A Luta pela Casa da Música A missão era impossível. Mas há seis anos todos meteram tranquilamente a mão no fogo, todos deram a palavra e a honra. Pela escrupulosa data de inauguração, pelo intransponível tecto do orçamento, pela obediência ao projecto artístico. Hoje já ninguém duvida, mas todos se enganaram. A Casa da Música erguida na zona da Boavista, no Porto, nunca poderia custar, como na primeira previsão, apenas 3,2 milhões de contos; nem poderia custar, como se supôs no final de 2001, dez milhões de contos; nunca poderia sequer custar 15 milhões de contos, como se assumiu na previsão orçamental de 2002. A obra, concebida pelo arquitecto modernista holandês Rem Koolhaas (entretanto galardoado em 2000, com o Prémio Pritzker, uma espécie de Nobel da arquitectura mundial), custará 20 milhões de contos - quase cem milhões de euros. Não é o dobro; não é o triplo; são cinco vezes mais.
«Pergunto a mim mesma como é que se atingiu este valor», reflecte, já à distância, Teresa Lago, ex-presidente da Sociedade Porto 2001, entidade encarregada de assumir a conclusão da obra. «Antes de sair, fiz as contas todas: 10,6 milhões de contos chegavam perfeitamente», insiste, de novo instalada no Centro de Astronomia do Porto, ao olhar para trás, confrontada com os valores galopantes e com a interrogação.
Manuel Alves Monteiro, actual presidente do conselho de administração (CA) da Casa da Música, ensaia a resposta, a que usa sempre: «É uma base de comparação distorcida; estamos a comparar coisas que não têm comparação», diz, situando a obra noutro patamar. E expõe a alteração responsável pela aguda dilatação orçamental: «Passámos de nove mil para 20 mil metros quadrados de área construída.» Mas, garante, «estamos perante uma obra de arte». Os prazos, de tantas vezes superados, também já deixaram de provocar celeuma.
A Casa da Música, cuja edificação - ousada, arriscada mesmo, e longe de reunir consensos - arrancou em Outubro de 1999, nunca poderia estar concluída em 2001, como inicialmente foi projectado, no conjunto de iniciativas do Porto como Capital Europeia da Cultura. «Nunca acreditei que uma obra com aquela exigência e aquela ambição pudesse estar pronta no âmbito do Porto 2001», consente agora Teresa Lago. A astrónoma terá arrumado no esquecimento uma das suas afirmações mais esperançadas: «Ainda espero que a festa de encerramento do Porto 2001 possa ser feita na Casa da Música.»
A ser cumprida a data, inaugurar-se-ia, espantosamente, um novo eixo na história da arquitectura em edifícios desta envergadura. Mas a obra, que não tardaria a ganhar apelidos - «cristal», «jóia da coroa», «meteorito» -, nunca ofereceu dúvidas a Álvaro Siza Vieira.
Mais familiarizado com a disciplina, o arquitecto portuense (outro Pritzker, bastante mais antigo, de 1992) seria o primeiro a perceber a distensão temporal que ainda ninguém ousara desafiar: «O edifício demorará, pelo menos, cinco anos a ser construído», afirmou em 1999, quando tomou conta da especificidade do projecto. Ninguém quis ouvir. «Ele não é propriamente adepto da rapidez», ironizou Artur Santos Silva, ex-presidente da comissão instaladora, inquirido sobre a escassez de tempo.
Desde a primeira meta falhada, a corrida seria feita de novas promessas a cada nova Primavera, por cada nova administração. «A Casa da Música deverá estar concluída na Primavera de 2002», antecipava Teresa Lago, a dois anos de distância. «A Casa da Música estará pronta em Maio de 2003», garantiu Rui Amaral, em Julho do ano anterior, na conferência de imprensa dada ao assumir o cargo de presidente do CA (e já depois de dissolvida a Sociedade Porto 2001). «A Casa da Música estará pronta até à Primavera de 2004», prometeu o actual presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Rio, na primeira visita à obra, quatro meses depois de ter vencido as eleições. Mas a cada nova Primavera as promessas acabariam invariavelmente abortadas.
