quinta-feira, outubro 27, 2005

Acabaram com a Grande Reportagem

Miguel Sousa Tavares criou o monstro: uma publicação mensal notável, premiada, com excelentes reportagens. Escritas e fotográficas. Daquelas que se coleccionam e nunca se deitam fora quando se varrem as tralhas lá de casa. Foi assim a Grande Reportagem durante dez anos. Francisco José Viegas - pobre na sucessão -, transformou o monstro num mito. Enquanto dirigiu a publicação, nunca tanta gente deve ter evocado, com nostalgia, o nome de MST.


E depois, porque não há duas sem três, em 2003, a GR foi transformada numa revista semanal, distribuída ao sábado, com o JN e o DN. Joaquim Vieira não recuperou o monstro, porque, na vida, nunca há atalhos para o passado. Suportando o peso do título, transformou-o na única publicação que, em Portugal, ainda fazia jornalismo de investigação. Jornalismo acutilante e isento. Jornalismo sério e quase, como antigamente, coleccionavel.
Foi despedido. E não foi despedido, apenas, porque a GR será enterrada em Dezembro. Foi despedido com carácter de urgência. Como quem é despejado de casa por dever a renda há vários meses. Como se a imparcialidade, nos dias que correm, tivesse que ser, forçosamente, alvo de punição. O que surpreende não é o despedimento ou o enterro da GR. Feliz ou infelizmente, já somos todos demasiado crescidos para acreditar mais em contos de fadas do que no poder do lucro (e não só) - única meta dos grupos que detêm os media. O que surpreende e quase causa angústia, é que não tenha havido qualquer onda de protesto. Que ninguém tenha simplesmente questionado o funeral...


Parece que estamos, definitivamente, condenados a viver no reino das mulheres nuas do 24 Horas... num país nivelado por baixo.

Avelino Ferreira Torres

Catch me
if you can

(Reportagem de Helena Teixeira da Silva publicada na Grande Reportagem a 7 de Outubro de 2005)

Não há nada de que não seja acusado. Ou quase nada. “Nunca me acusaram de matar, nem de droga, nem de pedofilia”, contraria, irónico, Avelino Ferreira Torres. “E ninguém me pode acusar de não ter trabalhado pelo Marco”. O Marco é Marco de Canaveses, concelho do interior, com 52 mil habitantes, que dificilmente seria conhecido se não fosse o invulgar mediatismo do seu presidente de Câmara, na recta final de uma maratona que dura há 23 anos. Este ano é candidato independente à autarquia de Amarante, sua terra natal. “Procuro ser justo. E na minha consciência nada me pesa. Digo isto com sinceridade”, sublinha, na sede de campanha, numa voz pausada acompanhada de gestos calmos, longe da impetuosidade que lhe é comummente atribuída.

Não lhe pesam, portanto, as acusações de peculato, de abuso de poder, de suborno a um inspector do IGAT, de promiscuidade entre a política e o futebol, de falências fraudulentas, de falsificação de documentos e desvio de fundos comunitários, de alteração do Plano Director Municipal para sobrevalorizar terrenos que, alegadamente, comprou ao desbarato. Alheio às acusações que sobre ele pendem, Ferreira Torres, 60 anos completados a 26 de Janeiro, avança uma explicação inédita: “Acredito piamente na justiça divina. E acredito muito em karmas. Acho que estou aqui a pagar por alguma coisa que familiares meus do passado fizeram. Um dia, expliquei esta minha teoria a um padre. E, passado algum tempo, ele disse-me que tinha lógica”.

O fardo, fruto daquilo que diz ser “uma perseguição política”, não parece preocupá-lo. “Há vinte anos que andam a dizer que vou ser preso e continuo aqui. Só tenho sido condenado a dar algumas esmolas”, afirma, numa referência aos advogados que o defendem. “Não me preocupo: eles vivem disso, e eu tenho nojo ao dinheiro. Só gasto o indispensável, porque vim do nada, de uma família pobre com 17 irmãos e nunca me esqueço disso. Cumpro à risca o evangelho”.

Mas Ferreira Torres, cuja incursão na vida política, em 1983, fica a dever-se a Vieira de Carvalho, falecido presidente da Câmara da Maia, não foi só condenado a dar esmolas. Este ano foi condenado num processo de peculato a três anos de prisão, em fase de recurso, e é um dos 171 arguidos no caso “Apito Dourado”.

Uma vez mais, o autarca, perspicaz no malabarismo com os temas que lhe poderiam provocar desconforto, desvaloriza a colecção de processos com um exercício de memória que o remete para a primeira vez que foi a tribunal, tendo sido condenado a pena suspensa. “Sou condenado porque sou sério”, observa. “Há uns anos, um jornalista do semanário “O País” fez-me uma entrevista sobre o assassínio do meu irmão, e eu disse o que sentia. Disse que sabia quem o matou. Ele publicou e o Ministério Público moveu-me uma acção pela gravidade daquelas afirmações. Podia ter entalado o jornalista e dizer que ele escreveu coisas que eu não disse. Mas não o fiz. Mantive aquilo que disse e fui julgado por isso. Por ser sério”, insiste.

O caso da morte de Joaquim Ferreira Torres, presidente da Câmara de Murça, assassinado em Paredes, a 21 de Agosto de 1979, quando conduzia um Porsche vermelho, prescreveu em Agosto de 1994, sem que nunca tenha sido encontrado o autor do crime. Ferreira Torres teima que sabe quem puxou o gatilho. “Eu já tinha uma pontinha de investigador, mas a partir deste caso, passei a perceber todas as golpadas que os investigadores fazem. Não descobriram o assassino do meu irmão porque não quiseram. E eu, como não tenho espírito para matar, voltei à minha vida normal”. Não tem espírito para matar, mas sabe que há quem acredite que recruta equipas para bater em determinados inimigos. “É mentira. Sou incapaz de, premeditadamente, fazer um ajuste de contas. A canalha vem oferecer-se para bater, mas eu nunca aceito. O meu staff sou eu. Não mato sequer um insecto insignificante”.

O rasto das acusações entregues na Procuradoria Geral da República no curso dos últimos anos contra Avelino Ferreira Torres – a maioria da autoria de Gil Mendes, secretário da Junta de Freguesia de Ariz, eleito pelo PSD -, poderia ter-se dissipado do circo público, se não fosse José Faria, ex-testa-de-ferro do autarca e funcionário da Câmara do Marco de Canaveses, ter tentado matar-se com um tiro na cabeça em Agosto deste ano. “Comecei a ficar tolo”, afirmou numa entrevista exclusiva ao 24 Horas, poucos dias depois de ter tido alta do Hospital de S. João, no Porto, onde esteve internado uma semana. José Faria confessou ter perdido a cabeça devido à procuração irrevogável passada por Avelino, em 1990, e com a qual comprou e vendeu tranquilamente dezenas de propriedades, até ser notificado pelo Fisco para pagar 60 mil contos. À banca diz que deve mais de 300 mil contos. “Aquele dia não era para ser assim. Eu hoje podia estar na cadeia”, disse o trabalhador municipal, que aufere cerca de 550 euros mensais. A revelação será, apenas, a ponta de um iceberg que o funcionário - entretanto aconselhado pelo advogado Pragal Colaço a não prestar mais declarações à Comunicação Social - parece determinado a não continuar a encobrir.

Mas sobre o acto tresloucado do seu ex-colaborador, Ferreira Torres não quer falar. “Só posso dizer que não me vou atirar a ele, ao contrário do que as pessoas dizem. Rezei muito e sempre soube que não ía morrer.”, assegurou ainda antes da alta de José Faria. Reconhece ainda que lhe comprou alguns terrenos, uma vez que o funcionário possuía uma imobiliária, e que tem documentos que provam que José Faria lhe deverá muito dinheiro. De resto, visitou-o duas vezes no hospital e achou que ele “está doente”.

“Sou impulsivo, mas choro com muita facilidade. As pessoas não me conhecem e a culpa é dos jornalistas que não olham a meios para atingir os fins - fins políticos e encomendados. Fico magoado com a imagem que passam de mim. Como é possível dizerem-se atoardas a meu respeito quando são totalmente mentiras?”, questiona indignado. Hoje, já não lê jornais para “conseguir levar a cruz ao calvário”.


Avelino Ferreira Torres, admirador de Marquês do Pombal e devoto de Santa Teresa de Lizier, em França, onde ruma todos os anos a 1 de Outubro, é o décimo quarto filho de Manuel Nunes Ferreira e Ilda Ribeiro Torres, ambos falecidos. “Não me lembro do dia em que a minha mãe morreu, porque não sou bom a fixar datas. Mas ela era impecável. Não nos deixava andar sujos. A roupa era sempre limpinha. Quando havia um rombo, ela ia buscar umas calças velhas que dissessem mais ou menos com aquelas e cozia”, emociona-se.
Nasceu na freguesia de Rebordelo, em Amarante, onde está a reconstruir a casa onde nasceu, e é lá que tenciona iniciar a campanha eleitoral. “Não sou nenhum pára-quedista. Vivi cá até aos 15 anos e nunca me esqueci das pessoas. Entendo que devo dar aqui o mesmo que dei noutras paragens”, argumenta.

Numa família numerosa, cedo sentiu a necessidade de começar a trabalhar. Primeiro numa empresa de abate de madeira, depois a guardar rebanhos nas serras. Aos 15 anos, Joaquim, irmão mais velho e mais rico, leva-o para Rio Tinto, onde residia, e lança-o no mundo empresarial. Ele agarra a oportunidade e, oito anos depois, torna-se presidente do Sport Clube de Rio Tinto. No mesmo ano, casa com Rosa dos Santos Cunha, que conhecera entretanto. Aos 24 anos regressa ao Marco, para associar-se aos irmãos Rodrigo e Manuel na gestão de uma serração. A partir daí, os negócios sucedem-se e sobrepõem-se a uma velocidade inimitável.
No início dos anos 80, abre a sua própria serração e multiplica o ramo empresarial: confecções, tipografias, jornais. Algumas fábricas acabaram por fechar, falidas ou ardidas. Os encerramentos, considerados suspeitos, deram origem a um processo por falência fraudulenta, num caso; e suspeita de fogo posto, no outro. A primeira acusação, referente às Confecções Ferreira Torres, falidas em 1996, foi formalizada no início de Setembro pelo Ministério Público.

Quando regressa ao Marco, Ferreira Torres começa também a investir dinheiro no clube da terra, o Futebol Clube do Marco. A dedicação acaba por conduzi-lo à presidência do clube, que se orgulha de ter colocado na II Divisão Nacional. No fim da década de 90 já integra o Conselho Nacional de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol. A política autárquica seria o passo seguinte. Em Setembro de 1983, o Executivo de coligação PSD/PS renuncia o mandato numa altura em que ele está no hospital a recuperar de uma operação ao estômago. “Nunca acreditei que pudesse ficar bom. Estava lá a preparar a minha morte quando o professor Vieira de Carvalho, numa visita, disse que queria que eu me candidatasse à Câmara do Marco”, recorda. Os médicos desaconselharam-no e ele interpretou a opinião como uma sentença de morte. “A minha mulher viu-me tão triste que, para me animar, disse que devia ser candidato”. Em Outubro desse ano, Ferreira Torres concorre pelo CDS e vence com maioria absoluta. O resultado repetiu-se até 2000. E ele sente que cumpriu a missão.

“Dou apenas um exemplo: Amarante tem um pavilhão gimnodesportivo; o Marco tem 10. E ainda vou inaugurar mais dois antes de ir embora.” Acredita que se “não fossem as vitórias políticas, não tinha inimigos. Ganhei sempre a Câmara por um partido pequenino. Mas nunca me deram ordens. Eles sabiam que eu não sou um “Yes man”. Eu respeitava os presidentes, fossem eles quais fossem, e eles respeitavam-me a mim e à minha autonomia. Se me perguntarem: está arrependido de ter sido do CDS? Não, não estou, porque me deixaram ser livre. O PS e o PSD não deixam os seus autarcas serem livres. Impõe-lhe regras e é por isso que Amarante não evoluiu nestes 16 anos”, sentencia.

