domingo, fevereiro 24, 2013

Raul Brandão: A pedra ainda espera dar flor



Há pelo menos três ou quatro coisas que se sentem quando se consegue responder com facilidade à pergunta difícil: Qual é o teu escritor preferido? 1) Sentir que seria capaz de dizer de cor páginas inteiras de vários livros, à força de tantas vezes os ter lido (presunção imbecil); 2) que o escritor e a sua obra não são suficientemente reconhecidos e bem tratados, o que se reflecte logo numa procura que passa muito mais por alfarrabistas e bibliotecas do que por livrarias; 3) a angústia de, achando que já se leu tudo, não ter mais nada para ler desse autor; 4) uma alegria gigantesca quando alguém se dedica a vasculhar o baú do dito escritor e publica inéditos.

Raul Brandão (1867-1930) é o meu escritor preferido de sempre. E nunca me conformei com a falta de popularidade dele. Nem sequer a entendo. Por estes dias, Vasco Rato ofereceu-nos, mais uma vez, um presente maravilhoso: "A pedra ainda espera dar flor", uma compilação de textos extraída de quase quarenta publicações de todo o tipo, com cinquenta inéditos. Um milagre.

"E tudo isto cabe dentro de um caixão de pássaro! Cabem os dias e as noites, os monólogos infindáveis; cabe a ternura e a dor, cabem todas as construções imaginárias que nos sustentam. A vida, que é tão grande, não tem peso, o sonho sem limites não tem peso... Cabe ali tudo o que maquinou e remoeu e que é infinito ao pé desse farrapo inútil.

Agora que me vou despedir dela para sempre, tenho de confessar a mim mesmo que sob essa agitação perpétua, sob esse desespero perpétuo, só havia sonho e ternura.  Isto durou um momento, mas durante esse momento, que é a eternidade, arcou com a vida, atreveu-se a disputar à desgraça os últimos restos de ilusão, não se conformou com a desgraça num debate que só terminou quando foi ao fundo, talvez melhor fosse a gente deixar-se ir logo ao fundo... Mas ela não pôde: tinha de defender a vida dos seus e defendeu-a até cair amachucada por aquelas mão de ferro que não perdoam nem quebram. Tinha de defender o seu sonho, e defendeu-o até tombar exausta, combatendo pela vida viva que nos acompanha até ao túmulo.

Talvez o seu sonho fosse inútil. O sonho dos humildes é quase sempre inútil. Talvez. Mas nela entram, como nos sonhos grandiosos, como em todos os dramas da existência, as estrelas, o céu e o inferno. Entra Deus. E isto pesa toneladas. No desta figura que nunca sucumbiu estava também uma ternura extraordinária. Até o seu desespero era ternura. E isto tudo, que exige um tablado desmedido e que liga cada ser ao vasto universo, cabe agora entre quatro tábuas de forro."

(A Morta, Maio de 1924)

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