O impulsionador do projecto, o pianista Pedro Burmester, achará hoje uma explicação: «Por ingenuidade minha, não tinha percebido que em Portugal é sempre assim. Só há a excepção da Expo'98, porque tinha de abrir mesmo naquele ano, mas provavelmente isso fê-la custar muito mais. E os estádios do Euro, porque tinha mesmo de ser.»
Em 1998, quando o projecto foi idealizado pelo ministro da Cultura do Governo socialista, Manuel Maria Carrilho, o sonho parecia mais poderoso do que a realidade. Ninguém ousava espicaçar a profissão de fé que recusava admitir qualquer margem de erro para aquele que se pretendia o ex-líbris da cidade e do País. «A Casa da Música assinalará o arranque da Capital Europeia da Cultura no Porto», prometia em Setembro desse ano, ainda confiante, Santos Silva, o banqueiro que haveria de demitir-se pouco depois por divergências com Carrilho. «Vai criar uma autêntica revolução musical», reforçava Burmester, o responsável pela escolha de Rem Koolhaas (que agora redesenha o edifício do County Museum of Art, em Los Angeles, anunciado para 2006).
A Casa da Música seria a cereja etérea no topo do bolo personificado por um ano de excepção cultural. «O projecto irá marcar a excelência e a originalidade da cultura que se faz no Porto, colocando-a no mapa europeu e criando redes que permitirão a sua afirmação international», aspirava Carrilho.
O limite seria o céu?
«O projecto não será uma odisseia no espaço, mas sim uma odisseia no tempo», acreditava o ministro da Cultura, porventura demasiado longe de imaginar a ironia de que se revestiria a afirmação, que fazia trocadilho com o título do célebre filme de Stanley Kubrick dedicadoà exploração espacial. Recusando-se hoje a tecer comentários - «por princípio», «por elegancia», e porque, admite, «não me compete» -, o actual deputado do PS limita-se, numa única declaração, breve mas límpida, a reconhecer: «O projecto está a ser desorientado e tem vindo a ser desvirtuado.»s notícias com as falhas da Casa da Música enchiam páginas de jornais.
Mas não se suspeitava que os maiores solavancos da viagem ainda estavam para chegar. E que todos os percalços do País se repercutiriam, em versão ampliada, naquele projecto. «Houve uma enorme tentativa de politização», revela Teresa Lago. «Eu própria tive de resistir, por isso não me custa a crer que tenha havido uma utilização política.»
Mas que projecto é este, e porque se constipa cada vez que há um espirro no Governo?
Atravessada por dois governos e quatro ministros da Cultura, a convulsão da Casa da Música reflectia o tremor do País. Em Janeiro de 2001, o escudo daria lugar ao euro. Em Dezembro desse ano, o Governo socialista caía a meio da legislatura, emergindo o social-democrata José Manuel Durão Barroso na liderança do País. E somavam-se os ministros da Cultura: a incompatibilidade de Carrilho com o primeiro-ministro António Guterres já o havia levado a pedir a demissão, deixando vaga a cadeira para José Sasportes, que, em momento de remodelação, fora substituído por Augusto Santos Silva. Agora, com a coligação PSD-CDS/PR a tutela passava a ser ocupada pelo social-democrata Pedro Roseta, claramente o ministro mais apagado da equipa de Durão Barroso. E hoje, apesar de Roseta ter sobrevivido a uma muito falada mas nunca executada remodelação, aguarda-se que a actual crise política nacional traga o próximo detentor da pasta.
No encalço da retrospectiva, Burmester aceita avaliar, em síntese, os quatro ministros da Cultura: «Com Carrilho avançou-se. E de que maneira! Com José Sasportes andou-se a patinar. Com Augusto Santos Silva avançou-se. E só não se avançou mais porque o PS caiu. Ele seria o ministro capaz de levar o projecto até ao fim. Com Pedro Roseta é o disparate total. É inconcebível a forma como este ministro lida com a história da Casa da Música.»
Na autarquia portuense, o número de substituições aproxima-se. Depois de dez anos à frente da cidade, Fernando Gomes desvia-se, movido pela ilusão de vingar como ministro de Segurança Interna. O lugar ficaria livre para o correligionário Nuno Cardoso, até então o seu braço-direito. Mas seria Rui Rio, vencedor inesperado nas eleições autárquicas de 2001, o mais problemático autarca para a Casa da Música. Exigiu demissões; impôs protagonistas. Nas administrações, o caso repete-se. Teresa Lago cedo avisou que não pretendia continuar".