Manuel Monteiro, ex-líder do CDS, diz guardar boas recordações do autarca. “Sempre recebi dele um tratamento de grande respeito e consideração”. Quanto às acusações que sobre Ferreira Torres pendem, afirma que não lhe compete pronunciar-se. “O que se passa em Portugal, de um modo geral, é de uma gravidade tal, que resumir a questão ao Avelino é tentar tapar o sol com a peneira. Aos políticos convém encontrar bodes expiatórios para que outras situações menos mediatizadas passem incólumes. Quantos candidatos a deputados têm problemas judiciais?”, questiona. E acrescenta: “O que está a acontecer com a complacência das autoridades máximas do país e o silêncio do Presidente da República é gravíssimo. É urgente lançar um debate para se saber o que é que deve prevalecer: a lei ou a suspeita? Perante a lei, todos são inocentes até prova em contrário. Mas se prevalecer o bom senso político, as pessoas não devem ser candidatas quando sobre elas há suspeitas de foro judicial. Mas enquanto os políticos continuarem a beneficiar do quadro de imunidade tudo isto vai, infelizmente, continuar a acontecer”.


23 anos depois de “uma gestão despesista”, que levou a autarquia marcoense a uma situação de pré-falência, Filipe Baldaia, candidato à Câmara do Marco pela CDU, acusa o autarca de “75% do concelho continuar sem rede de abastecimento de água e 80% não ter saneamento”. A água que foi, recentemente, entregue a uma empresa privada, “é a mais cara do país e a segunda mais cara da Europa. O Marco cresceu, apenas, em betão e em número de habitantes; não teve um desenvolvimento equilibrado nem sustentado”. Os dados do Ministério da Educação corroboram a crítica: Marco de Canaveses é o quinto concelho do país onde se regista maior abandono e insucesso escolares – o equivalente ao dobro da média nacional.

Luís Almeida, engenheiro civil e candidato socialista ao Marco, encontra uma virtude na transferência de Ferreira Torres para Amarante. “Vamos passar os próximos vinte anos a pagar a dívida que ele deixou, mas aqui vivia-se um clima de medo. E agora as pessoas libertaram-se das amarras. A prova é que foi criada uma comissão de utentes para protestar contra o aumento da água, entre quatro a oito vezes mais caro do que o dos municípios vizinhos. A 3 de Agosto houve uma manifestação com 2500 pessoas a reclamar na rua. Antigamente, isso seria impensável”.

“Com a saída dele, fecha-se um ciclo”, completa Manuel Moreira, cabeça de lista do PSD. “A partir de agora, é importante que o concelho seja falado e conhecido pelas coisas positivas”. Só Norberto Soares, candidato pelo CDS – conhecido no meio como o “delfim” de Ferreira Torres, cujo filho, é número dois na lista -, não comunga desta avaliação. “Quem conhecia o Marco, e quem o conhece hoje, percebe que houve uma alteração muito grande no seu desenvolvimento urbanístico, empresarial, económico e social”. O mérito, ressalva, “é também da determinação de algumas pessoas da sociedade que encontraram aqui uma oportunidade para desenvolverem a sua economia”. Quanto ao antecessor, é taxativo: “É um lutador, um homem determinado a alcançar os objectivos a que se propõe. Luta pelos seus ideais até à última gota”.

A caracterização tem, pelo menos, um discípulo. “Acredito no Avelino e acho que ele é o homem certo para Amarante, neste momento”, afirma António Pedro, 61 anos, director do jornal “O Tribuna de Amarante”, garantindo que não confunde a sua opinião com a opinião do jornal. “Qualquer um pode escrever o que lhe apetecer no jornal, desde que não insulte ninguém”. O jornalista lamenta, no entanto, “a campanha caluniosa” a que está a assistir-se em Amarante. “Todos andam a caluniar o Avelino, chamam-lhe assassino, e ele não calunia ninguém”.

De resto, Ferreira Torres rejeita todas as acusações, incluindo a de ter enriquecido, deixando a Câmara do Marco à beira do colapso financeiro. “Isso é uma estupidez. A situação está perfeitamente dentro da lei. Atravessamos algumas dificuldades quando a ministra Manuela Ferreira Leite esteve no governo, porque estávamos a contar ir buscar um milhão e 300 mil contos, previstos na lei das finanças locais, e ela cortou essa possibilidade. Mas há males que vêm por bem, porque a lei prevê o reequilíbrio financeiro e foi o que nós fizemos. Entretanto, os juros baixaram, e conseguimos uma verba muito maior e pouco mais está a pagar-se por mês”.

Em relação ao património pessoal, assegura que o cenário é mais grave: “Se me quiserem pagar as minhas dívidas ou dar-me 200 mil contos, eu dou tudo o que tenho. Só quero ficar com a minha casa”. E, já agora, com a Quinta de Segoiva, em Tuías, o seu já designado “sonho jamaicano”. “Vai ser uma estalagem de cinco estrelas, mas está a ser mais cara do que eu julgava”.

Gil Mendes, que desde de Maio de 2003 envia cartas ao Procurador Geral da República, com provas contra Ferreira Torres, tendo, inclusivamente, sido já agredido por ele, não acredita em nada do que o autarca diz e acusa-o “de acreditar nas próprias mentiras”.“As autoridades deixaram criar este monstro e agora não o conseguem agarrar. Depois de tudo o que foi tornado público, se Ferreira Torres não for preso até ao fim do ano, é porque este sítio onde vivemos é um país de bananas”, desabafa.

“Ele é um homem perigoso, que não respeita as leis. Os dados que estão na posse dos magistrados já são suficientes para o prender. Mas ninguém o faz, porque ele goza de total impunidade”, retorna Luís Almeida. “Há dias, um homem forte da Polícia Judiciária confessou a um amigo meu que se o Avelino perder as eleições em Amarante, irão prendê-lo. Se ganhar, será muito difícil. Ou seja, neste país só é preso quem perde as eleições do Benfica ou da Câmara”.
Recusando resignar-se, José Adelino Maltez, professor catedrático de Ciência Política, no ISCSP, em Lisboa, diz ter, apesar de tudo, “esperança na resolução de casos como este”. “A democracia portuguesa viveu a doce ilusão de que não havia grupos de interesses e viveu na clandestinidade em relação a financiamentos partidários. Ou seja, a culpa disto tudo, foi a hipocrisia generalizada, que não quis assumir que havia corrupção. De repente, rebentou a rebeldia, que não produziu qualquer golpe de Estado, mas um desencanto colectivo. O grave não é haver denúncias; grave é que estes autarcas continuem a ganhar”. E esclarece: “Avelino é o ramo de uma árvore; o problema está na floresta”.


“Nunca aceitaria trabalhar com um candidato como Avelino Ferreira Torres”, garante António Cunha Vaz, especialista em comunicação e imagem, responsável por inúmeras campanhas nacionais e regionais. “Em primeiro lugar, para aceitar, teria que acreditar no candidato, nas suas ideias, na sua forma de estar na vida e ele teria que cumprir alguns princípios da nossa consciência democrática. Em segundo lugar, não acredito em mandatos em número ilimitado nem numa democracia de base populista”. Cunha Vaz, que assina a campanha de Carmona Rodrigues, em Lisboa, vai mais longe na sua sentença: “Numa democracia madura, ele nunca poderia ser candidato. Ele não gere a sua imagem; cria ilusões com viagens de helicóptero, que só se compadecem com um tipo de eleitorado menos esclarecido. O único trabalho sério que poderia fazer com ele seria retirá-lo da política e dizer-lhe que fica bem em programas como a “Quinta das Celebridades”.

A Quinta das Celebridades, reality-show emitido pela TVI, contou justamente com a presença do autarca na última edição. “Tenho consciência que os responsáveis pelo programa me queriam ver lá, porque achavam eu ia chatear o Alexandre Frota, o Castelo Branco, o jet-set, e dar umas bofetadas a quem se portasse mal. Mas saiu-lhes o tiro pela culatra”, conta Ferreira Torres. A experiência foi “positiva” porque ficou “amigo de todos, sem impostorice”, e porque diz não ter recebido um tostão. “Estive lá 17 dias. Assinei um contrato que dizia que uma metade do cachet era para a CERCI do Marco e a outra metade para a CERCI de Amarante. Não sei quanto dinheiro foi, mas admito que tenham sido alguns milhares de contos”.

A generosidade de Ferreira Torres que, ultimamente é estendida às associações de Amarante, a quem tem entregue cheques com quantias generosas, não convence João Magalhães, ex-presidente dos Amigos do Marco, Associação que fundou em 1998 em nome da liberdade de expressão. “Ele não engana ninguém. A primeira vez que ganhou as eleições no Marco, fê-lo destruindo o outro candidato com comunicados anónimos. O estratega da campanha é o mesmo de hoje, Sanhudo”.

Sanhudo Portocarreiro, cujo nome verdadeiro é António Monteiro Novais, cortou relações com Ferreira Torres pouco depois destas eleições, transformando-se num dos seus piores inimigos. Em 1996, chegou mesmo a enviar uma carta ao Procurador Geral da República denunciando: “Vive-se neste concelho um clima perturbado com desvios de milhares de contos, compras de mansões e quintas, restauradas no Marco e em Vila de Conde, por pessoal ligado à autarquia e com ameaça de despedimento a diversos funcionários que não acatem pontualmente as ordens do presidente. O mesmo presidente e alguns funcionários qualificados que actuam sobre pressão e grandes ameaças, vêm danificando documentos, actas e falsificando outros”. E solicitava: “Peço sigilo, pois trata-se de um homem desnorteado e até perigoso”.

Antes desta carta, já Sanhudo tinha elaborado um documento a que chamava “Concurso – Para tirar o Marco do anonimato cultural”, cujas questões não passavam de denúncias cifradas sobre a conduta de Ferreira Torres. “Quem mandou telefonar uma madrugada ao Sr. Eulalio Fonseca de Amarante ameaçando-o de morte, em nome dos Guerrilheiros de Cristo Rei? Quem trás do estrangeiro microfones ultra-sensíveis e secretos para devassar conversas? Quem foi ao jornal Comércio do Porto ameaçar o director? Quem é que compra capangas no Porto a onze contos para bater a A ou a B? O rol de perguntas era interminável, mas alguns anos depois, António Novais negou ser o autor de tudo. Em 2000 assinou a laudatória biografia de Ferreira Torres “O homem. O presidente”, e hoje é, garante João Magalhães, “assessor da Câmara com um salário de 500 contos, sendo a mulher também funcionária municipal”.

“Ferreira Torres sabe que a maioria das pessoas tem um preço. E ele vai até ao preço certo”, retorna o socialista Luís Almeida. João Magalhães, alvo de um processo de difamação agravada colocado pelo autarca do Marco, e do qual foi absolvido, cansou-se de lutar e desistiu. “O sistema não funciona. A minha família viveu anos terríveis por eu ter exercido o meu direito à cidadania, que só serve para desenvolver inimigos nos interesses instalados. E ninguém nos defende: nem a justiça, nem a polícia, nem os partidos, que só incentivam ao silêncio e à prática camaleónica”.

No hall de entrada da sede de campanha de Avelino Ferreira Torres, em Amarante, um homem calvo agarra-lhe no braço e sussurra-lhe: “Veja lá, senhor presidente, o que pode fazer por mim”. O autarca, que diz ter “duas formaturas: a da vida e a de gestão de empresas”, e que diz gostar de reconciliar casais nas horas livres, acena afirmativamente coma cabeça. “Não sou cinzento. Não gosto de dizer não. Mas quando é para dizer sim, gosto que digam logo. Não vale a pena gastar muita saliva quando a meio da conversa já percebi o que as pessoas querem”, explicaria mais tarde.

quinta-feira, outubro 13, 2005

Paula no país das maravilhas





















Com duas exposições simultâneas - em Serralves, no Porto, e na Tate, em Londres -, acentuando a sua dupla nacionalidade luso-britânica, Paula Rego é, aos 69 anos, uma das mais consagradas pintoras do nosso tempo. Com a mostra portuense a bater todos os recordes de afluência de público, visitamo-la no atelier londrino para uma retrospectiva de vida e uma introspecção aos medos e fantasmas que fazem da sua obra um caso único na arte contemporânea.

