sexta-feira, abril 13, 2012

Estágio para os festivais de Verão (II)

Germano Oliveira
Jornal de Negócios


Deixem-nos suar - O lado B dos festivais


Obrigado, James Brown. Pelo penteado - espectacular - e por uma verdade certeira: "A música tem de respirar e suar. Tem de ser tocada ao vivo". É certo que há mais para agradecer a James Brown, mas é mesmo isto: música a sério é suja e imperfeita, é inesperada e irrepetível - e isso não se compra nas lojas, nem se descarrega na Internet. E porque o povo merece tréguas da crise, deixem os portugueses ir ver como a música sua e soa. E deixem-nos dançar e chorar, deixem-nos gritar e esquecer, deixem-nos fazer figuras tristes nos concertos. É tudo possível, porque 2012 é um ano de música tão boa que até dói.

O texto que aí vem não é um guia definitivo, é um ponto de partida, é quase uma súplica para que não perca o que lhe vai passar à porta. E prepare-se: esta é uma viagem que vai espreitar alguns dos "outsiders" que vão andar pelos festivais portugueses. Deixem-nos suar - a eles e a nós.

Há palavras perfeitas quando se juntam. É assim com "Your Hand in Mine", que dá vontade de estar apaixonado só de se ler. Quando se ouve, dá-se entrada no planeta invulgar dos Explosions in the Sky, malta perigosa para corações frágeis. O Porto vai tê-los a 7 de Junho, no Primavera Sound. Vêm do Texas, escrevem sinfonias com longos rendilhados de guitarra e é com eles que vamos procurar mãos para agarrar as nossas. Os Explosions in the Sky são quatro e só contam narrativas instrumentais. As músicas não têm voz, são demoradas e têm humor oscilante: há desgosto e resignação, há resistência e revolta. Chris Hrasky, ainda antes de ser o baterista, chamou-lhe "sad, triumphant rock band" quando afixou um cartaz a dizer que precisava de músicos para um projecto. Não é música para se ouvir em qualquer dia, porque nem sempre se sai inteiro dali. E os Explosions têm de ter algum tipo de superpoder, porque tocar isto ao vivo noite após noite é coisa para deixar qualquer um de rastos. Música assim é comovente e arrebatadora e, por isso, há que sofrer e fantasiar com quem a faz.

Quem já fantasiou - e concretizou - foi um amigo de Baxter Dury, que também vai andar pelo Primavera Sound. Britânico, já quarentão, não tem medo de usar um bom chapéu, já deu concertos vestido "à cão danado" e tem uma história de devassidão (ou talvez não, mas o exagero é mais divertido) sobre uma tal de Isabel. A menina dá nome a um tema de Baxter Dury (sim, é o filho do Ian que vai pelo mesmo apelido) e o refrão não podia ser mais enternecedor. "Isabel sleeping, Isabel sleeping, I think my mate slept with you when you were in Portugal." Está lá tudo: fala-se de Portugal, há cenas eventualmente chocantes, há ressaca e o raio da cantiga não sai da cabeça. Baxter Dury é "indie" mundana, é "pop" excitada e tem o dom de ter uma das caras menos "rock'n'roll" que algum dia surgiu na capa de um disco - é espreitar "Happy Soup", lançado em 2011. Há gente que acerta tanto quando erra redondamente.

Já quando a coisa é "rock'n'roll" em condição rude, com botas de bico e muito couro no corpo, os The Kills sabem do que se trata. É verdade que eles andam por aí com um tema muito bonitinho ("The Last Goodbye", porta de entrada no site oficial), que leva piano e cordas sintetizadas, mas tranquilos: quando eles dão na guitarrada e batida seca, o que não falta é vontade de lhes dar beijos. Formados por Alison Mosshart e Jamie Hince, os The Kills chegam ao Alive, em Algés, a 15 de Julho. É bom é que haja menos pieguice e mais "Midnight Boom", disco óbvio para quem quiser pulsar com eles (também não faz mal espreitar o que anda por "No Wow"). Convém é que se saiba que os The Kills são dados à volúpia. Há um tema que já leva uns aninhos - "The Good Ones" - e que tem um "videoclip" que explica o porquê. Eles ferram os dentes enquanto cantam, ele de guitarra em riste e ela de unhas curtas pintadas há meia dúzia de dias, e nós à espera que eles se trinquem e desatem a fazer coisas com bolinha vermelha. E como se já não fosse suficientemente bom, a canção é viciante. Alguém que faça chegar o recado aos The Kills: esqueçam lá os pianos. O cidadão quer é "rock" carnal.