O economista Rui Amaral é nomeado administrador pelo mesmo Governo que, um ano depois de o escolher, lhe extrai o poder, transferindo-o para Alves Monteiro, ex-presidente da Bolsa. Na vereação portuenses da Cultura, a pertinácia de Manuela Melo dá lugar à inércia de Marcelo Mendes Pinto. Seis anos depois do início de um dos maiores e mais controversos projectos nacionais da última década, derreteram-se as convicções; ficaram as esperanças, alimentadas a custo. De ver a obra concluída, de não ver o projecto desvirtuado. De não estar a criar um elefante branco. E se for, desdramatizou Rui Amaral, «será apenas mais um. O País já tem muitos».Se correr tudo bem, anuncia agora Alves Monteiro, a Casa da Música deverá ficar concluída a 30 de Novembro deste ano, com abertura provável no fim do primeiro trimestre de 2005. Da equipa inicial, pouco sobrou para amostra. Nem tão-pouco Burmester. Mas tudo pode acontecer ainda.
O que falta hoje à Casa da Música, a cinco meses da conclusão da obra, é exactamente o mesmo que faltava há cinco anos: modelo de gestão, figurino de financiamento, definição do programa artístico e formato de inclusão da Orquestra Nacional do Porto (ONP). Nos cinco meses de arranque, em 1998, Burmester transformou uma utopia em realidade: «Foi anddo muito rápido. Decidimos a localização, na Boavista, e que o edifício deveria ser marcante, não se aproveitando nada do que já havia na cidade; que deveria ser desenhado por um arquitecto estrangeiro. São questões que não são propriamente pacíficas. Houve ainda a preocupação de usar a obra para fazer requalificação urbana numa zona que já havia sido o segundo centro da cidade. Desde o início ficou decidido que seria urna casa para todas as músicas, devendo albergar a ONP, não só como inquilino, mas fazendo parte do projecto. Os equipamentos residentes - Remix Ensemble, Remix Orquestra, Estúdio de Ópera, Serviço Educativo - surgiram logo nessa altura.»´
Desde então, filtrando os acontecimentos pontuais e artisticamente notáveis de cada um dos agrupamentos - as óperas Wozzeck, com o bairro de Aldoar, e Brundibar, com alunos de escolas do Porto, em 2001, o Festival Obra Aberta em 2002 e os concertos do Remix, imensos mas para minorias -, o País tem assistido a um espesso vazio relativamente a deliberações administrativas.
O modelo de gestão deveria ter sido aferido ontem, num seminário que Alves Monteiro havia agendado para o Porto com responsáveis máximos de outros equipamentos culturais idênticos à Casa da Música, deputados e vereadores de Cultura. «Será meio dia de reflexão: temos de ser sintéticos, concisos, eficientes.» Mas novamente o contexto político provoca a imobilidade e compromete decisões. Com a ida de Durão Barroso para Bruxelas, também essa decisão continua adiada.«O que conheço da programação é o que foi anunciado por Pedro Burmester, na altura em que ainda lá estava», observa Manuela Melo.
«Anthony Withworth-Jones [novo director artístico nomeado em Fevereiro de 2004] já está cá há tempo suficiente para dar a cara, mas ainda não o fez. Quanto ao resto, vejo muitos estudos mas nenhuma decisão.»
A mudança de Governo terá implicado um revés num projecto apadrinhado pelo PS?
«Definitivamente», garante agora Teresa Lago. «Tivemos dificuldade em encontrar um interlocutor atento e interessado. No início tentei não fazer um juízo, porque contactei com eles apenas três meses (de Março a Junho 2002). Dei-lhes o benefício da fase de adaptação. Mas hoje, como cidadã, apercebo-me de que a atitude não mudou.» Fernando Gomes, o autarca que presenciou o arranque do projecto, intervém: «Não é uma questão política. É uma questão de sensibilidade. Com este Governo temos andado para trás.»Há duas concepções muito distintas de ver o País, analisa hoje Nuno Cardoso, com quem Teresa Lago teve sérias divergências pessoais quando ele sucedeu a Gomes na presidência da autarquia. «A Casa da Música sofreu com esta ruptura entre um partido - o PS - que entende que o investimento é catalisador do desenvolvimento do País e outro - o PSD - que não.»
