 anos.
E nos registos dos falecidos, no hospital de la Conception, em Marselha, pode ler-se: "Né á Charleville. De passage à Marseille"
De passagem. Porque afinal esta é a marca da vida de um dos maiores poetas que o mundo teve. Ele sempre esteve de passagem. Ele veio a Marselha apenas de passagem. Ele passou por este mundo... de passagem. É isto que caracteriza a viagem: esta arte da passagem. Porque a viagem é a aventura. E "a aventura não é chegar, é partir."
domingo, maio 11, 2014
A imprescindível entrevista do ex-conselheiro de Durão Barroso
Entrevista obrigatória por todas as razões e por mais três essenciais:
1) compreender a origem da crise do euro e a causa dos sacrifícios que nos estão a ser impostos, ou seja, a maratona de mentiras que nos contam desde há três anos;
2) perceber em que tipo de escroques temos andado a votar para as eleições europeias;
3) a terceira e a mais importante: numa altura em que se prepara o tão ansiado balanço dos dois mandatos de Durão Barroso na Comissão Europeia (dez anos inteirinhos), compreender o que significa a sua célebre frase: "Fiz tudo o que podia por Portugal". Está aqui, nesta entrevista, exactamente a ajuda que deu. Simples, o passo em frente para a ruína, foi isso.
Philippe Legrain, foi conselheiro económico independente de Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia, entre Fevereiro de 2011 e Fevereiro deste ano, o que lhe permitiu acompanhar por dentro o essencial da gestão da crise do euro. A sua opinião, muito crítica, do que foi feito pelos líderes do euro, está expressa no livro que acabou de publicar “European Spring: Why our Economies and Politics are in a mess”.
A tese do seu livro é que a gestão da crise da dívida, ou crise do euro, foi totalmente inepta, errada e irresponsável, e que todas as consequências económicas e sociais poderiam ter sido evitadas. Porque é que as coisas se passaram assim? O que é que aconteceu?
Uma grande parte da explicação é que o sector bancário dominou os governos de todos os países e as instituições da zona euro. Foi por isso que, quando a crise financeira rebentou, foram todos a correr salvar os bancos, com consequências muito severas para as finanças públicas e sem resolver os problemas do sector bancário. O problema tornou-se europeu quando surgiram os problemas da dívida pública da Grécia. O que teria sido sensato fazer na altura – e que era dito em privado por muita gente no FMI e que este acabou por dizer publicamente no ano passado – era uma reestruturação da dívida grega. Como o Tratado da União Europeia (UE) tem uma regra de “no bailout” [proibição de assunção da dívida dos países do euro pelos parceiros] – que é a base sobre a qual o euro foi criado e que deveria ter sido respeitada – o problema da Grécia deveria ter sido resolvido pelo FMI, que teria colocado o país em incumprimento, (default), reestruturado a dívida e emprestado dinheiro para poder entrar nos carris. É o que se faz com qualquer país em qualquer sítio. Mas não foi o que foi feito, em parte em resultado de arrogância – e um discurso do tipo ‘somos a Europa, somos diferentes, não queremos o FMI a interferir nos nossos assuntos’ – mas sobretudo por causa do poder político dos bancos franceses e alemães. É preciso lembrar que na altura havia três franceses na liderança do Banco Central Europeu (BCE) – Jean-Claude Trichet – do FMI – Dominique Strauss-Kahn – e de França – Nicolas Sarkozy. Estes três franceses quiseram limitar as perdas dos bancos franceses. E Angela Merkel, que estava inicialmente muito relutante em quebrar a regra do “no bailout”, acabou por se deixar convencer por causa dolobby dos bancos alemães e da persuasão dos três franceses. Foi isto que provocou a crise do euro.
Como assim?
