“A juventude suporta facilmente a
presença dos piores instintos e vive e movimenta-se livre e
habilmente no meio deles.
Sempre houvera e haveria noites
estreladas, constelações esplendorosas e luar por cima da cidade,
mas nunca tinha havido ainda, e só Deus sabe se voltaria a haver,
jovens daqueles que, com semelhantes conversas, sentimentos e ideias,
mantivessem tais vigílias à porta. Era uma geração de anjos
rebeldes, precisamente naquela fase, que passa tão depressa, em que
ainda guardam em si todo o poder e possuem todos os direitos dos
anjos e também o orgulho ardente dos rebeldes. Aqueles filhos de
camponeses tinham recebido do destino, sem que para isso fosse
necessário nenhum esforço especial da sua parte, uma entrada livre
no mundo e a grande ilusão da liberdade.
Com as suas inatas características
provincianas, partiam para outros meios e escolhiam mais ou menos
livremente, de acordo com as suas inclinações, a disposição do
momento ou os caprichos do acaso, os estudos a seguir, os tipos de
distracção e o círculo dos seus amigos e conhecimentos. Na maior
parte, não eram capazes, nem sabiam como aprender e fazer uso
daquilo que conseguiam ver, mas não havia um único que não tivesse
a sensação de que podia agarrar o que desejava e de que tudo o que
agarrasse era dele. (…) A vida estava na sua frente como um
objecto, coo um campo de acção aberto aos seus sentidos libertados,
à sua curiosidade intelectual e às suas proezas sentimentais, que
não conheciam limites. Todos os caminhos lhes estavam abertos, até
ao infinito; em muitos deles nem sequer haveriam de pôr nunca o pé
e, no entanto, a inebrtiante volúpia de viver que os dominava
alimentava-se da possibilidade que tinham (pelo menos em teoria) de
escolher livremente qual o caminho que queriam seguir, e, se assim o
quisessem, vaguear de um para o outro.
Tudo aquilo que outros homens e outras
raças, noutros tempos e noutras terras, tinham conseguido atingir ao
longo de muitas gerações, através de séculos e séculos de
esforço, à custa de vidas, de renúncias e de sacrifícios maiores
e mais valiosos do que a própria vida, abria-se agora na sua frente
como uma herança casual e um dom perigoso do destino. Parecia
fantástico e improvável, mas era verdadeiro: podiam fazer da sua
mocidade o que muito bem entendiam num mundo em que as leis da moral
social e pessoal, chegando até às distantes fronteiras do crime,
padeciam nessa época duma plena crise, sendo livremente
interpretadas, aceites ou repudiadas por cada indivíduo ou cada
grupo. Podiam opinar livremente e julgar sem restrições; ousavam
dizer o que lhes apetecia e para muitos deles essas palavras
representavam autênticas façanhas, que satisfaziam a sua atávica
necessidade de heroísmo e de glória, de violência e de destruição,
ao mesmo tempo que não lhes impunham nenhuma obrigação de agir nem
acarretavam nenhuma responsabilidade palpável. Os mais dotados de
entre eles desdenhavam do que tinham de aprender e subestimavam tudo
o que eram capazes de fazer e tinham orgulho daquilo que não sabiam e
entusiasmavam-se com o que não podiam realizar. É difícil imaginar
uma via mais perigosa de entrar na vida ou um caminho mais seguro
para façanhas excepcionais ou para uma derrocada total. Os melhores
e os mais fortes deles lançavam-se à acção com um fanatismo de
faquires, para nela se queimarem como moscas e serem logo
glorificados pelos companheiros como mártires e santos (visto que
não há geração que não tenha os seus santos) e colocados em
pedestais como exemplos inacessíveis.
Cada geração humana tem as suas
ilusões próprias no que respeita à civilização; umas acreditam
que estão a tomar parte no seu crescimento, outras que estão a assistir à sua extinção. A verdade é que ela brilha, arde e
extingue-se sempre consoante o lugar e o ponto de vista. Esta
geração, que agora discutia filosofia e questões sociais e
políticas nas portas sob o olhar complacente das estrelas e
acompanhada pelo murmúrio das águas do rio, apenas era mais rica em
ilusões; em tudo o mais era semelhante a qualquer outra. Tinha a
convicção de que estava ao mesmo tempo acendendo as primeiras luzes
de uma nova civilização e extinguindo as últimas chamas de uma
outra que estava praticamente consumida. O que a caracteriza
particularmente é que há muito tempo não surgia uma geração que
tivesse sonhado mais com a vida e da vida falado mais e com mais
audácia, bem como dos prazeres e da liberdade, e que, ao mesmo
tempo, tão pouco tivesse recebido da vida, mais tivesse sofrido,
mais fosse escravizada, morrendo pelos seus ideias. Mas nesses dias
do Verão de 1913 existiam apenas uns indícios ousados mas vagos de
tudo isso. Tudo tinha ainda a aparência de um novo e excitante jogo,
jogado ali, na velha ponte, que brilhava ao luar daquelas noites de
Julho, limpa, jovem e inalterável, forte e encantadora na pureza das
suas linhas, mais forte do que tudo o que o tempo podia trazer e do
que os homens podem imaginar ou fazer."
[Talvez o livro mais maravilhoso que li a seguir a "Gente independente", do Laxness. Seguramente daqueles livros que ficam remoer na cabeça e que voltam sempre. Obrigada, Esquilo.]
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