Para Burmester, a responsabilidade do contexto político complicado que se impôs à Casa da Música será das duas forças políticas: «O PS não salvaguardou a situação de isolar a Casa da Música do contexto da Porto 2001. Mantê-la lá só serviu para complicar. Tal como não tratou da integração da ONP. Ainda hoje é uma incógnita, e vai ser um sarilho. Pedro Roseta diz que ela será independente. Alves Monteiro diz que será indexada. O entendimento é excelente», ironiza. Por outro lado, acrescenta o pianista, «o PSD geriu tudo pessimamente». E especifica: «Vê-se logo pelas pessoas que escolheram para as duas administrações que são de uma total ignorância em relação ao projecto. A primeira [liderada por Amaral, em 2002] foi desastrosa. Eram pessoas completamente incompetentes para o cargo, lá colocadas sobretudo pelo presidente da Câmara, Rui Rio. A actual administração [presidida por Alves Monteiro, desde 2003] não tomou durante um ano inteiro qualquer decisão sobre nada. Portanto, está pior ainda.»
Burmester não tem dúvidas quanto à gravidade da situação vigente: «Tudo é feito com o disfarce de que são bons gestores, o que é uma hipocrisia, porque não são. Basta comparar a competência de quem está à frente de uma estrutura como a Fundação de Serralves com a de quem lidera hoje a Casa da Música. Nunca se chegará aos calcanhares de Serralves com estes senhores.»
Na hora da despedida, em Julho de 2002, Teresa Lago não tinha «expectativas especial» em relação à administração da nova sociedade Casa da Música/Porto 2001 SA: «A missão da nova sociedade tem características perfeitamente definidas. Negociámos tudo com os construtores.»
A 27 de Junho de 2002 é anunciado o primeiro CA para a estrutura. Economista e gestor de empresas no sector dos transportes e logística, o social-democrata Rui Amaral, ex-secretário de Estado em sucessivos governos e deputado na AR e no Parlamento Europeu, é nomeado por Roseta para a presidência da administração da Casa da Música. Burmester e Hélder Sampaio, um engenheiro, completam a equipa. Teresa Lago elogia imediatamente a permanência do pianista: «Ele é essencial. É a alma do projecto. E um bom sinal que tenha ficado.» Mas a sua continuidade não bastou.
Inicia-se então o mais dramático período do projecto desde o seu nascimento. Amaral, munido de múltiplas discordâncias, dispara em todas as direcções: «Temos a obrigação de concluir a herança que recebemos do Porto 2001 - que, infelizmente, é quase tudo», acusou. «Se tivesse sido ouvido», o economista não teria escolhido aquele sítio, e lamenta que a obra não tenha sido dada a Siza Vieira ou a Eduardo Souto Moura, mas reconhece que gosta «cada vez mais» das maquetas de Koolhaas, cujos honorários globais rondam os 7,9 milhões de euros. A sua preocupação, no entanto, é o espaço físico que espera habitar até à reforma: «Tenho 59 anos, acho que estou na altura de trabalhai" mais meia dúzia de anos e pôr a Casa da Música em velocidade de cruzeiro. Só aí me poderei retirar", dando lugar a uma pessoa mais jovem, que imprima outro ritmo à Casa.» Acabaria demitido alguns anos antes do que planeara. Amaral desafia todas as definições preconcebidas: espaço, programação, público, modelo de gestão, orçamento, tudo. «O espaço reservado para camarins é capaz de ser excessivo e a área administrativa talvez seja pequena», adianta logo numa das primeiras entrevistas, em Abril de 2003. A situação financeira começava a plissar. «Temos um montante em dívida que ronda os 50 milhões de euros», informa. «Não é dramático, porque já temos pré--negociada com a banca privada uma solução que passa pelo diferimento temporal, por vários anos, desses investimentos.» Optimista, chega a prometer: «Desde que estamos à frente desta administração, vai pagar-se menos até ao final da obra do que aquilo que estava inicialmente previsto.» E, apesar de o cenário não ser o melhor, garantia: «Não houve qualquer derrapagem nos custos de construção.» O modelo de gestão, que até então tendia para a Fundação (à semelhança de Serralves), assume outro rumo, a sociedade anónima, «porque é a situação mais flexível que a lei portuguesa permite - e deve poder vir a ter capitais privados».