Porque a decisão de emprestar dinheiro a uma Grécia insolvente transformou de repente os maus empréstimos privados dos bancos em obrigações entre Governos. Ou seja, o que começou por ser uma crise bancária que deveria ter unido a Europa nos esforços para limitar os bancos, acabou por se transformar numa crise da dívida que dividiu a Europa entre países credores e países devedores. E em que as instituições europeias funcionaram como instrumentos para os credores imporem a sua vontade aos devedores. Podemos vê-lo claramente em Portugal: a troika (de credores da zona euro e FMI) que desempenhou um papel quase colonial, imperial, e sem qualquer controlo democrático, não agiu no interesse europeu mas, de facto, no interesse dos credores de Portugal. E pior que tudo, impondo as políticas erradas. Já é mau demais ter-se um patrão imperial porque não tem base democrática, mas é pior ainda quando este patrão lhe impõe o caminho errado. Isso tornou-se claro quando em vez de enfrentarem os problemas do sector bancário, a Europa entrou numa corrida à austeridade colectiva que provocou recessões desnecessariamente longas e tão severas que agravaram a situação das finanças públicas. Foi claramente o que aconteceu em Portugal. As pessoas elogiam muito o sucesso do programa português, mas basta olhar para as previsões iniciais para a dívida pública e ver a situação da dívida agora para se perceber que não é, de modo algum, um programa bem sucedido. Portugal está mais endividado que antes por causa do programa, e a dívida privada não caiu. Portugal está mesmo em pior estado do que estava no início do programa.
Quando diz que os Governos e instituições estavam dominados pelos bancos quer dizer o quê?
Quero dizer que os Governos puseram os interesses dos bancos à frente dos interesses dos cidadãos. Por várias razões. Em alguns casos, porque os Governos identificam os bancos como campeões nacionais bons para os países. Em outros casos tem a ver com ligações financeiras. Muitos políticos seniores ou trabalharam para bancos antes, ou esperam trabalhar para bancos depois. Há uma relação quase corrupta entre bancos e políticos. No meu livro defendo que quando uma pessoa tem a tutela de uma instituição, não pode ser autorizada a trabalhar para ela depois.
Também diz no seu livro que quando foi conselheiro de Durão Barroso, o avisou claramente logo no início sobre o que deveria ser feito, ou seja, limpar os balanços dos bancos e reestruturar a dívida grega. O que é que aconteceu? Ele não percebeu o que estava em causa, ou percebeu mas não quis enfrentar a Alemanha e a França?
Sublinho que isto não tem nada de pessoal. O presidente Barroso teve a abertura de espírito suficiente para perceber que os altos funcionários da Comissão estavam a propôr receitas erradas. Não conseguiram prever a crise e revelaram-se incapazes de a resolver. Ele viu-me na televisão, leu o meu livro anterior (*) e pediu-me para trabalhar para ele como conselheiro para lhe dar uma perspectiva alternativa. O que foi corajoso, e a mim deu-me uma oportunidade de tentar fazer a diferença. Infelizmente, apesar de termos tido muitas e boas conversas em privado, os meus conselhos não foram seguidos.
Porquê? Será que a Comissão não percebeu? A Comissão tem a reputação de não ter nem o conhecimento nem a experiência para lidar com uma crise destas. Foi esse o problema?
Foram várias coisas. Claramente a Comissão e os seus altos funcionários não tinham a menor experiência para lidar com uma crise. Era uma anedota! O FMI é sempre encarado como a instituição mais detestada [da troika], mas quando foi juntamente com a Comissão à Irlanda, as pessoas do FMI foram mais apreciadas porque sabiam do que estavam a falar, enquanto as da Comissão não tinham a menor ideia. Por isso, uma das razões foi inexperiência completa e, pior, inexperiência agravada com arrogância. Em vez de dizerem “não sei como é que isto funciona, vou perguntar ao FMI ou ver o que aconteceu com as anteriores crises na Ásia ou na América Latina”, os funcionários europeus agiram como se pensassem “mesmo que não saiba nada, vou na mesma fingir que sei melhor”. Ou seja, foram incapazes e arrogantes. A segunda razão é institucional: não havia mecanismos para lidar com a crise e, por isso, a gestão processou-se necessariamente sobretudo através dos Governos. E o maior credor, a Alemanha, assumiu um ponto de vista particular. Claro que isto não absolve a Comissão, porque antes de mais, muitos responsáveis da Comissão, como Olli Rehn [responsável pelos assuntos económicos e financeiros], partilham a visão alemã. Depois, porque o papel da Comissão é representar o interesse europeu, e o interesse europeu deveria ter sido tentar gerar um consenso de tipo diferente, ou pelo menos suscitar algum tipo de debate. Ou seja, a Comissão poderia ter desempenhado um papel muito mais construtivo enquanto alternativa à linha única alemã. E, por fim, é que, embora seja politicamente fraca, a Comissão tem um grande poder institucional. Todas as burocracias gostam de ganhar poder. E neste caso, a Comissão recebeu poderes centralizados reforçados não apenas para esta crise, mas potencialmente para sempre, que lhe dão a possibilidade de obrigar os países a fazer coisas que não conseguiram impor antes. É por isso que parte da resposta é também uma tomada de poder.