"Tu és uma inconsciente", gritava-lhe a mãe. "Ó Maria Paula", insistia, ampliando ênfase e volume, "tu és uma inconsciente. Fazes as coisas e depois ficas toda aflita". Ela, a Maria Paula, criança inquieta, com um mundo maior dentro da cabeça do que fora dela, embaraçada, sentia-se a diminuir de tamanho, qual Alice no país das maravilhas a encolher para entrar na porta enigmática do jardim mágico. "Tinha medo", diz a juntar as palmas das mãos, os olhos pendurados no ar. "Ai, Jesus, tinha tanto medo. Medo de tudo". E tinha oito anos. Hoje tem 69. O tempo levou-lhe muita coisa. "O medo? Já não tenho tanto", confessa, aliviada. "Mas ainda existe. Agora é mais medo de coisas concretas. Medo dos ataques, das pessoas drogadas, que não fazem mal senão a si próprias, mas assustam. Medo de voltar para casa à noite sozinha".
Maria Paula é Paula Rego. Provocadora incansável. Perturbada e perturbadora. Pintora da solidão e do desespero, da frustração e do desejo, da liberdade e do encarceramento. Da melancolia. Da infância atravessada pela maturidade. Influencida pelo surrealismo e, de certa forma, pelo dadaísmo, ela pinta o pecado que imagina, o arrependimento, o purgatório, a moral e a falta dela. Em figuras ambíguas, meio humanas, meio animais, meio bonecos, meio coisas que só ela saberá, denuncia o país de que se lembra quando era ainda demasiado pequena. O Portugal da mulher submissa, manipulada, da mulher sem norte, da mulher dona de casa. E, ao mesmo tempo, da mulher erótica, misteriosa, inabalável. Constrói e destrói a História numa dialéctica motorizada pela imaginação, numa encruzilhada de metáforas para as quais só ela conhecerá a chave exacta. É a voz de quem não teve voz. A voz da consciência e da transgressão que, não raras vezes, emerge da força sexual das suas personagens. Paula Rego é um coelho. É uma formiga-rabiga. É a mulher-cão que rasga as convenções e explode em narrativas densas, carregadas de tudo menos inocência.
"O que eu pinto é triste? É cru?", interroga-se. "Acho que não. Pinto a verdade. A Guerra Colonial existiu e foi uma vergonha. Faziam-se festas e, no fim, andavam aos pontapés às cabeças dos indígenas. As mulheres, em 1950, tinham vidas tenebrosas. Na Ericeira, de que eu gostava tanto, havia uma mulher, à noite, a gritar lá em cima, no moinho, porque o marido batia-lhe. Chegava a casa bêbedo e batia à mulher, que tinha filhos após filhos, após filhos. Ela dava-os à luz no moinho e criava-os completamente sozinha. Mas ele morreu e ela ainda ficou ali, rija, toda tesa. Isto é triste? Acho que não. Quis mostrar a força extraordinária de mulheres como esta."
A artista, a viver ininterruptamente em Inglaterra desde 1974, tem agora duas exposições nos países que lhe conferem dupla nacionalidade. Em Portugal, no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto, exibe até 23 de Janeiro de 2005, uma retrospectiva com 150 trabalhos - o relato de um percurso que começa em 1966 e termina com o recente A Mulher dos Bolos, já de 2004. A mostra, que em pouco mais de um mês contou com 60 mil visitas, bateu todos os recordes da instituição. Superou Francis Bacon, Andy Warhol e a exposição In the Rought, no Porto 2001. Foi a inauguração, a semana e o mês mais concorridos de sempre. Só a semana de abertura registou mais de 30 mil entradas, valor nunca antes experimentado por outro artista. "Tem estado lá muita gente, é?", pergunta de olhos a brilhar, com o ar doce de uma infantilidade que parece nunca ter perdido, a preparar dois cafés no seu gigantesco atelier londrino, em Rochester, próximo do folclore de Camden Town.
O número grosso de visitas parece surpreendê-la. "Nunca pensei. Mas fico tão contente. Nunca fui tão bem tratada como no Porto. Nunca vi os meus quadros tão bem distribuídos como em Serralves. É uma maravilha. Não existe cá nenhum espaço com aquela elegância. É o sítio mais bonito onde jamais expus."
Londres, que reclama a artista como sua, e uma das suas melhores, concentra na Galeria Tate Britain, em simultâneo, outra série de quadros seus, arrancando nos anos 60 - época das obras mais políticas e das colagens -, e terminando com o inédito, também deste ano, The Pillowman. Logo à entrada, um documentário conduzido por Robert Hughes, o conceituado crítico de Artes Plásticas da Time, autor, entre vários livros, de O Choque do Moderno (também uma série de TV), apresenta a mulher e a obra. "Ele teve um desastre de automóvel, quase morreu e depois recuperou", conta Paula Rego, invertendo os papéis, apresentando o homem que a apresentou. "Vive na América, e a primeira coisa que fez, depois de ficar bom, foi vir cá falar comigo. Não sei como me descobriu, mas demo-nos bem. Gosto bastante dele. Escreve muito bem. Escreveu um livro sobre Goya, que é uma maravilha."
Em Portugal não há documentários, nem uma mesa-redonda para discutir o trabalho da pintora, como a que aconteceu esta semana na Tate, nem haverá uma visita guiada pela própria, como a que está lá agendada para 8 de Dezembro. "Não se fez nada, mas a culpa é minha", redime-se. "Houve várias estações de televisão a pedir para vir cá, mas eu não deixei vir ninguém de Portugal entrevistar-me. Estava a trabalhar furiosamente e não queria cá confusões. Além disso, já toda a gente me conhece tão bem, não é? Não preciso estar sempre a dizer quem sou." Talvez não. Ela agradece o reconhecimento. "Ser conhecida é bom, claro. E vender ainda é melhor" -, mas gostava de fazer um quadro que deixasse as pessoas na dúvida, "fazer uma coisa como se fosse outra pessoa". Diz que não quer ser o Louis Vuitton das artes plásticas: "Não se pode fugir à mão de quem pintou o quadro, mas ter assim as malas carimbadas com as iniciais do nome é muito feio." E faz uma cara feia.
Londres compromete a expectativa: a chuva ameaça cair a qualquer momento; o termómetro não passa dos oito graus. "Estou aqui desde as nove da manhã; só depois de tomar café começo a acordar", diz com o riso estagnado que a caracteriza. Trabalha todos os dias, excepto ao Domingo. "Mas trabalho melhor das três da tarde em diante. Nem sempre estou bem disposta. Às vezes, estou com neura, mas isso não me trava. A prática é muito importante", reconhece. "A inspiração é precisa para ter ideias, mas a parte artesanal constitui 90 por cento do resultado final."
Os cafés, a ferver, misturam-se numa mesa onde abundam latas vazias de Coca-Cola Light, galos de Barcelos, peças de barro preto de Bisalhães (Trás-os-Montes), a boneca da "Soberba", que integra a série dos sete pecados mortais esculpidos pela já falecida Rosa Ramalho, e um CD de Mariza. "Somos amigas. Gosto imenso dela". Paula Rego gosta de ouvir música enquanto pinta. As referências espalham-se pelo chão: muito fado, muita ópera. Mas também Madonna, Bob Dylan e a banda sonora de Habla con Ella, de Pedro Almodôvar, o seu realizador de eleição.
"Trouxe muitas coisas de Portugal, mas também há coisas que compro aqui", ressalva. "Temos cá mercados muito giros. Volta e meia, apesar de não ter muito tempo, vou lá." Cada objecto tem uma história. Um dia interio não chega para todas elas. "Olhe estes vestidos, sabe onde é que os comprei?" E lá vai ela, expedita, retirar das cruzetas vestido a vestido. "Na Royal Opera House, o equivalente ao S. Carlos. Às vezes, eles vendem fatos, e veja que bem feitinhos que estão." E lá estão eles, devidamente agasalhados num varão atolado de uma parede à outra, os trajes de A Casa da Celestina, de La Fête, de A Pata Portuguesa, de A Gata Nicotina. "Este aqui (aponta para um cor de laranja) não gosta de mim, nem eu dele. Nunca o consigo pintar. De resto, isto para as minhas netas é uma perdição. Aquele capuchinho vermelho foi usado pela minha neta Grace, que posou para mim. Esteve sempre quietinha. Muito, muito bem", remata a verter orgulho.
The Pillowman e A Mulher dos Bolos, a residir temporariamente em cidades diferentes e distantes, são duas faces da mesma realidade: a pedofilia. "Não posso falar muito do quadro, porque também não sei muto bem o que aquilo é. Acho que as figuras são portuguesas. Representam o Estoril, mas não têm, francamente, nada a ver com o Estoril, nem com as coisas políticas ou outras que lá se passem. É como se fosse uma representação encenada lá: o farol que se vê lá atrás, em A Mulher dos Bolos, é o lado de lá da praia; o outro, do Pillowman, é o lado de cá."
O tríptico The Pillowman (O homem da almofada) é uma peça de teatro extremamente cruel, de um jovem dramaturgo inglês de 31 anos, Martin McDonagh. "Claro que não é inocente", assegura a pintora. "Eu estava muito consciente da polémica da pedofilia em Portugal quando pintei The Pillowman. Por isso é que deixei a braguilha das calças aberta." Arregala os olhos e faz uma expressão como se procurasse cumplicidade. "Estava muito consciente da possibilidade dessa associação."
À parte o tema que convoca, o quadro é inspirado, apenas, num dos muitos contos do dramaturgo. "Ele fala de uma menina que faz maçãzinhas todas recortadas com gilettes lá dentro e dá a comer ao pai. Depois, à noite, ela está a dormir e aquilo vem tudo por ali acima. É uma história muito macabra. Como é que ele consegue escrever coisas fantásticas daquelas aos 17 anos?"
Mas a história de The Pillowman, a cuja estreia ela assistiu no ano passado em Londres, é outra. "É a história de uma figura que ajuda as crianças a morrer para não terem vidas terríveis. As pessoas pensam nelas quando já estão crecidas, portanto não é uma coisa que está a acontecer naquele momento. É uma possibilidade. Aquilo é cheio de contradições, de coisas misteriosas, terríveis, cruéis. Mas tem um sentido de humor extraordinário. E tem qualquer coisa que me diz muito." O conflito? "Sim, talvez seja isso, mas não só. A minha pintura tem um lado muito político. É um político caseiro; não é o político dos ministros. É um politico de tudo o que acontece em casa das famílias. É lá que acontece tudo, nesses parlamentos tantas vezes autoritários."
Paula Rego pintou o dramaturgo porque pinta encenações. Sempre. A maioria de autoria própria. Mas não se limita a encenar. "Também faço os bonecos para a encenação, se não não vale. Primeiro façço os desenhos, mas, como isto depende muito das criaturas, às vezes não serve de nada fazê-los." The Pillowman, por exemplo, "é um edredão dentro de umas meias. Era para ser outra coisa, mas depois a minha neta veio cá e exclamou: "Oh, grandmother, it's so scaring!" E ela, que não gosta de contrariar nenhuma das cinco netas, mudou a expressão do boneco. "Às vezes", conta, "preciso de ajuda. Os bonecos são muito pesados, e tenho muitas dores nas costas. Sou capaz de passar aqui horas, dias inteiros a montar. Leva muito tempo, é uma coreografia muito complicada."
"Gostava que se acabasse de vez com o épatement geral e a necessidade de acontecimento teatral", confessou uma vez Ricardo Pais, director do Teatro Nacional S. João, no Porto, encenador que Paula Rego nunca pintou. Gostaria ela que se perdesse também essa noção de happening nas suas exposições?
O nome do encenador desvia-a da pergunta e atira-a para o passado com entusiasmo genuíno, só equiparável ao de uma criança. "O Ricardo Pais? Que saudades! Conheci-o aqui em Londres, no final dos anos 60, numa peça chamada Cais do Sodré (a partir de um texto de José Rodrigues da Silva), com um grupo de portugueses que andavam por aqui fugidos por causa das guerras coloniais. Era uma delícia." Pousa a caneca do café para esfregar as mãos e entrelaçar os dedos. "O Ricardo Pais, achei-o tão simpático, tão engraçado, nada pretensioso. Ele até me mandou um cartão agora, quando estive lá em Portugal, mas tenho a impressão que nem o vi. Aquilo era tanta gente (350 convidados oficiais na inauguração, a 15 de Outubro)!. Ele devia pôr esta peça do Pillowman lá no S. João." O encenador abrirá o próximo ano com Figurantes, de Jacinto Lucas Pires. "A sério? Tenho tanta pena de nunca mais ter visto nada dele. Conto voltar ao Porto em Janeiro. Vou tentar ver essa peça", promete.
Quanto ao happening, discorda do encenador. "É bom haver um grande acontecimento, que é - e começa a cantar, erguendo os braços - tarataran, tarantaran!" Descodifica: "Isto é para anunciar uma coisa que vai acontecer e na qual não se pode entrar sem se estar preparado, porque é preciso preparação para ver uma coisa especial. Depois, é preciso entrar, voltar lá muitas vezes, e aí sim, já é à vontade. Mas, no início, acho engraçada aquela fita toda." Volta a rir. Está sempre a rir. "Não estou não", apressa-se a desmentir. "Gosto é muito de falar." E fala, acompanhada por gestos largos e irónicos, das inaugurações londrinas. "As aberturas cá são cada coisa, tanto champagne, tantas bebidas. Desconfio que há gente que só lá vai para beber o champagne. Em Portugal também é assim?"
Paula Rego pinta encenações; não pinta sonhos, embora continue a sonhar, a ter pesadelos. Muitos. "Mas não tantos como na infância." Não os pinta para não os dotar de uma importância que diz não terem. "São efémeros. Não valem por si. O que trazem ao de cima é que interessa." Apesar da teoria, aparentemente fria, são eles os responsáveis pelo medo que nunca a abandonou completamente. "Sofre-se tanto", liberta. "Tive que fazer terapia para acalmar. Falo com uma pessoa, já mais velha, desde 1973, e está a resultar. He's a very kind man, uma pessoa boa. Não vale a pena querer encontrar explicações; eu só queria deixar de ter medo."
Pinta a dimensão sexual, mas não gosta de pintar nus. "Não gosto nada. Tenho vergonha. Sinto-me mais desconfortável do que a pessoa nua. É malcriado." A timidez não a prejudica, porque, garante, "tudo é sexual. Uma pessoa vestida pode ser profundamente erótica". E depois ironiza: "E têm menos pregas; são mais fáceis de pintar."