Nos bastidores, ainda longe do faro da comunicação social, emergiam as primeiras dúvidas. A desejada comparação com Serralves parecia ficar cada vez mais distante. A concepção de Burmester, pensada ao pormenor durante quatro anos, ganha contornos de miragem. A integração da ONP assumia também um novo carácter. Amaral tinha ideias claras: «Isto não vai ser a casa da ONP. E se alguém na Orquestra pensa o contrário, está muito enganado. Vão ter aqui um sítio para ensaiar, como vai ter o Remix ou o Estúdio de Ópera, em igualdade de circunstâncias.»
De resto, Amaral nunca viu em Burmester o mentor do projecto, quanto mais a alma. «A única pessoa que sempre esteve íntima e indiscutivelmente ligada ao projecto é o arquitecto. Pedro Burmester tem os méritos que também não retiraria ao meu outro colega de administração, Hélder Sampaio. O contributo dele não tem sido em nada inferior ao de Burmester.» O administrador esquece que o próprio Koolhaas era escolha de Burmester. E que o projecto sobre o qual estava a opinar havia sido, igualmente, pensado pelo pianista. Por isso, os jornalistas, insistiam na pergunta: Burmester poderá vir a ser o seu director artístico da Casa da Música? «Sendo ele administrador, não estará nas suas expectativas descer para a direcção executiva», presumia o presidente. E sobre o conteúdo não apresentava qualquer dúvida: «Aquela Casa não é para todos os tipos de música . Veria com grande dificuldade actuar no grande auditório um conjunto do maior prestígio à escala mundial como os Metallica. O programa vai ter filarmónicas e folclore de boa qualidade.»Amaral, que chegara a assegurar a conclusão da obra para este Verão, sonhando inclusive com a possibilidade de ali fazer, em colaboração com a UEFA, a gala de abertura do Euro 2004, acalmou o ritmo exaltado três meses depois da sua tomada de posse. Em Agosto de 2002, mais brando, reconhecia: «A obra é controversa, difícil, complexa e polémica.»
Curiosamente, tudo parece ter feito para acentuar o teor daqueles adjectivos. Para rentabilizar a Casa da Música, sugeriu a produção de congressos: «Os auditórios não são obrigatoriamente para espectáculos musicais, apesar destes terem prioridade.» E sublinhou: «Teremos ainda restaurantes, lojas, parque de estacionamento e outras actividades complementares.» E resume o achado: «A Casa da Música é um centro comercial da música.»
Inquieto com. o curso do projecto, Burmester abre, a 18 de Junho de 2003, uma ferida, insanável, que acaba por custar-lhe o lugar de administrador. E não só, como mais tarde se vem a verificar". Em entrevista ao JN, o pianista solta o desabafo: «Estranhamente ainda não é conhecido o modelo de gestão para a Casa da Música. O Ministério da Cultura deve ter muitos assuntos para resolver, e a cultura não deve ser uma prioridade.» Indiferente às consequências do peso das suas próprias palavras, ou, pelo contrário, testando o seu limite, descarrega um chorrilho de queixas: «A Câmara do Porto tem uma percentagem muito pequena (13%) e, segundo diz, poucos meios financeiros para investir aqui. Como tal, não terá uma palavra multo importante a dizer. Está mais preocupada com questões que reduzem o Porto a urna aldeia.» Desautorizando Amaral, ao refazer afirmações que este produzira sobre a programação, Burmester ironiza: «Ele não é do meio musical. É natural que faça afirmações confusas para as pessoas.»