A impressão que tivemos, em Portugal, é que a arrogância destes altos funcionários europeus vinha de uma falta de orientações políticas e de liderança, de Barroso e de Rehn... Como é que foi possível que uma instituição com uma responsabilidade tão grande sobre a vida das pessoas pudesse ter funcionado em roda livre sem orientação política?
Houve orientação política, só que vinha da Alemanha. E a Alemanha aconselhou mal, em parte por causa da forma particular como os alemães olham para a economia, por causa da ideologia conservadora, e porque agiu no seu próprio interesse egoísta de credor em vez de no interesse europeu alargado. A UE sempre funcionou com a Alemanha integrada nas instituições europeias, mas aqui, a Alemanha tentou redesenhar a Europa no seu próprio interesse. É por isso que temos uma Alemanha quase-hegemónica, o que é muito destrutivo.
Pensa que isso foi uma decisão tomada conscientemente por Angela Merkel?
Os erros vieram todos da violação da regra do “no bailout”. Merkel tem a seu favor o facto de ter atrasado durante muito tempo [a ajuda à Grécia]. Penso que ela não queria violar a regra do “no bailout”. Só que foi convencida a fazê-lo pelos três franceses e pelos bancos alemães, que disseram todos que seria irresponsável deixar a Grécia entrar em default. E, por causa deste erro fatal, de repente os contribuintes alemães sentem que são responsáveis pelas dívidas de todos os outros países. Por isso, a resposta natural dos alemães foi dizerem que querem maior controlo sobre os orçamentos e políticas económicas dos outros. Este foi o erro crasso. Transformou a natureza da UE, que passou de uma comunidade voluntária entre iguais para esta relação hierárquica entre credores exercendo o seu controlo sobre os devedores. Uma coisa é Portugal e outros, numa altura de desespero, aceitarem termos injustos, outra completamente diferente é aceitar numa base duradoura este sistema anti-democrático. Se nas próximas eleições for eleito um Governo diferente do actual e o sucessor de Olli Rehn for à televisão dizer que é preciso manter exactamente as mesmas políticas do governo anterior, naturalmente que os portugueses vão ficar escandalizados porque acabaram de eleger um novo Governo, pessoas diferentes e quem diabo é este comissário europeu não eleito que me diz que decisões sobre despesas e receitas é que tenho de tomar? Isto não é politicamente sustentável.
Então para si, a crise do euro foi antes de mais uma crise bancária mal gerida....
Foi. É antes de mais uma crise bancária. Se olhar para Portugal, o principal problema era a dívida privada. Antes da crise, a dívida pública era sensivelmente a mesma que na Alemanha – 67/68% do PIB – mas o grande problema que não foi de todo resolvido era a dívida privada que estava acima de 200% do PIB. Antes da crise, o que aconteceu em Portugal era, no essencial, bancos estrangeiros a emprestarem a bancos portugueses e estes a emprestar aos consumidores portugueses. A subida da dívida pública era reduzida, houve uns pequenos aumentos nos primeiros anos do euro, mas bastante menos do que na dívida privada. Este é que era o problema real, mas que os portugueses não enfrentaram, a UE e o FMI não ligaram, só se concentraram na redução da dívida pública. Por isso, como não resolveram os problemas reais do sector bancário, não resolveram o problema da dívida privada, só se concentraram na consequência, que foi o aumento da dívida pública. Só que as consequências sociais para Portugal desta profunda, longa e desnecessária recessão económica são trágicas. E ninguém é responsabilizado. Se tivesse sido um erro feito pelo Governo português, bom, podia ser corrido nas próximas eleições. Mas aqui as pessoas que fizeram os erros não são responsabilizadas. E depois as pessoas perguntam-se porque é que os europeus já não gostam da Europa. É surpreendente?
Pensa que a dívida portuguesa também deveria ter sido reestruturada, a pública e a privada?