Aventuras femininas
E depois há Lana del Rey. Mesmo quando não canta, há tanto para contar - há algo desproporcionado (os lábios?) que não bate certo com tanta beleza e no entanto faz todo o sentido. É uma assimetria que se sente também na música que traz no corpo - tem algo de antigo, fora do sítio, e ainda bem. É vê-la em "Video Games", que é um dos recordistas do Youtube. O vídeo tem aquela prosa muito americana - há a bandeira, há Hollywood, há gente a fazer palermices (mas daquelas boas) -, e recorre ao mais eficaz dos truques: música cativante embrulhada numa mulher vistosa. Ela anda por lá de olhos resignados e ombros estreitos encaixados num vestido amarelo ("his favourite Sun dress", como ela canta) e não há muito por onde resistir. Há quem diga que o ramalhete "indie" de Lana del Rey é muito "plástico", mas e depois? Há que ouvir de cerveja na mão - em copo de plástico, certamente. A 6 de Julho, o Super Rock é de Elizabeth Grant, nome verdadeiro da menina. Mas chamem-lhe o que quiserem, desde que a tragam cá. E Lana: é muito provável que isto não dure a vida toda, mas já valeu a pena.

Um dia antes, e se o coração aguentar outra aventura feminina no mesmo palco, o Meco vai ter Bat For Lashes (na verdade, é Natascha Khan, mas artista gosta de brincar aos nomes). Filha de pai paquistanês e mãe inglesa, pegou nas culturas distantes que lhe correm no ADN, juntou-lhes algum risco (é multi-instrumentista) e pintou tudo com uma voz à medida. Resultado: os discos (sobretudo o conceptual "Two Suns") ouvem-se em "loop". Para quem pretende saber ao que vai com Bat for Lashes, é pesquisar por "Prescilla (Live Shepherds Bush Empire 2009)" no YouTube e vê-la a escorrer um tema num instrumento estranhíssimo, com a canção literalmente entre os dedos e nós ali espantados. Pode ser que seja assim no Super Rock.

Menos "outsider" que Bat For Lashes é uma das jovens que vai andar pelo Alive a 14 de Julho. Se Natascha Khan é uma espécie de Marítimo (só em abstracto, porque nos nossos corações é o Barcelona), Florence Welch é como o Braga - tem qualidade para lutar pelo título e já faltou mais para ser cabeça de cartaz. No Alive (por onde já andou há dois anos, quando tocou no mesmo dia de Alice in Chains, Devendra Banhart e The xx - a vida era assim antes da "troika"), sobe ao palco antes dos The Cure. Para começar, Florence Welch é uma mulher que tem uma voz que não cabe numa sala. Há ali muita força, por vezes até excessiva, e a rapaziada nem sempre aprecia tanta epopeia. Por outro lado, é impossível ficar indiferente: nem que seja para lhe chamar nomes, há algo maquinal naquela fusão que tem de ser visto - há "pop", há indie, há tiques barrocos e celtas, há "folk". Florence Welch vem com os seus The Machine, daí surgir no cartaz com o recurso à matemática - Florence + The Machine. Para antecipar a equação de 14 de Julho, talvez não seja despropositado espreitar "Shake it Out", "All This And Even Too" e "No Light, No Light", temas saídos do último disco. Quem sobreviver, sugere-se calçado afectuoso para o dia do concerto, porque isto dá para pôr os pezinhos a embalar.