Os desenhos nasceram com Paula Rego. Mas, aos oito anos, houve qualquer coisa que não voltou a ser igual. "Fui fazer um retrato. Posei para o senhor lemerce, um belga refugiado no estoril. Fiquei muito quietinha para ele fazer o desenho e ouvia-o pintar. Fazia "hmmmmmm" e pintava. Estive a observar e pensei: "Aquilo não é como eu vou fazer. Não é não." Mas, nessa altura, fazia coisas e mostrava-lhe. "Fazia o Bambi. Fazia muitos Bambis, e ele gostava", afirma, inflamada com a recordação. Pára subitamente. Ajusta a objectiva da memória: "Bem, do primeiro ele gostou muito; do segundo já não gostou. E eu não percebia porque é que o segundo já não era tão bom." erde-se numa gargalhada e esconde o rosto como se ainda fosse aquela menina pequena, cheia de inconsistências. "Foi uma coisa que sempre me fez muita aflição, não saber se as minhas coisas são boas ou más. Ai, Jesus, ainda hoje sou assim."
Nessa idade, de colo, a voz aquecida do pai, engenheiro electrotécnico, narrava-lhe A História da Raposa, O Inferno, de Dante, O Crime do Padre Amaro ou histórias de Guerra Junqueiro. "Eu com aquela idade e ele lia-me aquelas coisas!" Abandona-se ao silêncio, não demasiado longo. "O meu pai", recorda, "era uma espécie de anti...". faz outra pausa. "Antitudo!", dispara. Podia até ser, mas não era contra ela, contra a sua menina, a sua mais-que-tudo, a sua filha única, a sua protegida. "Pois não, lá isso não era", condescende. "E, como ele não tinha mais filhos, eu também tinha que saber cumprir essa parte. Ele era fantástico. Sempre me deu dinheiro, mesmo quando a vida era mais dura. Por isso é que nunca me canso de lhe fazer elogios. É uma pessoa a quem ficarei sempre grata."
Na véspera de atingir a maioridade, o pai chamou-a. "Vais-te embora daqui", sentenciou. "Isto não é um país para mulheres." Portugal atravessava o período mais cinzento do regime salazarista. Consciente e abnegado, o progenitor corta-lhe o cordão umbilical, substituindo-lhe as amarras por asas, que a haveriam de levar para o Reino Unido.
A menina Paula, que na escola St. Julian's, em Carcavelos, só tinha professoras que lhe asseguravam que ela não tinha jeito nenhum para pintar - "Isto não está nada bem. Não tem mesmo jeito nenhum para fazer estas coisas. Nenhum!", dizia-lhe uma das docentes que, ao sermão, gostava sempre de adicionar umas estaladas -, não tem a certeza se, na altura, percebeu o significado da libertação. Mas sabe que estava ansiosa por sair dali para fora. "Estava desejosa de ir ao cinema. E nunca podia." E havia episódios, no país espartano, que lhe adensavam a solidão, mais intelectual do que física. "A maioria dos meus colegas não percebia nada de poesia. Eram da minha classe social, muitos estrangeiros, tínhamos 23 nacionalidades lá na escola, mas a maior parte não se interessava por poesia, por arte, por nada disso." Ela era a única. "Até lia poesia em inglês à minha mãe", sustenta. "Não percebia, mas gostava do som."
O hiato cultural com os amigos nem seria o mais nefasto. "Tínhamos outros interesses em comum", desdramatiza. Por isso, chegou a ter alguma pena no dia em que foi, realmente, embora. "Pena dos amigos que deixei, de quando íamos juntos comer gelados, de quando íamos à praia dançar a dar beijinhos." O olhar fixa-se no vazio. A confissão leva-a para longe. Regressa logo a seguir: "Aquilo era muito bom, muito bonito."
O que verdadeiramente a incomodava eram os passeios partilhados com a mãe - uma pintora que desistiu de o ser -, no Chiado, em Lisboa. Fascinadas ambas por moda, vestiam-se a rigor para irem às compras. Malas, luvas, chapéus, nada era deixado ao acaso. "Mas havia sempre gente a pedir na rua. Os homens, uns malcriados, beliscavam-nos o rabo, e cheguei a ver alguns a masturbarem-se no meio da rua. Uma vergonha. Aqui, seria impensável uma coisa dessas."
Parte para Londres em 1952 e matricula-se na Slade School of Art. "Foi esta escola que me safou", garante. "Em Portugal, ensinavam-nos a desenhar chávenas e pires, e depois tínhamos que fazer a sombra com lápis e borrar com o dedo, coisa que, quando se vem para a escola de arte, sabe-se que não se faz." Não foi para Londres por ter sido educada para ser artista. "Nada disso. Nunca fui educada para ser coisa nenhuma. Nunca me disseram: "A menina tem que ser isto ou fazer aquilo." A única coisa que os pais lhe pediam era para se portar bem. Foi embora para não ver o seu crescimento cerceado pela política ditatorial de salazar, que haveria de pintar mais tarde.
É na Slade School que aprende o amor, ao conhecer Victor Willing - o Vic, diminutivo impregnado de nostalgia nas palavras dela. O pintor, sete anos mais velho, e cuja obra haveria de sofrer forte influência de Francis Bacon e Alberto Giacometti, era casado. "Mas a mulher estava lá longe, no campo, e ele estava a estudar", desculpa ela. "Começamos a andar juntos... a andar não", rectifica, "a dormir juntos, o que é diferente. Andar andávamos muito pouco, a não ser para ir ao restaurante indiano, onde comíamos, passar cheques sem cobertura." O humor que imprime ao discurso mascára a verdade, impossibilitando a descoberta do que é dito a sério ou a brincar. Estava "extremamente apaixonada por ele", confessa. Admirava-o verdadeiramente. Até hoje, aliás. "Ele era muito bonito, dançava muito bem, era uma pessoa muito... hip, não sei como se diz em português."
E Bacon, actual vizinho de sala na Tate Britain, como era? "Era nosso amigo, mas era... he was a dandy", sussurra. "Era homossexual, muito homossexual. Conheci-o através do Vic, naquela época do Soho. Era um grande pintor, o maior pintor inglês. Trouxe a pintura inglesa para o século XX, fê-la contemporânea." À voz determinada sucede um discurso mais baixo, quase segredado. "Ele trabalhava de manhã, ao meio-dia ia beber, e no dia seguinte estava pronto para trabalhar às sete da manhã, mesmo que a mão lhe tremesse. Trabalhava sempre, divertia-se sempre, bebia desalmadamente, e tinha muita piada. Não havia ninguém igual a ele. Os outros todos também bebiam, mas depois não conseguiam fazer o que ele fazia. Admiro-o imenso. E o Vic também o admira."
A ardência que a uniu a Vic, de quem fala impreterivelmente no presente, culmina numa gravidez que a faz regressar repentinamente a Portugal. "Tinha de contar ao meu pai." Vic chega 36 horas depois. E sugere: "Bom, vamos mas é beber copos." Estava um calor imenso, recorda a pintora. "Andámos a noite inteira a beber Coca-Cola e a conversar." A resolução seria inevitável. "Que queres fazer com isso?", pergunta-lhe o pintor apontando para a barriga, já pouco discreta. "Eu gostava de ter a criança", responde-lhe. "Então, vamos embora. Estás a ficar gorda. Vamos para Paris e eu compro-te uns fatos maiores." Paula Rego teria 20 anos. Nessa noite regressaram ao Estoril, numa viagem de carro inesquecível. "Fomos em silêncio, a ouvir ópera o caminho inteiro."
Nasce Caroline. Vic prescinde de Londres. Babado, acaba por estabelecer-se na Ericeira, onde assume de vez a relação com a pintora. À segunda gravidez, decidem casar. No período que vivem em ortugal, entre 1957 e 1963, completam o leque de três herdeiros - hoje, todos artistas. "A minha filha Victoria é actriz, o meu filho é um realizador cheio de talento e a Caroline está a começar a escrever argumentos para filmes." Mas a vida profissional parecia correr na proporção inversa dos afectos. Pelo menos, para Victor. Enquanto Paula Rego beneficia de uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian - "A Gulbenkian tem sido um pai e uma mãe para mim; ajudou-me sempre muito." -, o marido, que havia ficado íntimo de Bacon, pinta muito pouco, e o pouco que pinta destrói. "Voltamos para Londres porque ele não arranjava trabalho e as coisas não se vendiam bem. Em Londres, sempre ensinava." Nesse ano, ela é convidada a leccionar Pintura na Slade School.
Mas o tempo haveria de ser curto para o que ambos desejariam. A obra de Vic, já no final dos anos 70, é produzida sob o diagnóstico de esclerose múltipla, doença degenerativa de que viria a sucumbir em 1988. O pintor pinta as suas próprias alucinações, fruto dos medicamentos que toma para combater a doença. "Pintou até ao fim", emociona-se Paula Rego, que nunca se deixou vencer pela perda da dor iminente, que nunca perdeu a vontade de pintar - "Isso não se perde, não se pode perder!". Reconhece: "Uma coisa destas nunca passa. É muito difícil exorcizar a dor. Por mais quadros que se pintem." E ela tem alguns consagrados a esta fase. "Algumas pietás, pintadas se calhar de forma inconsciente, mas que têm a ver com o Vic."
No ano da morte do marido, Paula Rego apresenta a retrospectiva da sua obra na Serpentine Gallery, em Londres, e na Gulbenkian, em Lisboa. "Não me lembro de nada. Não tinha disposição para estar em Portugal. Ainda estava cheia do Victor. Era tudo ainda muito recente."
Vic pintava em casa; e ela fora, "num daqueles ateliers alugados em comunidade". Ao fim do dia, enrolava a tela para, eterna menina insegura, desenrolá-la em casa, frente à cama do marido, e colher a sua opinião. "Sobre aquele das criadas, que me custou nem queira saber quanto, e onde está representada a Graça Morais, que estava a passar férias em minha casa, ele olhou e disse: "Tens aí umas figuras muito bem pintadas, mas a parte de trás é horrível. Pinta tudo a partir de fora." E ela pintou. "Ficou muito melhor, porque as figuras começaram, a mexer."
Nunca se intimidou com a avalancha de perguntas que fazia desaguar no leito de Vic. "Tinha muita confiança nele. Nunca tive ciúmes, porque ele tinha muito talento, era um excelente pintor, sem medo de arriscar. Era muito melhor artista do que eu. Era e é. Aprendi muito com ele." Um dia, ele revelou-lhe a regra da segurança: "Tu és a tua melhor amiga." E, quando estava a morrer, reforçou: "Tem sempre confiança em ti."
Depois de perder Vic, Paula Rego teve que descortinar truques para superar a sua ausência. "Tive que falar por ele para mim própria." Mas houve quem a ajudasse. "Há sempre pessoas, que aparecem na nossa vida, que são presenças extraordinárias. É como os animais mágicos nas histórias de fadas. As pessoas vão nas florestas perdidas e aparece um boi mágico para ajudar: "Senta-te em cima e eu levo-te".
Enquanto Vic viveu, foi Lila que o ajudou a pintar. "Ela mostrava-lhes as cores e ele escolhia". Lila é uma enfermeira de Viseu, emigrante há muitos anos em Londres, recomendada pela amiga Julieta. "Sempre que eu precisava de uma au-pair para os meus filhos, ela arranjava. Foi ela que me sugeriu a Lila para tomar conta do Vic."
A enfermeira tornou-se amiga da pintora e uma das suas modelos de referência. "Ela é excelente. Temos uma ligação profunda. Dependo dela, porque ela traz para aqui coisas, sabe pôr-se muito bem, é um trabalho extraordinário. Ouvimos música, divertimo-nos imenso." Às vezes, a pintora entusiasma-se e distrai-se. "Quando não pinto como deve ser, a Lila diz logo: "O que é preciso é trabalho. Faz-se até ficar bem". E continuam. "Quando estamos juntas, o trabalho é muito mais parecido com brincar, porque nós, quando falamos inglês somos uma pessoa; quando falamos português somos outra. Não é que a Lila conheça as histórias todas, mas basta-me dizer-lhe: "Vamos agora fazer a formiga rabiga e o pinto calçudo", e ela entende. Em Inglaterra não posso dizer isso. Ninguém, sabe o que é."
É na língua portuguesa que as ideias lhe assaltam a imaginação. Ao contrário, "para fazer conferências, o que é raríssimo, felizmente, é muito mais fácil falar em inglês, porque aprendemos a linguagem sobre arte na escola inglesa. fazer e falar sobre a coisa é diferente."
Com Ana, a "Mulher dos Bolos", é diferente: "Ela trabalha em minha casa; só a usei uma vez. Mas já usei muitas pessoas portuguesas. As figuras da Celestina, que está no Porto, são todas portuguesas. Cá há muitos. Gosto do aspecto da cara, da rigidez. É mais interessante a fisionomia dos portugueses do que propriamente dos ingleses." Para Peter Pan e Capitão Hook (personagens de um quadro recente) usou, obviamente, ingleses.
Da encenação que está agora a montar no atelier, Paula Rego nada autoriza ainda a revelar. Pinta Portugal, quase sempre. Mas dificilmente pintará o Portugal contemporâneo. "Não estou lá. Não vou às boîtes, não tomo drogas. O lado mais cosmopolita é igual aos outros. Não é tão interessante. Até os políticos, que não conheço, são todos iguais." Mas continuará a pintar "os pequenos parlamentos das famílias. Não entro na casa das pessoas, mas entro na minha todos os dias, ou já lá estive. É tudo igual. You should only do what you really know". Cita a eterna regra da escola, para reclamar o estatuto de quem já não se sujeita a regras: "Sempre me disseram que não podia fazer Roma a arder. Hoje, se quisesse, até podia fazer." E revela, satisfeita: "Depois dos desenhos das mulheres, dos macacos, das couves, da coelha grávida, dos bichos, das óperas, das famílias, da mulher-cão, vou pintar bonecos. Agora, estou na fase dos bonecos."
Seria a mãe imprudente quando dizia que ela era inconsciente? "Não, ela sabia o que dizia, conhecia-me muito bem. Continuo a não saber se o que fiz é bom ou mau." Pega numa borracha e começa a esfregá-la na cadeira, escondendo outra vez o rosto e contorcendo o corpo. "Não sei se são boas ou más", repete. "Não sei se é um disparate. mas também, se for, paciência".
(A partir de uma entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada na Grande Reportagem a 27 de Novembro de 2004)