Depende. Com base nas políticas seguidas, a dívida portuguesa atingiu um nível perigoso [129% do PIB]. Os bancos deveriam ter sido reestruturados e a dívida do sector privado deveria ter sido resolvida. Nas empresas, através de procedimentos de insolvência do FMI que lhes permite continuar a funcionar enquanto a dívida é reduzida. Para os consumidores, com reduções de dívida a partir do momento em que os bancos reconhecem as perdas e as incluem nos balanços. Se isto tivesse sido feito, a trajectória da dívida pública portuguesa poderia ter permanecido sustentável, porque o sector bancário estaria a funcionar, a dívida privada seria inferior e por isso haveria mais crédito para investimento e maior consumo. Mas por causa dos erros feitos Portugal está numa situação difícil. Há quem pense que o que eu digo é uma loucura, alegando que os mercados estão a emprestar a Portugal a taxas muito baixas e que por isso a crise acabou, blá blá, blá, mas isso simplesmente não é verdade. Isso também aconteceu nos anos da bolha [financeira], antes de 2007, em que os mercados também emprestavam de forma incrivelmente fácil, o que não significava que não havia problemas. Neste momento tem havido entrada de liquidez, que está a tapar os problemas subjacentes, mas essa liquidez pode inverter-se se o BCE, como penso que vai acontecer, nos desiludir da ideia de que poderá haver um Quantitative Easing (injecção de liquidez). Mas a situação vai mudar na mesma, porque as taxas de juro americanas vão subir, o que afectará todas as taxas de juro no mundo inteiro, incluindo em Portugal. Ao mesmo tempo, se olharmos para a economia subjacente, há agora um crescimento do PIB positivo, mas a inflação caiu tanto que o crescimento nominal do PIB é muito, muito baixo. E é muito difícil sair de uma dívida gigantesca quando se tem um crescimento nominal do PIB muito baixo. Por isso, na ausência de inflação, é preciso reestruturar a dívida.
Neste momento?
Penso que Portugal deve procurar obter uma redução da dívida oficial [dos empréstimos dos países do euro]. Também deve aproveitar agora a estupidez do mercado que está a emprestar a baixo custo para levantar o máximo possível de fundos e usar parte desse dinheiro para pagar parte da velha dívida. Mas não se deixem enganar que os problemas estão resolvidos, porque não estão.
Então, em sua opinião, os resgates a Portugal e Grécia foram sobretudo resgates disfarçados aos bancos alemães e franceses para os salvar dos empréstimos irresponsáveis, e que estão a ser pagos pelos contribuintes portugueses e gregos?
Claro que foram. No caso de Portugal, também havia bancos espanhóis, mas que também tinham obtido empréstimos dos bancos franceses e alemães. Era uma cadeia....
Isso significa que o sofrimento dos portugueses, o desemprego astronómico, os cortes de salários e pensões e os aumentos de impostos, tudo isto foi feito para salvar os bancos alemães e franceses?
Bom, é preciso sublinhar que dado o crescimento gigantesco do crédito que aconteceu em Portugal antes de 2007, Portugal sofreria de alguma forma. Não estou a dizer que seria tudo perfeito. Mas a recessão foi desnecessariamente longa e profunda e, em resultado dos erros cometidos, a dívida pública é muito mais alta do que teria sido. A austeridade foi completamente contraproducente, as pessoas sofreram horrores e isso prejudicou imenso a economia.
Mas pelo menos parte da dívida pública foi assumida para salvar dívida privada, incluindo dos bancos, portugueses e alemães. O que significa que são os contribuintes portugueses que estão a pagar para salvar esses bancos?
Sim, é verdade.
Numa união europeia, numa união monetária, governos e instituições europeias puseram os interesses dos bancos à frente do bem estar das pessoas?
Essa é a questão essencial. Estou inteiramente de acordo. Na primeira fase da crise, já foi suficientemente mau que os contribuintes tenham tido de salvar os bancos dos seus próprios países. Mas quando o problema alastrou a toda a UE, o que aconteceu foi que a zona euro passou a ser gerida em função do interesse dos bancos do centro – ou seja, França e Alemanha – em vez de ser gerida no interesse dos cidadãos no seu conjunto. O que é profundamente injusto e insustentável.
E destrutivo para a UE...