Sujar a música
E agora há que pegar na agenda e marcar 8 de Junho, nem que seja para ficar desapontado. Chamam-se Beach House, vão andar pelo Primavera Sound e trazem um disco consensual (o quem nem sempre é lisonjeiro, mas isso é matéria para outra tertúlia): "Teen Dream", que continua digno de estima, apesar dos dois aninhos. Os Beach House são um duo formado pela francesa Victoria Legrand (quem gosta de vampiros "teen" pode espreitá-la na banda sonora da saga "Twilight", com os Grizzly Bear) e pelo norte-americano Alex Scally. A metade feminina é particularmente intrigante: há quem diga que há ali algo de Nico (sim, a pequena que juntou o nome aos Velvet Underground). Convém não aprofundar muito a autenticidade da comparação, porque Nico é matéria sensível e há malta que pode não apreciar a brincadeira. Mas quem estiver de coração aberto, pode começar por "Master of None", que paira no disco homónimo dos Beach House. Há quem lhe chame "dream pop", que é uma forma bem-parecida de dizer que há ali sintetizadores atmosféricos. Em disco, os Beach House talvez sejam excessivamente "clean" - a música, às vezes, tem de partir tudo e não faz mal se deixar nódoas. Ainda assim, é difícil largá-los, porque há muito magnetismo nos temas de Victoria Legrand e Alex Scally (ele anda por ali de guitarra na mão a dilatar muitas canções). E os Beach House precisam mesmo de respirar e suar ao vivo, para sujar o que conceberam em estúdio.

Quem não tem medo de se sujar é Borja Laudo, que também vai pelo nome de Bigott (aliás, vai mais por este que pelo outro). Natural de Saragoça, mostra que não há impossíveis: um espanhol pode mesmo fazer carreira a cantar inglês. É verdade que nem sempre se percebe tudo devidamente, mas não dói. Bigott, que vai andar pelo Primavera Sound a 7 de Junho, é um cantautor (vamos chamar-lhe assim, para facilitar) que sabe dar uma festa. Quando tem mesmo de ser, não repudia uns cantos mais tristes, mas não é homem para se intimidar com a vida airada. É espreitar "Sparkle Motion", "Kinky Merengue", "Honolulu", "She Is My Man" ou "I'm a Little Retarded" e ver como os ombros começam a mexer sem autorização e como nem tudo precisa de ser amargurado, mesmo quando é um cantautor a contar a história. Quando quer, Bigott é "folk" psicadélica e nós precisamos de malucos assim. Afinal, ele já disse tudo quando deu nome a um dos seus discos: "This is the Beginning of a Beautiful Friendship".

E por falar em novas amizades, não há que temer os PAUS. Antes de avançar, há que precisar que vem aí um exercício difícil, já comprovado pela frase anterior: é inevitável não tropeçar numa piada consentida ou numa ambiguidade inesperada quando há uma banda que se chama assim. É ainda necessário esclarecer que nome faz todo o sentido: os PAUS têm duas baterias e há muita paulada por lá (isto é irresistível). Depois, e é o que vale, a música que sai dali é uma experiência. Não é fácil, não é imediata, mas é especial. O Alive vai tê-los a 15 de Julho e há que saudar a ousadia de lançá-los no mesmo dia de Radiohead. Os PAUS são portugueses, fazem parte de uma corrente tuga que sabe o que faz (Linda Martini, We Trust e reticências por aí fora) e não têm medo de correr riscos. Há um lado bruto e experimental no que fazem, que debita "rock" e electrónica, que pode deixar de fora alguns ouvidos menos disponíveis - mas é precisamente esta audácia que os distingue. "Língua Franca" é daqueles temas que dá vontade de formar uma banda e o passeio marítimo de Algés pode ser pequeno demais para aquela bateria siamesa, mandona em disco e tremenda ao vivo.

Deixar crescer a barba
Apesar do Rock in Rio não ser dado a grandes riscos no cartaz, cuidado com uns meninos que vão andar por lá a 25 de Maio. Os Mastodon dão vontade de vestir de preto e de deixar crescer uma barba extravagante (hipótese felizmente mais inacessível para as senhoras). Há ali guitarra rija, muita esquizofrenia na percussão e muito mais que "heavy metal". Eles já andaram por cá - no Super Rock, por exemplo -, e são um óptimo pretexto para se fazer cara de mau enquanto se ouve música pesada. Imperdoável é vê-los no cartaz antes dos Evanescence, mas são maldades que acontecem.

Já que é para correr riscos, venha daí a singularidade de uma rapariga loira. Conta-se que Angela Gossow, cidadã alemã exemplar, trabalhava na área de publicidade aqui há uns anos e fazia uns biscates no jornalismo. Num acaso daqueles, entrevistou um dos rapazes dos Arch Enemy e deixou ficar uma gravação no final da conversa - o pequeno ficou encantado. Hoje, Angela Gossow é tipo a Shakira (desculpa, Angela) da música extrema. Se houver coragem para espreitá-la, ela vai andar por Vagos, em Aveiro. No início de Agosto, os Arch Enemy trazem metal de qualidade. E fica o apontamento: é mesmo uma mulher que está a cantar, mesmo que não pareça. Vale a pena, mas não é para todos.