Tudo parecia fugir das mãos do pianista, menos a crença absoluta no projecto a que estará sempre ligado como impulsionador, independentemente de quem o esteja a conduzir ou venha a conduzir: «A Casa da Música não vai salvar o mundo. Mas pode, juntamente com outras políticas, contribuir para isso.» E sublinhou: «Acredito tanto neste projecto e revejo-me tanto nele que, enquanto assim for, continuarei com o piano em banho-maria. Se o projecto for descaracterizado, aí sim, saio.» Rio, que Burmester considerava «muito lúcido e rigoroso na avaliação e compreensão das coisas», seria o primeiro a reagir.
O presidente da Câmara do Porto exigiu que o pianista abandonasse o cargo de administrador logo após ter rido conhecimento das declarações proferidas na entrevista. «Deve demitir-se já!», impôs de forma inapelável. «Quem critica permanentemente os accionistas, nomeadamente o Governo, a Câmara Municipal e, agora, o próprio presidente do conselho de administração do qual faz parte, e insiste em não se demitir, é porque não tem uma atitude séria.» E retoma: «Burmester é um bom exemplo da falta de seriedade na vida pública. Já se devia ter demitido.»
Também José Amaral Lopes, secretário de Estado da Cultura, sai em defesa do presidente do CA, desvalorizando o atraso na escolha do modelo de gestão: «Não entendo como durante tantos anos de prazos incumpridos, numa obra que deveria ter terminado em 2001, ninguém se preocupou. E agora, quando pela primeira vez é expectável que tudo se cumpra, estoura uma discussão em torno do modelo de gestão.»
A discussão seria mais densa e não circunscrita à figura que haveria de gerir a Casa da Música. O vulcão entrara em erupção, e nos dias seguintes as explosões suceder-se-iam. Mais nefastas.
Burmester ainda não tinha dito tudo o que sabia. Quase um ano depois de ter tomado posse, descobre-se que Amaral concretizara a sua principal preocupação. Encomendou uma alteração ao projecto de Koolhaas, passando por aumentar significativamente a área administrativa, com sacrifício de todos os camarins para solistas e ainda de salas de ensaio e estúdios de cibermúsica.
A notícia é avançada pelo Público. Ellen van Loon, directora do projecto na OMA, o gabinete de Koolhaas, confirma-a e revela a intenção de escrever uma carta ao CA a explicar as consequências das alterações propostas, que incluíam a construção de um elevador para uso exclusivo da administração. «Talvez não goste de andar a pé, e pediu um elevador adicional», acrescentou. Confrontado com a inesperada revelação, Amaral negou. Negou sempre. «É absolutamente falso», garantiu ao mesmo diário. Não encomendou, não pediu, nunca ouviu falar.«Ficámos muito surpreendidos quando falámos com Pedro Burmester e percebemos que ele não fora informado deste pedido», disse ainda a colaboradora do arquitecto holandês. No encontro de alterações com o gabinete de Jorge Carvalho, contratado por Koolhaas para acompanhar a obra, participara apenas Hélder Sampaio. Burmester disse que teve conhecimento da proposta, mas que não a aprovou. Tanto mais que nem sequer foi levada a CA O Ministério da Cultura, principal accionista, faz saber que não fora informado. Van Loon ainda tenta explicar que «a existência de camarins para solistas é um requerimento básico num equipamento deste tipo» e que, a ser sacrificado, não restariam localizações alternativas. Além disso, a concretização do pedido teria custos elevados, já que não constava do contrato. Sem margem de manobra, Amaral vê-se obrigado a confirmar a história. Parcialmente, pelo menos: «Como a alteração implicaria um atraso de seis meses, desisti da ideia.» Mas, volta a assegurar, «nunca falei de um elevador».
A ferida entre Burmester e o presidente do CA estava aberta, e já nada a poderia fazer cicatrizar. Rio está inconformado: «Era incapaz de fazer aquilo que Pedro Burmester tem feito. Foi nomeado pelo Ministério da Cultura e pela Câmara Municipal e está sempre a discordar das posições deles. Não pode pertencer a um projecto e estar sempre em desacordo porque não é sério. Não tem regras morais.»
O lugar do pianista fica preso por um fio. Num clima que a imprensa define como «paz podre», Jorge Sampaio sai em defesa de Burmester. «Espero que possa continuar ligado ao projecto, que é importantíssimo para o País», afirmou o Presidente da República em noite de São João, no Porto. «Pela validade e pertinência de Pedro Burmester, perder-se-ia menos com a saída de Rui Amaral», afirma Paulo Cunha e Silva, hoje director do Instituto das Artes.