Exactamente. Essa é a tragédia. Em resultado dos erros cometidos, a Europa está a ser destruída, o apoio à Europa caiu a pique, velhos ressentimentos foram reavivados, outros nasceram, a par de tensões sociais no interior dos países. Podemos esperar que as eleições europeias sejam um sinal de alarme, mas duvido, porque o sentimento contra a Europa tem assumido frequentemente a forma de extremismos. Ora, é muito fácil atacar o extremismo, o que está certo, mas sem olhar para as causas subjacentes. Há pessoas que votam para partidos nazis porque são racistas, mas há outras que votam nesses partidos porque estão infelizes, perderam a esperança, sentem-se injustiçadas. É preciso olhar para as causas subjacentes, porque se não a UE está em muitos maus lençóis.
Em concreto: como a Alemanha e os outros países do centro são co-responsáveis pelos erros cometidos nos países ajudados para salvar os seus bancos, não deveriam agora aceitar um perdão de pelo menos uma parte dos empréstimos concedidos ao abrigo dos resgates?
Sim, deveriam, necessariamente. Só que o problema, agora, é que os contribuintes alemães vão sentir que os outros estão atrás do seu dinheiro e acham injusto. E têm razão, é injusto. Só que a culpa não é dos ‘mal-comportados’ portugueses ou gregos, a culpa é de Angela Merkel que aceitou resgatar os bancos alemães com os empréstimos a Portugal e Grécia. É isso que é tão terrível, é que ao fazer justiça a Portugal e Grécia, está-se a confirmar, de facto, a narrativa incorrecta que os alemães se contaram a si próprios de que esta crise tem a ver com os maus do sul a quererem levar o dinheiro deles. Mas, de facto, o que aconteceu foi que Angela Merkel permitiu que os contribuintes alemães resgatassem, de forma indirecta, os bancos alemães. Esta é a tragédia.
Qual e a solução agora?
É preciso um discurso de verdade. Não acredito que Merkel seja capaz de o fazer porque teria de admitir os erros. Seria preciso que algum líder ou político alemão explicasse a verdadeira história sobre o que aconteceu. Mas tem de haver um reconhecimento da verdade.
Mas pelo menos no caso da Grécia, a Alemanha vai ter de fazer alguma coisa, porque a dívida é totalmente insustentável...
Totalmente insustentável. [O ex-chanceler alemão] Helmut Schmidt disse que deveria haver uma conferência de dívida e Trichet poderia expiar os seus pecados fazendo-o, enquanto gesto de solidariedade europeia, como aconteceu com a dívida da Alemanha em 1924 e 1928. Se pensarmos bem, o que a Alemanha, a Comissão e as instituições da UE em geral fizeram foi abusar do facto de Portugal e Grécia quererem desesperadamente ser europeus e estarem aterrados com o que lhes poderia acontecer se saíssem do euro e por isso puderam impôr-lhes condições muito injustas. É um pouco como um marido violento que bate na mulher e que sabe que pode continuar porque ela ainda gosta dele e porque tem medo de o deixar. Isto é exactamente o oposto da solidariedade em que é suposto a Europa ser baseada. Por isso, quando digo que precisamos de um gesto de solidariedade, não é para resgatar o mau comportamento de Portugal e Grécia, mas um gesto de solidariedade para corrigir os erros horríveis dos últimos anos. Se os contribuintes alemães ficarem zangados, então a solução poderá ser uma taxa sobre os bancos alemães para recuperar o dinheiro, porque não?
O que sugere para Portugal poder começar a crescer?
É preciso uma reestruturação dos bancos, um perdão de dívida tanto pública como privada, é preciso investimento do Banco Europeu de Investimentos (BEI), dos fundos estruturais da UE e através dos ganhos de um perdão de dívida que reduza os pagamentos dos juros. Se os bancos estiverem a funcionar como deve ser, também haverá crédito ao investimento. E é preciso reformas, porque durante esta crise, as reformas defendidas pela Comissão e Alemanha foram, no essencial, redução de salários. Isto foi baseado num falso diagnóstico. Não é verdade que os aumentos salariais no sul da Europa foram excessivos nos anos pré-crise. Em termos de peso no PIB, os salários até caíram. Por isso não é verdade que esta foi a causa da crise, não é verdade que os salários precisavam de ser reduzidos. Só que esmagar salários provoca o colapso do consumo, agrava a recessão e agrava o peso da dívida, porque se os salários baixam, é mais difícil pagá-la. Tudo isto é baseado no erro de concepção alemão de que os custos salariais são uma coisa má e têm de ser reduzidos, quando, de facto, deveriam ser tão altos quanto possível, desde que justificados pela produtividade. Uma das histórias bonitas aqui é a dos fabricantes portugueses de calçado que ignoraram os conselhos da UE de reduzir salários, porque perceberam que com a concorrência de baixo custo da Turquia e China, se cortassem os salários, entrariam numa corrida para baixo. Em vez disso, decidiram investir para chegar ao topo do mercado, e em resultado disso, as exportações aumentaram, os salários aumentaram, o emprego aumentou. Este é o modelo que é preciso seguir, não caminhar para salários cada vez mais baixos.