Coisas verdadeiramente importantes
Os Other Lives são como aqueles tipos irritantemente perfeitos, que são bons em tudo o que fazem: uma parte de nós finge que não repara neles, mas a outra parte acaba por vencer - há gente à qual não dá mesmo para resistir. Então, aí vai: os Other Lives já andaram na estrada com o Bon Iver e entraram em 2012 a abrir concertos para os Radiohead. Dois pontos para os "perfeitinhos". Mas há mais: têm vídeos maravilhosos ("Tamer Animals", que é nome de disco, de "single" e de "videoclip" que é para ver) e fazem canções que têm de ser ouvidas. E ainda não acabou: eles têm barbas rebeldes, cabelos compridos com risca ao lado e às vezes arriscam umas calças curtas com as meias à mostra. É assim que se chega ao desfecho evidente: é forçoso reparar neles, mesmo que não se queira. O Primavera Sound vai ouvi-los a 8 de Junho e há que esperar até lá para desposar o "folk" polido dos Other Lives, que traz pianos, violinos e violoncelos. E, mais do que isso, traz músicas como "Tamer Animals" ou "For 12", que salvam o pior dos dias.

Quem também aprecia salvar o próximo são os Noah and the Whale, que chegam ao Alive a 14 de Julho. Isto é gente que não receia assobiar e bater palmas durante uma cantiga ("Five Years Time"). E quando o momento não é para grande algazarra, eles sabem pegar no desgosto e cantá-lo como se tivessem ouvido em "repeat" Will Oldham e Bill Callahan - é espreitar "First Days Of Spring" ou "Stranger".

Mas se for dia para ter um refrão orelhudo, vestir roupa urbana, arriscar um penteado extravagante e ir beber uns copos, aí há que pegar em "Tonight Is The Kind of Night" e ir dançar para a rua. É que eles têm este lado muito humano: às vezes estão tristes, às vezes dá-lhes para a rebeldia, depois têm dias em que apenas estão e há ainda aqueles momentos em que só eles é que nos sabem tirar de casa para ir para a farra. Não são perfeitos, não fazem tudo bem, mas tratam-nos com cuidado - é bonito. Os Noah and the Whale trazem ao Alive um disco que mutou da "folk ("Peaceful, the World Lays Me Down"), um álbum de coração partido ("The First Days of Spring") e um outro que dá para dançar e engatar umas miúdas ("Last Night On Earth"). Não há aqui grande vergonha de mostrar emoções e isso é de homem.

E por falar em homenzinhos, os The xx fazem música que não bate certo com a idade - eles saíram da adolescência anteontem, mas parece que andam nisto há anos. É também precisamente por isso que eles recuperam uma daquelas verdades antigas: a música é quem a ouve. Eles vão chegar ao Primavera Sound, onde tocam a 9 de Junho, com um dos discos mais adultos alguma vez feitos por malta tão nova (a génese da banda remonta a 2005, quando alguns deles tinham 15 anos). "XX" é disco para erguer uma ditadura em qualquer leitor de música: lançado em 2009, andou a rodar repetidamente nas aparelhagens, iPhones, iPods, iPads, androids e no que estivesse à mão dos rendidos. É muito fácil encaixá-los no rótulo "indie" (afinal, "indie" é quase tudo o que o homem quiser), mas eles têm uma prateleira só deles. É pegar em "Islands" e ali estão os The xx, minimais e "pop", de guitarra subtil, "samples" sem rodeios e uma batida electrónica que é uma espécie de Ringo Starr do século XXI: não é preciso mais, porque assim é que faz sentido.

O desafio do segundo disco é pior que encontrar um bom defesa-esquerdo para o Benfica ou um ponta-de-lança a sério para o FC Porto, mas teremos sempre o primeiro álbum, que é um tornado. E eis uma outra verdade que os The xx nos deixam: se é para sofrer com a crise ou com coisas verdadeiramente importantes como o futebol, que seja com estilo - a ouvir boa música.

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