segunda-feira, outubro 10, 2005

Casa da Música - Parte I (1998-2004)

A Luta pela Casa da Música

A missão era impossível. Mas há seis anos todos meteram tranquilamente a mão no fogo, todos deram a palavra e a honra. Pela escrupulosa data de inauguração, pelo intransponível tecto do orçamento, pela obediência ao projecto artístico. Hoje já ninguém duvida, mas todos se enganaram.


A Casa da Música erguida na zona da Boavista, no Porto, nunca poderia custar, como na primeira previsão, apenas 3,2 milhões de contos; nem poderia custar, como se supôs no final de 2001, dez milhões de contos; nunca poderia sequer custar 15 milhões de contos, como se assumiu na previsão orçamental de 2002. A obra, concebida pelo arquitecto modernista holandês Rem Koolhaas (entretanto galardoado em 2000, com o Prémio Pritzker, uma espécie de Nobel da arquitectura mundial), custará 20 milhões de contos - quase cem milhões de euros. Não é o dobro; não é o triplo; são cinco vezes mais.


«Pergunto a mim mesma como é que se atingiu este valor», reflecte, já à distância, Teresa Lago, ex-presidente da Sociedade Porto 2001, entidade encarregada de assumir a conclusão da obra. «Antes de sair, fiz as contas todas: 10,6 milhões de contos chegavam perfeitamente», insiste, de novo instalada no Centro de Astronomia do Porto, ao olhar para trás, confrontada com os valores galopantes e com a interrogação.


Manuel Alves Monteiro, actual presidente do conselho de administração (CA) da Casa da Música, ensaia a resposta, a que usa sempre: «É uma base de comparação distorcida; estamos a comparar coisas que não têm comparação», diz, situando a obra noutro patamar. E expõe a alteração responsável pela aguda dilatação orçamental: «Passámos de nove mil para 20 mil metros quadrados de área construída.» Mas, garante, «estamos perante uma obra de arte». Os prazos, de tantas vezes superados, também já deixaram de provocar celeuma.


A Casa da Música, cuja edificação - ousada, arriscada mesmo, e longe de reunir consensos - arrancou em Outubro de 1999, nunca poderia estar concluída em 2001, como inicialmente foi projectado, no conjunto de iniciativas do Porto como Capital Europeia da Cultura. «Nunca acreditei que uma obra com aquela exigência e aquela ambição pudesse estar pronta no âmbito do Porto 2001», consente agora Teresa Lago. A astrónoma terá arrumado no esquecimento uma das suas afirmações mais esperançadas: «Ainda espero que a festa de encerramento do Porto 2001 possa ser feita na Casa da Música.»


A ser cumprida a data, inaugurar-se-ia, espantosamente, um novo eixo na história da arquitectura em edifícios desta envergadura. Mas a obra, que não tardaria a ganhar apelidos - «cristal», «jóia da coroa», «meteorito» -, nunca ofereceu dúvidas a Álvaro Siza Vieira.


Mais familiarizado com a disciplina, o arquitecto portuense (outro Pritzker, bastante mais antigo, de 1992) seria o primeiro a perceber a distensão temporal que ainda ninguém ousara desafiar: «O edifício demorará, pelo menos, cinco anos a ser construído», afirmou em 1999, quando tomou conta da especificidade do projecto. Ninguém quis ouvir. «Ele não é propriamente adepto da rapidez», ironizou Artur Santos Silva, ex-presidente da comissão instaladora, inquirido sobre a escassez de tempo.


Desde a primeira meta falhada, a corrida seria feita de novas promessas a cada nova Primavera, por cada nova administração. «A Casa da Música deverá estar concluída na Primavera de 2002», antecipava Teresa Lago, a dois anos de distância. «A Casa da Música estará pronta em Maio de 2003», garantiu Rui Amaral, em Julho do ano anterior, na conferência de imprensa dada ao assumir o cargo de presidente do CA (e já depois de dissolvida a Sociedade Porto 2001). «A Casa da Música estará pronta até à Primavera de 2004», prometeu o actual presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Rio, na primeira visita à obra, quatro meses depois de ter vencido as eleições. Mas a cada nova Primavera as promessas acabariam invariavelmente abortadas.


O impulsionador do projecto, o pianista Pedro Burmester, achará hoje uma explicação: «Por ingenuidade minha, não tinha percebido que em Portugal é sempre assim. Só há a excepção da Expo'98, porque tinha de abrir mesmo naquele ano, mas provavelmente isso fê-la custar muito mais. E os estádios do Euro, porque tinha mesmo de ser.»


Em 1998, quando o projecto foi idealizado pelo ministro da Cultura do Governo socialista, Manuel Maria Carrilho, o sonho parecia mais poderoso do que a realidade. Ninguém ousava espicaçar a profissão de fé que recusava admitir qualquer margem de erro para aquele que se pretendia o ex-líbris da cidade e do País. «A Casa da Música assinalará o arranque da Capital Europeia da Cultura no Porto», prometia em Setembro desse ano, ainda confiante, Santos Silva, o banqueiro que haveria de demitir-se pouco depois por divergências com Carrilho. «Vai criar uma autêntica revolução musical», reforçava Burmester, o responsável pela escolha de Rem Koolhaas (que agora redesenha o edifício do County Museum of Art, em Los Angeles, anunciado para 2006).


A Casa da Música seria a cereja etérea no topo do bolo personificado por um ano de excepção cultural. «O projecto irá marcar a excelência e a originalidade da cultura que se faz no Porto, colocando-a no mapa europeu e criando redes que permitirão a sua afirmação international», aspirava Carrilho.


O limite seria o céu?


«O projecto não será uma odisseia no espaço, mas sim uma odisseia no tempo», acreditava o ministro da Cultura, porventura demasiado longe de imaginar a ironia de que se revestiria a afirmação, que fazia trocadilho com o título do célebre filme de Stanley Kubrick dedicadoà exploração espacial. Recusando-se hoje a tecer comentários - «por princípio», «por elegancia», e porque, admite, «não me compete» -, o actual deputado do PS limita-se, numa única declaração, breve mas límpida, a reconhecer: «O projecto está a ser desorientado e tem vindo a ser desvirtuado.»s notícias com as falhas da Casa da Música enchiam páginas de jornais.


Mas não se suspeitava que os maiores solavancos da viagem ainda estavam para chegar. E que todos os percalços do País se repercutiriam, em versão ampliada, naquele projecto. «Houve uma enorme tentativa de politização», revela Teresa Lago. «Eu própria tive de resistir, por isso não me custa a crer que tenha havido uma utilização política.»


Mas que projecto é este, e porque se constipa cada vez que há um espirro no Governo?