E para a UE ? Qual é a solução para a crise? Falar de maior integração, de união política e orçamental tem sentido?
Não creio que seja preciso maior integração para resolver a crise. O plano em três pontos que dei a Durão Barroso em 2010 – reestruturação de bancos, reestruturação de dívidas, investimento e reformas – pode ser feito com as actuais instituições. Mas é preciso, sim, uma reforma institucional para fazer a zona euro funcionar melhor no futuro. E, a esse respeito, penso que é preciso ter um mecanismo verdadeiramente independente de resolução dos bancos, porque o actual não é. É preciso que o papel do BCE enquanto credor de último recurso dos governos seja tornado permanente em vez do actual mecanismo temporário e condicional [OMT]. Terceiro, é preciso restaurar a regra do “no bailout”. E é preciso dar aos Governos muito mais liberdade e flexibilidade para contrair crédito e para gastar – para isso, é preciso deitar fora o Tratado orçamental – embora prevendo, em última análise, a possibilidade de default. Esta é a disciplina. Os Governos e os mercados têm de saber que há o risco dedefault. A longo prazo, será preciso criar um tesouro da zona euro, com algum poder de tributação fiscal e de contrair crédito, que responda democraticamente perante o Parlamento Europeu e os parlamentos nacionais. Seria bom que houvesse um mecanismo de partilha de risco no seio da zona euro, mas infelizmente penso que ainda não existem condições para isso, porque os alemães olham para qualquer mecanismo de partilha de riscos como uma forma de transferência, e com todo o sentimento anti-europeu do momento, não há condições políticas. Mesmo que, de facto, fosse mais respeitador das democracias nacionais do que o sistema que temos agora. Porque teríamos mais integração ao nível europeu, com um orçamento da zona euro, mas igualmente muito maior liberdade ao nível nacional.
Sobre os resgates em si: disse que no caso do programa da Grécia as projecções macro-económicas eram totalmente irrealistas e que as condições impostas a Portugal foram “bárbaras”. Quem foi responsável por isto, o FMI ou a Comissão Europeia?
Foi a troika que o fez em conjunto, mas penso que o essencial da responsabilidade da parte orçamental dos programas é da Comissão. As projecções eram completamente falsas. Dá vontade de rir quando se comparam as projecções de 2011 com os resultados de 2013, é uma anedota. Isto resultou em parte da incompetência das pessoas responsáveis, mas há outro problema que é o da responsabilidade democrática. Olli Rehn e os seus altos funcionários decretam que o desemprego vai ser 12% mas se afinal é 20%, dizem “ah, ok, temos de mudar aqui este número na folha de cálculo”. Ou seja, não estão a lidar com a realidade. Esta instituição é uma redoma completamente desligada da realidade.
Estas mesmas pessoas vão continuar a mandar nas nossas vidas....
Pois é, é assustador. Além das alterações que é preciso fazer na zona euro, é preciso que a Comissão Europeia seja muito mais controlada no plano democrático. O que significa um presidente da Comissão eleito e maior controlo democrático perante o PE e os parlamentos nacionais. É preciso ligar o debate em Bruxelas com o que está a acontecer nos Estados membros. Porque este tipo de sistema quase imperial sem controlo democrático não é sustentável. Isto não vai mudar com as próximas eleições. Mas vai ser preciso, nos próximos cinco anos, construir uma democracia europeia a sério, mudar a natureza da Europa. Ou seja, precisamos de uma Primavera Europeia.
(*) European Spring: Why our Economies and Politics are in a mess” (2014); Aftershock: Reshaping the World Economy After the Crisis(2010); Immigrants: Your Country Needs Them (2007); Open World: The Truth About Globalisation (2002)
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