quarta-feira, maio 21, 2014

National a 7 de Junho no Primavera Sound


Matt Berninger tem sempre o coração amarrotado, a garganta arranhada, as entranhas desfeitas. Matt Berninger está sempre todo fodido. Nós absolutamente amamos Matt Berninger. Não é um silogismo, mas podia muito bem ser.

Em 2008, recém editado "Boxer", superadíssima prova de fogo depois do trampolim que foi "Alligator" (2005), Matt chegou a Guimarães para um concerto que não era de festival nem de estádio. Um concerto de jardim, início de noite, lua cheia, famílias inteiras, crianças pela mão, tantos ao engano. Sobe ao palco já bêbado, cambaleia, tropeça, quase cai. Segura-se, equilibra-se na garrafa de vinho que nunca larga e no pé de microfone que qualquer mulher desejaria ser. Despeja insatisfação, angústia, caos, frustração, estilhaços de coração. Diz-nos que vivemos semi-acordados num império falso (Fake Empire poderia ser hino mundial), que somos polidos pecadores, que facilmente os amigos se tornam (nos tornam?) perecíveis, que o amor desencontrado (ou perdido ou rompido, ou lá o que acontece ao amor quando nos trai o sonho e troca as voltas) enlouquece, que sentiremos falta da liberdade que fomos, que acabamos sempre a chorar.

Matt Berninger é um poço de problemas à espera de redenção, é itinerário terapêutico da catástrofe, é acrobacia temperamental a aprender a maturidade, é medo sanguíneo do que é bafiento, é uma espiral terrivelmente comovente. É uma revolução. E, em palco, era então apenas um embrião da explosão em que depois se tornou.

Volta em 2010, maior. Ao Meco. Ah, se fosse possível ver um concerto de joelhos! Com ele traz o ainda tenro "High Violet", promessa de felicidade, mesmo se tudo nele é tão pesado, aranhas e fantasmas incluídos. Contraditório e desesperado, como só a vida e o amor podem ser. “I'll try not to hurt anybody i like, but i don't have the drugs to sort it out”. Pois, quem tiver a poção que a partilhe. Inaugura aí a oração de apoteose com que passaria a acabar os concertos. "Vanderlyle Crybaby Geeks", esse arrepio contínuo que se alastra aos músculos, ordenando-nos de cor em coro, cúmplices e condenados: “All the very best of us string ourselves up for love”.O alinhamento é uma simbiose perfeita entre passado - todos os hits a que temos direito, Mr. November é via verde para outro mundo – e presente, Terrible love e Sorrow e Bloodbuzz Ohio e England a parecer que fazem parte da nossa vida desde sempre. E depois, um glorioso final com “About today”, marcha lenta em se ouve repetidamente, quão perto estou de te perder?, e que não é justo porque nos manda embora com vontade de chorar. Matt, incurável sofredor, podia ser fadista. É um amplificador de apocalipse, um miserabilista contagioso, é um trágico gigante. Não há banho de multidão que não seja merecido.

O ano seguinte foi ano de coliseus, Porto e Lisboa. E dessa prece inacreditável que inexplicavelmente não figura em qualquer disco, e que é provavelmente uma das canções mais bonitas e desarmantes alguma vez escritas, “Think you can wait”. Cândido desejo de espera, mesmo se não invalida a forte probabilidade de nunca conseguirmos vir a ser melhores. Sim, Matt Berninger é uma epifania e um sismo. É uma espada cravada no peito e um despenhamento que é bizarro porque é assustadoramente belo. Não o ouvimos para sentirmos que podemos ser salvos, ouvimo-lo para fustigarmos o delírio de qualquer esperança. Mas dançamos loucamente nesse prelúdio de desgraça. É quase sinistro. E simples. Gente de carne e osso que falha e avaria quando a carne dói e os ossos quebram. E ele canta sobre isso. Ele é isso. Matt Berninger faz magia com a dor. Simples?

Os últimos quase dois anos foram uma eternidade. Canções libertadas a conta gotas, um sexto disco que nunca mais chegava. Quando finalmente chegou (2013), trouxe Pink rabbits, e só isso faria valer a espera. Mas o disco não tem só essa "versão televisiva de coração partido", tem 13 canções, todas a arder, e mais uma que não está lá e deveria - Lean, outra prece indescritível. E tem também uma crítica ambígua, há quem esteja farto das lamúrias de Matt. Paciência. Matt gosta de tempestades, mas não gosta de relâmpagos. Neste disco parece que alguma tempestade passou - "When they ask what do I see, i see a bright white beautiful heaven hanging over me -, mas o título do álbum, The troubles will find me, antecipa que é fase provisória. É infalível, ele nunca escreverá sobre a felicidade, escreverá sempre só sobre o momento em que a felicidade desaparece. No fim acabamos sempre a chorar. "If you lose me, i'm gonna die".

Não é preconceito, mas não é indiferente o cenário em que se vê um concerto. Em 2005, Matt Berninger não era ainda Matt Berninger - era o vocalista dos National. Estreou-se em Portugal a partir de Coura, naquilo que deveria ter sido, como sempre é naquela colina mágica do Taboão, o início instantâneo de um caminho sem volta. Ainda meio desconhecido, já alcoólico, Matt foi nesse ano inevitavelmente ofuscado pela efervescência dos Arcade Fire. O Primavera Sound, irmão de sangue de Coura, é uma transfusão de milagre, é a oportunidade rara, que a música dá e a vida não, de ser a primeira vez outra vez, outra vez no lugar certo.

Matt Berninger é um conto de terror infantil para adultos. É a banda sonora das nossas vidas, onde nos sepultamos e ressuscitamos sem nunca sabermos em qual das duas fases vamos estacionar definitivamente. Sem pudor, com todo o exagero que justifica a vida e o sangue que nela corre, o concerto de Matt Berninger não é para gente equilibrada, que sabe relativizar os desgostos e avançar impermeável à dor, é para gente exagerada que faz de qualquer ferida uma melodramática hipérbole sem porta de saída. Seja qual for o alinhamento, será sempre o best of dos nossos desastres. Momento de devoção.

Sábado, 7 de Junho, no Parque da Cidade, no Porto. Faltam duas semanas.

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