Atravessada por dois governos e quatro ministros da Cultura, a convulsão da Casa da Música reflectia o tremor do País. Em Janeiro de 2001, o escudo daria lugar ao euro. Em Dezembro desse ano, o Governo socialista caía a meio da legislatura, emergindo o social-democrata José Manuel Durão Barroso na liderança do País. E somavam-se os ministros da Cultura: a incompatibilidade de Carrilho com o primeiro-ministro António Guterres já o havia levado a pedir a demissão, deixando vaga a cadeira para José Sasportes, que, em momento de remodelação, fora substituído por Augusto Santos Silva. Agora, com a coligação PSD-CDS/PR a tutela passava a ser ocupada pelo social-democrata Pedro Roseta, claramente o ministro mais apagado da equipa de Durão Barroso. E hoje, apesar de Roseta ter sobrevivido a uma muito falada mas nunca executada remodelação, aguarda-se que a actual crise política nacional traga o próximo detentor da pasta.


No encalço da retrospectiva, Burmester aceita avaliar, em síntese, os quatro ministros da Cultura: «Com Carrilho avançou-se. E de que maneira! Com José Sasportes andou-se a patinar. Com Augusto Santos Silva avançou-se. E só não se avançou mais porque o PS caiu. Ele seria o ministro capaz de levar o projecto até ao fim. Com Pedro Roseta é o disparate total. É inconcebível a forma como este ministro lida com a história da Casa da Música.»


Na autarquia portuense, o número de substituições aproxima-se. Depois de dez anos à frente da cidade, Fernando Gomes desvia-se, movido pela ilusão de vingar como ministro de Segurança Interna. O lugar ficaria livre para o correligionário Nuno Cardoso, até então o seu braço-direito. Mas seria Rui Rio, vencedor inesperado nas eleições autárquicas de 2001, o mais problemático autarca para a Casa da Música. Exigiu demissões; impôs protagonistas. Nas administrações, o caso repete-se. Teresa Lago cedo avisou que não pretendia continuar".


O economista Rui Amaral é nomeado administrador pelo mesmo Governo que, um ano depois de o escolher, lhe extrai o poder, transferindo-o para Alves Monteiro, ex-presidente da Bolsa. Na vereação portuenses da Cultura, a pertinácia de Manuela Melo dá lugar à inércia de Marcelo Mendes Pinto.


Seis anos depois do início de um dos maiores e mais controversos projectos nacionais da última década, derreteram-se as convicções; ficaram as esperanças, alimentadas a custo. De ver a obra concluída, de não ver o projecto desvirtuado. De não estar a criar um elefante branco. E se for, desdramatizou Rui Amaral, «será apenas mais um. O País já tem muitos».Se correr tudo bem, anuncia agora Alves Monteiro, a Casa da Música deverá ficar concluída a 30 de Novembro deste ano, com abertura provável no fim do primeiro trimestre de 2005. Da equipa inicial, pouco sobrou para amostra. Nem tão-pouco Burmester. Mas tudo pode acontecer ainda.


O que falta hoje à Casa da Música, a cinco meses da conclusão da obra, é exactamente o mesmo que faltava há cinco anos: modelo de gestão, figurino de financiamento, definição do programa artístico e formato de inclusão da Orquestra Nacional do Porto (ONP). Nos cinco meses de arranque, em 1998, Burmester transformou uma utopia em realidade: «Foi anddo muito rápido. Decidimos a localização, na Boavista, e que o edifício deveria ser marcante, não se aproveitando nada do que já havia na cidade; que deveria ser desenhado por um arquitecto estrangeiro. São questões que não são propriamente pacíficas. Houve ainda a preocupação de usar a obra para fazer requalificação urbana numa zona que já havia sido o segundo centro da cidade. Desde o início ficou decidido que seria urna casa para todas as músicas, devendo albergar a ONP, não só como inquilino, mas fazendo parte do projecto. Os equipamentos residentes - Remix Ensemble, Remix Orquestra, Estúdio de Ópera, Serviço Educativo - surgiram logo nessa altura.»´


Desde então, filtrando os acontecimentos pontuais e artisticamente notáveis de cada um dos agrupamentos - as óperas Wozzeck, com o bairro de Aldoar, e Brundibar, com alunos de escolas do Porto, em 2001, o Festival Obra Aberta em 2002 e os concertos do Remix, imensos mas para minorias -, o País tem assistido a um espesso vazio relativamente a deliberações administrativas.


O modelo de gestão deveria ter sido aferido ontem, num seminário que Alves Monteiro havia agendado para o Porto com responsáveis máximos de outros equipamentos culturais idênticos à Casa da Música, deputados e vereadores de Cultura. «Será meio dia de reflexão: temos de ser sintéticos, concisos, eficientes.» Mas novamente o contexto político provoca a imobilidade e compromete decisões. Com a ida de Durão Barroso para Bruxelas, também essa decisão continua adiada.«O que conheço da programação é o que foi anunciado por Pedro Burmester, na altura em que ainda lá estava», observa Manuela Melo.


«Anthony Withworth-Jones [novo director artístico nomeado em Fevereiro de 2004] já está cá há tempo suficiente para dar a cara, mas ainda não o fez. Quanto ao resto, vejo muitos estudos mas nenhuma decisão.»


A mudança de Governo terá implicado um revés num projecto apadrinhado pelo PS?


«Definitivamente», garante agora Teresa Lago. «Tivemos dificuldade em encontrar um interlocutor atento e interessado. No início tentei não fazer um juízo, porque contactei com eles apenas três meses (de Março a Junho 2002). Dei-lhes o benefício da fase de adaptação. Mas hoje, como cidadã, apercebo-me de que a atitude não mudou.» Fernando Gomes, o autarca que presenciou o arranque do projecto, intervém: «Não é uma questão política. É uma questão de sensibilidade. Com este Governo temos andado para trás.»Há duas concepções muito distintas de ver o País, analisa hoje Nuno Cardoso, com quem Teresa Lago teve sérias divergências pessoais quando ele sucedeu a Gomes na presidência da autarquia. «A Casa da Música sofreu com esta ruptura entre um partido - o PS - que entende que o investimento é catalisador do desenvolvimento do País e outro - o PSD - que não.»


Para Burmester, a responsabilidade do contexto político complicado que se impôs à Casa da Música será das duas forças políticas: «O PS não salvaguardou a situação de isolar a Casa da Música do contexto da Porto 2001. Mantê-la lá só serviu para complicar. Tal como não tratou da integração da ONP. Ainda hoje é uma incógnita, e vai ser um sarilho. Pedro Roseta diz que ela será independente. Alves Monteiro diz que será indexada. O entendimento é excelente», ironiza. Por outro lado, acrescenta o pianista, «o PSD geriu tudo pessimamente». E especifica: «Vê-se logo pelas pessoas que escolheram para as duas administrações que são de uma total ignorância em relação ao projecto. A primeira [liderada por Amaral, em 2002] foi desastrosa. Eram pessoas completamente incompetentes para o cargo, lá colocadas sobretudo pelo presidente da Câmara, Rui Rio. A actual administração [presidida por Alves Monteiro, desde 2003] não tomou durante um ano inteiro qualquer decisão sobre nada. Portanto, está pior ainda.»


Burmester não tem dúvidas quanto à gravidade da situação vigente: «Tudo é feito com o disfarce de que são bons gestores, o que é uma hipocrisia, porque não são. Basta comparar a competência de quem está à frente de uma estrutura como a Fundação de Serralves com a de quem lidera hoje a Casa da Música. Nunca se chegará aos calcanhares de Serralves com estes senhores.»


Na hora da despedida, em Julho de 2002, Teresa Lago não tinha «expectativas especial» em relação à administração da nova sociedade Casa da Música/Porto 2001 SA: «A missão da nova sociedade tem características perfeitamente definidas. Negociámos tudo com os construtores.»


A 27 de Junho de 2002 é anunciado o primeiro CA para a estrutura. Economista e gestor de empresas no sector dos transportes e logística, o social-democrata Rui Amaral, ex-secretário de Estado em sucessivos governos e deputado na AR e no Parlamento Europeu, é nomeado por Roseta para a presidência da administração da Casa da Música. Burmester e Hélder Sampaio, um engenheiro, completam a equipa. Teresa Lago elogia imediatamente a permanência do pianista: «Ele é essencial. É a alma do projecto. E um bom sinal que tenha ficado.» Mas a sua continuidade não bastou.


Inicia-se então o mais dramático período do projecto desde o seu nascimento. Amaral, munido de múltiplas discordâncias, dispara em todas as direcções: «Temos a obrigação de concluir a herança que recebemos do Porto 2001 - que, infelizmente, é quase tudo», acusou. «Se tivesse sido ouvido», o economista não teria escolhido aquele sítio, e lamenta que a obra não tenha sido dada a Siza Vieira ou a Eduardo Souto Moura, mas reconhece que gosta «cada vez mais» das maquetas de Koolhaas, cujos honorários globais rondam os 7,9 milhões de euros. A sua preocupação, no entanto, é o espaço físico que espera habitar até à reforma: «Tenho 59 anos, acho que estou na altura de trabalhai" mais meia dúzia de anos e pôr a Casa da Música em velocidade de cruzeiro. Só aí me poderei retirar", dando lugar a uma pessoa mais jovem, que imprima outro ritmo à Casa.» Acabaria demitido alguns anos antes do que planeara. Amaral desafia todas as definições preconcebidas: espaço, programação, público, modelo de gestão, orçamento, tudo. «O espaço reservado para camarins é capaz de ser excessivo e a área administrativa talvez seja pequena», adianta logo numa das primeiras entrevistas, em Abril de 2003. A situação financeira começava a plissar. «Temos um montante em dívida que ronda os 50 milhões de euros», informa. «Não é dramático, porque já temos pré--negociada com a banca privada uma solução que passa pelo diferimento temporal, por vários anos, desses investimentos.» Optimista, chega a prometer: «Desde que estamos à frente desta administração, vai pagar-se menos até ao final da obra do que aquilo que estava inicialmente previsto.» E, apesar de o cenário não ser o melhor, garantia: «Não houve qualquer derrapagem nos custos de construção.» O modelo de gestão, que até então tendia para a Fundação (à semelhança de Serralves), assume outro rumo, a sociedade anónima, «porque é a situação mais flexível que a lei portuguesa permite - e deve poder vir a ter capitais privados».


Nos bastidores, ainda longe do faro da comunicação social, emergiam as primeiras dúvidas. A desejada comparação com Serralves parecia ficar cada vez mais distante. A concepção de Burmester, pensada ao pormenor durante quatro anos, ganha contornos de miragem. A integração da ONP assumia também um novo carácter. Amaral tinha ideias claras: «Isto não vai ser a casa da ONP. E se alguém na Orquestra pensa o contrário, está muito enganado. Vão ter aqui um sítio para ensaiar, como vai ter o Remix ou o Estúdio de Ópera, em igualdade de circunstâncias.»


De resto, Amaral nunca viu em Burmester o mentor do projecto, quanto mais a alma. «A única pessoa que sempre esteve íntima e indiscutivelmente ligada ao projecto é o arquitecto. Pedro Burmester tem os méritos que também não retiraria ao meu outro colega de administração, Hélder Sampaio. O contributo dele não tem sido em nada inferior ao de Burmester.» O administrador esquece que o próprio Koolhaas era escolha de Burmester. E que o projecto sobre o qual estava a opinar havia sido, igualmente, pensado pelo pianista. Por isso, os jornalistas, insistiam na pergunta: Burmester poderá vir a ser o seu director artístico da Casa da Música? «Sendo ele administrador, não estará nas suas expectativas descer para a direcção executiva», presumia o presidente. E sobre o conteúdo não apresentava qualquer dúvida: «Aquela Casa não é para todos os tipos de música . Veria com grande dificuldade actuar no grande auditório um conjunto do maior prestígio à escala mundial como os Metallica. O programa vai ter filarmónicas e folclore de boa qualidade.»Amaral, que chegara a assegurar a conclusão da obra para este Verão, sonhando inclusive com a possibilidade de ali fazer, em colaboração com a UEFA, a gala de abertura do Euro 2004, acalmou o ritmo exaltado três meses depois da sua tomada de posse. Em Agosto de 2002, mais brando, reconhecia: «A obra é controversa, difícil, complexa e polémica.»