«Estamos perante um caso de delito de opinião - se Burmester saísse agora, as consequências seriam negativas para o projecto e para o País», nota Francisco Assis, líder distrital do PS Porto.
Carrilho assume-se em estado de choque: «Estamos a assistir a uma vandalização da política cultural. Tivemos uma ambição europeia que está a ser estropiada por pessoas como Rui Rio e Rui Amaral, que têm um comportamento típico de quem despreza a cultura, não compreende a importância de um investimento destes e, por isso, lança sobre ele o pesadelo.»
O movimento de solidariedade parece ultrapassar a fronteira. Confrontado com um eventual afastamento de Burmester, Antoine Gindt, responsável pelo Festival Théâtre & Musique de Paris, ameaça retirar a Casa da Música do Réseau Varèse, uma rede europeia vocacionada para a criação e difusão da música contemporânea. «A associação funciona na base da confiança pessoal em quem dirige os projectos», diz. O futuro de Burmester e da Casa da Música estava agora nas mãos do Ministério da Cultura.
A tempestade arrastaria inocentes. Na primeira entrevista concedida depois de estalar a crise, Marcelo Mendes Pinto demarca-se da posição da autarquia, elogiando Pedro Burmester. «E uma figura incontornável na cultura portuense», diz o vereador. «O Porto lucra e lucrará com ele a pensar o futuro da Casa da Música.» As declarações deixariam o PSD Porto à beira de um ataque de nervos. A concelhia do partido, presidida por Sérgio Vieira, marca uma reunião de urgência para debater o seu teor e impacte, e há quem defenda a necessidade de lhe retirar a Mendes Pinto o pelouro da Cultura.Militante do PP, o vereador partilhava a preocupação do pianista: «É evidente que, com a obra a caminhar para a sua recta final, quanto mais depressa for conhecido o modelo de gestão, melhor.» Mas defende o afastamento da autarquia: «A Câmara do Porto, até pelo elevado orçamento que envolve, não deve imiscuir-se na gestão da Casa da Música.» O PSD-Porto exige que ele se retracte, mas Mendes Pinto mantém-se na trincheira. E desvaloriza a reacção intempestiva do presidente da Câmara: «Rui Rio teve uma reacção própria de uma pessoa que ficou chocada com as declarações que ouviu.» Mendes Pinto terá resistido à batalha, mas não à guerra. E ninguém o retira da redoma de silêncio a que se entregou. Hoje escusa-se a comentar o passado: «Não tenho opinião a dar sobre a Casa da Música. Não passou por mim, seria despropositado falar.» Três dias depois de Burmester ter dito o que disse, é conhecida a sua primeira sentença. O CA, do qual ainda fazia parte, acusa-o em comunicado de «violar o princípio indispensável de solidariedade». A partir daqui ninguém estava seguro na Casa da Música. A hipótese de Amaral e Sampaio virem, também eles, a ser dispensados ganhava dimensão. «O assunto é muito importante e delicado; não tenho a solução no bolso», afirma Roseta, em visita ao Porto, num dos raríssimos momentos em que aceitou falar do tema.Mas o ministro está entre a espada e a parede. De um lado, Rio, vice-presidente do PSD, exige a demissão de Burmester; do outro, assiste a uma avalancha de pedidos, da área política e artística, para a permanência do pianista e programador.
Roseta, que Carrilho acusa de «não passar de um zombie», opta por uma conversa com Burmester. À saída, o pianista sente-se «aliviado»: «Respondi a todas as questões, que era o que eu queria há vários meses.» O veredicto oficial é conhecido em tempo recorde: o CA será integralmente dissolvido, informa o Ministério. Carrilho cumpre o seu dever oposicionista: «Rui Amaral provou não estar à altura da Casa da Música. Este projecto exige pessoas com sensibilidade e competência cultural. Não se trata de um gestor qualquer. Rui Amaral não entende sequer o dementar da gestão cultural. E alguém que por incompetência, ignorância ou capricho tem dito coisas aberrantes como querer um projecto, um arquitecto ou sítio diferentes.» Burmester, que diz passar agora o tempo «na bancada» a rir-se´«dos disparates que se fazem», não perde o sentido de humor: «Acho que o PSD ainda me vai agradecer por ter feito com que aquela administração saísse. Eram pessoas completamente incompetentes.»
