domingo, julho 07, 2013

Pedro Santos Guerreiro: Por mares nunca dantes navegados


O pior foi evitado: se o Presidente apoiar, não vamos para eleições. Mas o pior foi evitado da pior forma, enfiando quadrados no lugar de triângulos e garantindo que são redondos. Há um lacrau no Governo. É o lacrau da traição. É o lacrau que faz temer pela próxima crise, daqui a dois meses e meio. Acha mesmo que o problema é a troika?

Ainda não sabemos se os ajuizados enlouqueceram ou se os loucos vão simulando juízo, mas dá medo ser governado por gente assim. Gente que mente, se desmente, gente da inconstância e da incontinência. Uma máscara caiu-lhes e já arranjaram outra. O Governo é o mesmo mas mudou radicalmente. Há uma semana perguntámos: depois de Gaspar, quem mandará num Governo em que Passos nunca mandou? Sabemos agora: manda Portas, que se engoliu a si mesmo, aos seus chiliques, à sua palavra e à sua honra. O líder do PP é hoje dono da maior cara de pau do país. Dizem que "ganhou". Ganhou poder. Vale isso mais que o respeito? Portas mudou a geografia da seriedade, navegou por mares nunca dantes revogados. 

Comecemos pela boa notícia: o acordo, que apascenta os lobos dos mercados. Há perdas irreparáveis na economia, mas o segundo resgate voltou a não ser uma fatalidade. Foi a única vantagem desta crise: mostrar que o segundo resgate não é um papão usado para impor austeridade. O risco é real e é medonho, pode significar uma pobreza ainda maior e mais prolongada. É aliás curioso ver que muitas das pessoas que diziam que o segundo resgate é uma ficção disseram agora que ele é inevitável, haja ou não eleições. Não é verdade. O segundo resgate não está afastado mas ainda é evitável. O programa cautelar que há-de manter-nos apoiados não tem nada a ver com o segundo resgate. É um apoio na mesma, mas um supõe financiamento nos mercados. Andar de muletas não é o mesmo que de cadeira de rodas.
As taxas de juro poderão voltar a descer, as Bolsas poderão aliviar. E se o Governo fizer o que ainda não fez - reduzir a despesa permanente do Estado para poder descer impostos e inventar politicas para reactivar a economia -, encaminhamo-nos para os últimos doze meses da troika em Portugal.

No mundo ideal, este ano não teria tido 52 semanas, apenas 51. Se tivéssemos saltado de domingo 30 de Junho para segunda 8 de Julho, tudo se teria resumido a uma remodelação no Governo com reequilíbrio de poderes, perdendo Gaspar e Passos para Portas. (Era isto aliás que se exigia a estadistas, que resolvessem o problema em privado e tornassem público apenas a solução). O Governo quer fazer crer que assim foi: que Portas não recuou (o que é a gargalhada do ano) e que o Governo é melhor do que era. A desfaçatez com que ninguém pede desculpa e se assume que não é necessário prestar contas por esta vergonhosa semana é (mais) uma armadilha na democracia deixada por quem a diz cumpri-la. 

Talvez quando todos percam todos se considerem vencedores. Gaspar perdeu e deixou veneno na carta de despedida. Cavaco fez tudo, porque nada fez, pelo apodrecimento da coligação. Passos desprezou tanto Portas que acabou refém dele. Portas perdeu a vergonha.

O novo Governo vai mostrar que Gaspar era menos forte e que Álvaro era menos fraco do que se pensava. Não se está contra a troika sem apresentar alternativas. Portas nunca teve alternativas. Como é politicamente mais hábil, criará a sensação de que nos vão tirar um milhão para ficarmos felizes quando nos tirarem meio milhão. Mas isso não são alternativas, são percepções. Alternativa não é ter mais tempo, é saber o que se faz com ele. Se não se sabe, mais tempo é apenas mais dívida. Que política traz Portas? Somos todos ouvidos.

A troika funciona com uma restrição: o envelope de 78 mil milhões. Se o défice é maior, é preciso mais financiamento. E ou o FMI e a UE enviam mais dinheiro (o que não deveríamos querer) ou ele tem de ser garantido nos mercados. Ora as últimas emissões são positivas mas foram caríssimas. E queremos mesmo continuar a aumentar a dívida pública? Não.

Se Portas quer baixar impostos, tem de cortar mais despesa pública ou dançar a dança da chuva do crescimento económico. O crescimento ficou mais distante depois da insanidade desta semana (você investiria num país onde o Governo dá o espectáculo que o nosso deu?). E cortar a despesa do Estado é o odioso a que Portas se furtou. Significa despedir funcionários públicos, cortar-lhes salários, reduzir pensões - e reformar o Estado.

A melhor solução teria sido manter a coligação sem Paulo Portas, que se enforcara com as suas próprias mãos. Mas o relativismo moral venceu. E o Governo transmite tanta confiança como um pirómano com um cinturão de bombas a fazer malabarismo com frascos de nitrogelicerina num paiol de pólvora. Portas é o melhor dos políticos mas revelou que os problemas de carácter não são um assunto da vida privada quando se tornam problema da vida pública. Portas é um talento sem coragem. Passos é um corajoso sem talento. E é isto.

No final de Setembro há eleições e três semanas depois é apresentado o Orçamento. Uma derrota dos partidos da coligação nas autárquicas terá consequências políticas; a austeridade no Orçamento testará o apoio social. Portas e Passos vão ter de aguentar-se ou não merecem esta segunda oportunidade.

O que se passou ainda não passou nem vai passar depressa. Pensar que a "crise irrevogável" não existiu é como supor que a TSU de há um ano foi irrelevante, só porque nela se recuou - e ela mudou tudo. As coisas não voltarão a ser iguais. Mas este Governo tem de aguentar-se até ao Verão do próximo ano. Se for para cair depois do Orçamento, mais valia ter caído agora. Tudo menos um segundo resgate. Tudo, inclusive um Governo que, por ser feito de bonecos sempre-em-pé, pensa que não está com a cara no chão. 
 
[Hoje, Jornal de Negócios]

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