Curiosamente, tudo parece ter feito para acentuar o teor daqueles adjectivos. Para rentabilizar a Casa da Música, sugeriu a produção de congressos: «Os auditórios não são obrigatoriamente para espectáculos musicais, apesar destes terem prioridade.» E sublinhou: «Teremos ainda restaurantes, lojas, parque de estacionamento e outras actividades complementares.» E resume o achado: «A Casa da Música é um centro comercial da música.»


Inquieto com. o curso do projecto, Burmester abre, a 18 de Junho de 2003, uma ferida, insanável, que acaba por custar-lhe o lugar de administrador. E não só, como mais tarde se vem a verificar". Em entrevista ao JN, o pianista solta o desabafo: «Estranhamente ainda não é conhecido o modelo de gestão para a Casa da Música. O Ministério da Cultura deve ter muitos assuntos para resolver, e a cultura não deve ser uma prioridade.» Indiferente às consequências do peso das suas próprias palavras, ou, pelo contrário, testando o seu limite, descarrega um chorrilho de queixas: «A Câmara do Porto tem uma percentagem muito pequena (13%) e, segundo diz, poucos meios financeiros para investir aqui. Como tal, não terá uma palavra multo importante a dizer. Está mais preocupada com questões que reduzem o Porto a urna aldeia.» Desautorizando Amaral, ao refazer afirmações que este produzira sobre a programação, Burmester ironiza: «Ele não é do meio musical. É natural que faça afirmações confusas para as pessoas.»


Tudo parecia fugir das mãos do pianista, menos a crença absoluta no projecto a que estará sempre ligado como impulsionador, independentemente de quem o esteja a conduzir ou venha a conduzir: «A Casa da Música não vai salvar o mundo. Mas pode, juntamente com outras políticas, contribuir para isso.» E sublinhou: «Acredito tanto neste projecto e revejo-me tanto nele que, enquanto assim for, continuarei com o piano em banho-maria. Se o projecto for descaracterizado, aí sim, saio.» Rio, que Burmester considerava «muito lúcido e rigoroso na avaliação e compreensão das coisas», seria o primeiro a reagir.


O presidente da Câmara do Porto exigiu que o pianista abandonasse o cargo de administrador logo após ter rido conhecimento das declarações proferidas na entrevista. «Deve demitir-se já!», impôs de forma inapelável. «Quem critica permanentemente os accionistas, nomeadamente o Governo, a Câmara Municipal e, agora, o próprio presidente do conselho de administração do qual faz parte, e insiste em não se demitir, é porque não tem uma atitude séria.» E retoma: «Burmester é um bom exemplo da falta de seriedade na vida pública. Já se devia ter demitido.»


Também José Amaral Lopes, secretário de Estado da Cultura, sai em defesa do presidente do CA, desvalorizando o atraso na escolha do modelo de gestão: «Não entendo como durante tantos anos de prazos incumpridos, numa obra que deveria ter terminado em 2001, ninguém se preocupou. E agora, quando pela primeira vez é expectável que tudo se cumpra, estoura uma discussão em torno do modelo de gestão.»


A discussão seria mais densa e não circunscrita à figura que haveria de gerir a Casa da Música. O vulcão entrara em erupção, e nos dias seguintes as explosões suceder-se-iam. Mais nefastas.


Burmester ainda não tinha dito tudo o que sabia. Quase um ano depois de ter tomado posse, descobre-se que Amaral concretizara a sua principal preocupação. Encomendou uma alteração ao projecto de Koolhaas, passando por aumentar significativamente a área administrativa, com sacrifício de todos os camarins para solistas e ainda de salas de ensaio e estúdios de cibermúsica.


A notícia é avançada pelo Público. Ellen van Loon, directora do projecto na OMA, o gabinete de Koolhaas, confirma-a e revela a intenção de escrever uma carta ao CA a explicar as consequências das alterações propostas, que incluíam a construção de um elevador para uso exclusivo da administração. «Talvez não goste de andar a pé, e pediu um elevador adicional», acrescentou. Confrontado com a inesperada revelação, Amaral negou. Negou sempre. «É absolutamente falso», garantiu ao mesmo diário. Não encomendou, não pediu, nunca ouviu falar.«Ficámos muito surpreendidos quando falámos com Pedro Burmester e percebemos que ele não fora informado deste pedido», disse ainda a colaboradora do arquitecto holandês. No encontro de alterações com o gabinete de Jorge Carvalho, contratado por Koolhaas para acompanhar a obra, participara apenas Hélder Sampaio. Burmester disse que teve conhecimento da proposta, mas que não a aprovou. Tanto mais que nem sequer foi levada a CA O Ministério da Cultura, principal accionista, faz saber que não fora informado. Van Loon ainda tenta explicar que «a existência de camarins para solistas é um requerimento básico num equipamento deste tipo» e que, a ser sacrificado, não restariam localizações alternativas. Além disso, a concretização do pedido teria custos elevados, já que não constava do contrato. Sem margem de manobra, Amaral vê-se obrigado a confirmar a história. Parcialmente, pelo menos: «Como a alteração implicaria um atraso de seis meses, desisti da ideia.» Mas, volta a assegurar, «nunca falei de um elevador».


A ferida entre Burmester e o presidente do CA estava aberta, e já nada a poderia fazer cicatrizar. Rio está inconformado: «Era incapaz de fazer aquilo que Pedro Burmester tem feito. Foi nomeado pelo Ministério da Cultura e pela Câmara Municipal e está sempre a discordar das posições deles. Não pode pertencer a um projecto e estar sempre em desacordo porque não é sério. Não tem regras morais.»


O lugar do pianista fica preso por um fio. Num clima que a imprensa define como «paz podre», Jorge Sampaio sai em defesa de Burmester. «Espero que possa continuar ligado ao projecto, que é importantíssimo para o País», afirmou o Presidente da República em noite de São João, no Porto. «Pela validade e pertinência de Pedro Burmester, perder-se-ia menos com a saída de Rui Amaral», afirma Paulo Cunha e Silva, hoje director do Instituto das Artes.


«Estamos perante um caso de delito de opinião - se Burmester saísse agora, as consequências seriam negativas para o projecto e para o País», nota Francisco Assis, líder distrital do PS Porto.


Carrilho assume-se em estado de choque: «Estamos a assistir a uma vandalização da política cultural. Tivemos uma ambição europeia que está a ser estropiada por pessoas como Rui Rio e Rui Amaral, que têm um comportamento típico de quem despreza a cultura, não compreende a importância de um investimento destes e, por isso, lança sobre ele o pesadelo.»


O movimento de solidariedade parece ultrapassar a fronteira. Confrontado com um eventual afastamento de Burmester, Antoine Gindt, responsável pelo Festival Théâtre & Musique de Paris, ameaça retirar a Casa da Música do Réseau Varèse, uma rede europeia vocacionada para a criação e difusão da música contemporânea. «A associação funciona na base da confiança pessoal em quem dirige os projectos», diz. O futuro de Burmester e da Casa da Música estava agora nas mãos do Ministério da Cultura.


A tempestade arrastaria inocentes. Na primeira entrevista concedida depois de estalar a crise, Marcelo Mendes Pinto demarca-se da posição da autarquia, elogiando Pedro Burmester. «E uma figura incontornável na cultura portuense», diz o vereador. «O Porto lucra e lucrará com ele a pensar o futuro da Casa da Música.» As declarações deixariam o PSD Porto à beira de um ataque de nervos. A concelhia do partido, presidida por Sérgio Vieira, marca uma reunião de urgência para debater o seu teor e impacte, e há quem defenda a necessidade de lhe retirar a Mendes Pinto o pelouro da Cultura.Militante do PP, o vereador partilhava a preocupação do pianista: «É evidente que, com a obra a caminhar para a sua recta final, quanto mais depressa for conhecido o modelo de gestão, melhor.» Mas defende o afastamento da autarquia: «A Câmara do Porto, até pelo elevado orçamento que envolve, não deve imiscuir-se na gestão da Casa da Música.» O PSD-Porto exige que ele se retracte, mas Mendes Pinto mantém-se na trincheira. E desvaloriza a reacção intempestiva do presidente da Câmara: «Rui Rio teve uma reacção própria de uma pessoa que ficou chocada com as declarações que ouviu.» Mendes Pinto terá resistido à batalha, mas não à guerra. E ninguém o retira da redoma de silêncio a que se entregou. Hoje escusa-se a comentar o passado: «Não tenho opinião a dar sobre a Casa da Música. Não passou por mim, seria despropositado falar.»


Três dias depois de Burmester ter dito o que disse, é conhecida a sua primeira sentença. O CA, do qual ainda fazia parte, acusa-o em comunicado de «violar o princípio indispensável de solidariedade». A partir daqui ninguém estava seguro na Casa da Música. A hipótese de Amaral e Sampaio virem, também eles, a ser dispensados ganhava dimensão. «O assunto é muito importante e delicado; não tenho a solução no bolso», afirma Roseta, em visita ao Porto, num dos raríssimos momentos em que aceitou falar do tema.Mas o ministro está entre a espada e a parede. De um lado, Rio, vice-presidente do PSD, exige a demissão de Burmester; do outro, assiste a uma avalancha de pedidos, da área política e artística, para a permanência do pianista e programador.

Roseta, que Carrilho acusa de «não passar de um zombie», opta por uma conversa com Burmester. À saída, o pianista sente-se «aliviado»: «Respondi a todas as questões, que era o que eu queria há vários meses.»


O veredicto oficial é conhecido em tempo recorde: o CA será integralmente dissolvido, informa o Ministério. Carrilho cumpre o seu dever oposicionista: «Rui Amaral provou não estar à altura da Casa da Música. Este projecto exige pessoas com sensibilidade e competência cultural. Não se trata de um gestor qualquer. Rui Amaral não entende sequer o dementar da gestão cultural. E alguém que por incompetência, ignorância ou capricho tem dito coisas aberrantes como querer um projecto, um arquitecto ou sítio diferentes.» Burmester, que diz passar agora o tempo «na bancada» a rir-se´«dos disparates que se fazem», não perde o sentido de humor: «Acho que o PSD ainda me vai agradecer por ter feito com que aquela administração saísse. Eram pessoas completamente incompetentes.»


Longe de perder a autoconfiança, Amaral, na sessão de despedida, afirma, peremptório: «Passado um ano sobre a concessão do mandato que nos fizeram, podemos dizer, com toda a propriedade, que cumprimos tudo o que nos foi pedido.» Desta vez, Rio recusa-se a tecer comentários: «Vocês, jornalistas, não gostam de boas notícias», alega.Reinicia-se a corrida ao poder na Casa da Música.


Burmester volta a ser seduzido para integrar a nova equipa, naquilo que representará o quarto voto de confiança desde 1998. Para a presidência do CA, fala-se no regresso de Artur Santos Silva. Mas a hipótese não chega a ser concretizada.


«As tricas políticas ficaram à porta quando eu entrei» - Alves Monteiro, formado em Direito, é o homem que se segue. O quarto. Nomeado em Junho de 2003, prometeu em teoria o que acabaria por dosear na prática: rigor e verticalidade. Burmester, mesmo sem o conhecer, e ainda sem saber se continuaria ligado ao projecto, acreditava nele: «E alguém com muitas qualidades.» Só isso, confessou, bastava para ter «outra tranquilidade». E sobretudo a segurança de que o projecto não iria «sofrer nenhuma adulteração» e de que haveria «continuidade na programação cultural». Manuela Melo tinha mais dúvidas. O facto de o Ministério ter anunciado o presidente do CA sem nomear os restantes elementos, ou sequer esclarecer a situação do pianista, não lhe agradou: «É uma não-decisão», indignou-se.


O primeiro teste à determinação de Alves Monteiro surgiria com a ainda hipotética nomeação de Agostinho Branquinho para completar a nova equipa. Rio volta a manifestar-se, insistindo com o Governo na nomeação do seu amigo de longa data e sócio de negócios. De resto, o próprio Alves Monteiro foi sugestão de Rio, que não tardou a enaltecer o seu «prestígio e currículo invejável».


Branquinho, responsável pela campanha eleitoral que levou o actual autarca portuense ao poder, admite logo ter perfil para o cargo. E desfia nos jornais o currículo que o justificaria: assessor cultural da Fundação Eng. António de Almeida, secretário-geral do centro UNESCO no Porto e administrador da Fundação da Juventude. Os jornais começam a dá-lo como certo. Mas Alves Monteiro sente necessidade de desmentir a notícia. Vezes sucessivas. Confessa estar a sofrer «ensaios de pressões» em torno da constituição da nova equipa de gestão. Acrescenta que essas pressões corporizavam «determinados interesses», com os quais não estaria disposto a pactuar. E alerta: «Temo que possa haver uma apropriação política da Casa da Música.»


Poucos meses depois surge a confirmação: Branquinho e Oscar Liberal (mais um engenheiro) seriam os novos membros do CA. Estaria cumprida a cláusula prioritária do Ministério da Cultura, que exigia sintonia entre os vários gestores para que a crise, entretanto sanada, não voltasse a repetir-se?


Nos bastidores especula-se que Branquinho terá sido a primeira cedência do presidente do CA O preço a pagar para poder continuar a ter o pianista associado ao projecto.


Seduzido como consultor para a programação cultural de Alves Monteiro, Burmester aceita. «Ingenuamente», reconhece hoje, já da «bancada». Mas não esquece a crónica que Branquinho lhe dedicou no JN, aquando da tempestade: «Pessoas com relevo público e grande penetração na comunicação social que fazem críticas aos poderes legitimamente eleitos que hierarquicamente lhe estão acima são necessariamente contrárias às regras de convivência na sociedade e até às normas da boa educação. Ninguém é obrigado a ocupar tais lugares, mas, uma vez neles empossados, há mínimos que têm de ser respeitados, para não valer tudo.» E o autor do texto também não rectificara a opinião.


Se houvesse caminhos que conduzissem ao passado, o pianista não hesitaria em refazê-los: «Daria tudo o que dei pela Casa da Música, mas faria algumas coisas diferentes, se soubesse o que sei hoje.» O convite foi desonesto? O pianista sorri. Cala. E conclui. «Por princípio, acredito nas pessoas. Espero continuar a fazê-lo.»


Sem ignorar as dificuldades do caminho, Alves Monteiro parecia ter devolvido a «serenidade» que tanto desejava ao projecto. Anuncia a conclusão da obra para o fim de 2004 e recupera a fundação comomodelo privilegiado para gerir a Casa da Musica. «Sou fundamentalmente um gestor. Estou aqui para levar o projecto a bom porto. Se o modelo de fundação não for o escolhido, os meus princípios não são violentados», ressalvou sempre. Reconhece o «descalabro financeiro e temporal»-vê-se obrigado a contrair novo empréstimo no valor de 85 milhões de euros -, mas promete, seguro: «Não haverá mais derrapagens até ao final da obra.»


Antes disso, lamenta o «permanente branqueamento de penalizações ao arquitecto e aos empreiteiros», que considera responsáveis por uma fatia substancial dos atrasos. Decide ainda que o modelo de funcionamento oscilará entre a Gulbenkian, da qual pretende importar a ligação estreita aos agrupamentos da casa e a aposta na formação de músicos, e o inglês The Sage, do qual tenciona reproduzir a ideia de uma programação ecléctica. «Não queríamos um modelo que fizesse sentido agora mas perdesse a actualidade daqui a cinco anos», justifica.Por definir, continuava a integração da ONP.


E Burmester voltava a alertar para a necessidade de tomar decisões: «Quanto mais tarde se resolver o problema da orquestra, pior será de resolver.» Mas a convivência entre Alves Monteiro e o pianista não dava sinais de preocupação. «Penso que pode e deve estar ligado à Casa dá Música», reconhecia o presidente sobre Burmester ao fim dos primeiros meses. «Conhece o projecto desde a sua origem e tem trabalhado comigo de forma muito gratificante.»


No fim de 2003, o pianista deixa um recado aparentemente inofensivo: «O lugar de director artístico é o único que estou disponível para aceitar no futuro.» No circuito político, a declaração terá tido outro impacte. Dois meses depois, em Fevereiro de 2004, a administração da Casa da Música faz o anúncio, imprevisto e surpreendente: «O director artístico será o inglês Anthony Withworth-Jones.»


O nome não podia ser mais desconhecido. Mas ninguém parecia estar interessado em familiarizar o público com a carreira do britânico, que alegadamente teria justificado a sua eleição para o cargo. Alves Monteiro remeteu-se ao silêncio. O Ministério da Cultura lavou as mãos do assunto: «A escolha é da competência da instituição.» E de Burmester, que além de não ter sido consultado foi informado da nomeação por carta, e ao mesmo tempo que a imprensa, poucas palavras se ouviram desde então.


Na missiva, Alves Monteiro endereçava-lhe ainda um convite. Mais ambíguo do que o primeiro. O presidente do CA pedia-lhe para desempenhar funções de consultor para a programação numa relação directa com Withworth-Jones. «Não, obviamente», foi a resposta, completando a que, de forma indirecta, já dera por antecipação em Dezembro.


O pianista sai «magoado», e em silêncio.


Era o temido fim de um enlace de cinco anos e meio. Burmester divorciava-se, de forma irreversível, do projecto de cujo programa foi o principal responsável.
«Não se devem fazer convites que as pessoas não podem aceitar - não são convites, são presentes envenenados, cascas de banana», diz Augusto Santos Silva, para quem este afastamento fica associado a «uma das mais desastrosas decisões políticas deste Governo». «Ninguém é insubstituível, mas a saída de Pedro Burmester desencadeou uma desestruturação de equipas que com ele trabalhavam. Essa é, ainda hoje, a principal ameaça ao bom funcionamento da Casa da Música.»


Opinião diferente tem Sasportes: «O projecto não tem dono. A passagem de testemunho é natural.» Abraçando o optimismo, o actual comissário da UNESCO defende «que um projecto como o Casa da Música está condenado ao sucesso - é preciso fazer muitas asneiras para que assim não seja». Os três partidos da oposição - PS, PCP, BE -, exaltados, ainda chegam a solicitar a presença de Roseta no Parlamento para explicar a escolha. Mas a maioria chumbaria o requerimento. Por duas vezes.


Sem Burmester, o promissor programa começa a dissolver-se.


A 24 de Março, Fausto Neves, pianista e responsável pelo Serviço Educativo da Casa da Música desde 1999, apresenta a demissão: «Fi-lo pelo projecto em si, que não consigo dissociar do Pedro», explica ao JN. «A saída dele, além de imprevisível, deve-se a um mau gosto e metodologia que roça a boçalidade.» Suzana Ralha, a face mais visível de um longo projecto desenvolvido com os bairros de Aldoar e Fonte de Moura, já o havia feito. Antónia Castro também. E Ana Morais, que a substituíra, não viu o contrato ser-lhe renovado. O departamento, pautado por uma forte componente formativa e denominado como coração da Casa da Musica, estava absolutamente vazio.


Alves Monteiro desvaloriza as demissões, mas reconhece: «A saída de Fausto Neves foi um incidente de percurso», que seria, «rapidamente colmatado». O serviço continua tão vazio como antes. «Ele estava há vários anos no Serviço Educativo pela mão de Pedro Burmester, entendeu que devia sair por solidariedade, e eu respeito. Se não o tivesse feito, eu não o dispensaria, mas exigir-lhe-ia uma contribuição que não se compadece com o part-time em que trabalhava.» Neves, que este ano aceitou o convite para leccionar 12 horas por semana na Universidade de Aveiro, reagiu: «Nunca me criticaram em qualidade, quanto mais em quantidade. E eu nunca exigi da Casa da Música horas extraordinárias. Fizemos trabalhos de produção quase impossíveis, graças ao nosso voluntariado.»Alves Monteiro insiste: «O projecto permanecerá imbeliscável. Doa a quem doer.»


Lentamente, o currículo de Withworth-Jones, que até hoje proferiu publicamente uma única frase - «Vou introduzir a minha visão pessoal /sobre a direcção artística» -, vai sendo revelado. Sempre pêlos jornais.Descobre-se que privilegia a vertente operática. Esteve dez anos à frente da Ópera de Glyndebourne, no Sul de Inglaterra, onde terá deixado um relevante legado artístico. E daí saltou para os EUA, tendo sido nomeado director da Dálias Opera, de onde acabou por sair dois anos depois. Desiludido e com uma indemnização.


Com o mesmo vagar, Alves Monteiro ia sugerindo a sua desilusão com Burmester: «Quando cá cheguei, a 11 meses da abertura desta casa, nunca vi nenhum documento com a programação. E solicitei-o muitas vezes.» Curiosamente, quando apresenta à comunicação social uma grelha de programação, que prevê 340 eventos em ano cruzeiro, subdividida em eventos semanais, mensais e blocos temáticos, verifica-se que corresponde quase na totalidade à delineada por Burmester enquanto consultor. «O documento fala por si», limitou-se a responder o pianista. Alves Monteiro desvalorizou: «Este plano é, apenas, o resultado de uma "folha" que ele me entregou. Cabe agora a Withworth-Jones elaborar a programação definitiva.»Ou talvez não. No mês passado, o CA publicou um anúncio a solicitar um director para as áreas da Pop e da World Music. «Não é um director», ressalva Alves Monteiro. «E um auxiliar.»


Renitente, Manuela Melo volta a ter dúvidas: «Gostava de conhecer primeiro qual é o organograma da instituição para saber onde se encaixam estes concursos públicos.» A preocupação de Augusto Santos Silva é diferente: «Não sou adversário dos concursos, são usados em instituições prestigiadas do todo o mundo. Preencher lugares por concurso público aberto não é errado. Mas é incongruente, depois de terem nomeado Withworth-Jones. Esse sim, não passou por nenhum concurso. Pelo que conheço do seu currículo, não é uma má escolha. O meu ponto não é esse, é o tribalismo político que designou Pedro Burmester como inimigo a abater.»


O presidente do CA esclarece: «Estamos a falar de coisas diferentes. As figuras deste tipo de organização são, geralmente, nomeadas. Depois, há outros profissionais que podem ser recrutados.» E houve ainda o tempo, que parece ter tido um papel crucial: «Temos mais tempo para decidir quem vai assumir funções nesta fase do que antes para escolher o director artístico.»


«Se Bilbao entrou no mapa só por causa do Museu Guggenheim, nós também podemos entrar graças à Casa da Música », acredita Nuno Cardoso. «Só daqui a muitos anos é que se irá ver. O impacte será incomensurável. O efeito deste evento é enorme.» Como uma fé que, no caso, não encontra muitos adeptos.


Burmester espera «que ele não vá por água abaixo». Mas confessa: «Temo que vá.»


Fernando Gomes também não está convencido: «Tenho sérios receios do futuro. Estão a fazer a gestão economicista de um espaço cultural e não a transformá-lo num pólo cultural europeu.»


Teresa Lago não é tão severa: «Se a Casa da Música surgir como um projecto de ambição, com um programa global, mantendo a ideia original, as tricas serão esquecidas. Se não se satisfizerem as expectativas, há que procurar os responsáveis.»


Augusto Santos Silva diz que «corremos o risco de ter um equipamento aberto em 2005 sem decisões claras de como financiar a actividade no prazo devido - na música, a programação faz-se a anos de distância».


Mas é de José Sasportes que vem o axioma definitivo: «Quando abrir, toda a gente vai querer ser o pai da obra.»


(Trabalho de Helena Teixeira da Silva, publicado na Grande Reportagem, em Junho de 2004)