Longe de perder a autoconfiança, Amaral, na sessão de despedida, afirma, peremptório: «Passado um ano sobre a concessão do mandato que nos fizeram, podemos dizer, com toda a propriedade, que cumprimos tudo o que nos foi pedido.» Desta vez, Rio recusa-se a tecer comentários: «Vocês, jornalistas, não gostam de boas notícias», alega.Reinicia-se a corrida ao poder na Casa da Música.
Burmester volta a ser seduzido para integrar a nova equipa, naquilo que representará o quarto voto de confiança desde 1998. Para a presidência do CA, fala-se no regresso de Artur Santos Silva. Mas a hipótese não chega a ser concretizada.
«As tricas políticas ficaram à porta quando eu entrei» - Alves Monteiro, formado em Direito, é o homem que se segue. O quarto. Nomeado em Junho de 2003, prometeu em teoria o que acabaria por dosear na prática: rigor e verticalidade. Burmester, mesmo sem o conhecer, e ainda sem saber se continuaria ligado ao projecto, acreditava nele: «E alguém com muitas qualidades.» Só isso, confessou, bastava para ter «outra tranquilidade». E sobretudo a segurança de que o projecto não iria «sofrer nenhuma adulteração» e de que haveria «continuidade na programação cultural». Manuela Melo tinha mais dúvidas. O facto de o Ministério ter anunciado o presidente do CA sem nomear os restantes elementos, ou sequer esclarecer a situação do pianista, não lhe agradou: «É uma não-decisão», indignou-se.
O primeiro teste à determinação de Alves Monteiro surgiria com a ainda hipotética nomeação de Agostinho Branquinho para completar a nova equipa. Rio volta a manifestar-se, insistindo com o Governo na nomeação do seu amigo de longa data e sócio de negócios. De resto, o próprio Alves Monteiro foi sugestão de Rio, que não tardou a enaltecer o seu «prestígio e currículo invejável».
Branquinho, responsável pela campanha eleitoral que levou o actual autarca portuense ao poder, admite logo ter perfil para o cargo. E desfia nos jornais o currículo que o justificaria: assessor cultural da Fundação Eng. António de Almeida, secretário-geral do centro UNESCO no Porto e administrador da Fundação da Juventude. Os jornais começam a dá-lo como certo. Mas Alves Monteiro sente necessidade de desmentir a notícia. Vezes sucessivas. Confessa estar a sofrer «ensaios de pressões» em torno da constituição da nova equipa de gestão. Acrescenta que essas pressões corporizavam «determinados interesses», com os quais não estaria disposto a pactuar. E alerta: «Temo que possa haver uma apropriação política da Casa da Música.»
Poucos meses depois surge a confirmação: Branquinho e Oscar Liberal (mais um engenheiro) seriam os novos membros do CA. Estaria cumprida a cláusula prioritária do Ministério da Cultura, que exigia sintonia entre os vários gestores para que a crise, entretanto sanada, não voltasse a repetir-se?
Nos bastidores especula-se que Branquinho terá sido a primeira cedência do presidente do CA O preço a pagar para poder continuar a ter o pianista associado ao projecto.
Seduzido como consultor para a programação cultural de Alves Monteiro, Burmester aceita. «Ingenuamente», reconhece hoje, já da «bancada». Mas não esquece a crónica que Branquinho lhe dedicou no JN, aquando da tempestade: «Pessoas com relevo público e grande penetração na comunicação social que fazem críticas aos poderes legitimamente eleitos que hierarquicamente lhe estão acima são necessariamente contrárias às regras de convivência na sociedade e até às normas da boa educação. Ninguém é obrigado a ocupar tais lugares, mas, uma vez neles empossados, há mínimos que têm de ser respeitados, para não valer tudo.» E o autor do texto também não rectificara a opinião.
Se houvesse caminhos que conduzissem ao passado, o pianista não hesitaria em refazê-los: «Daria tudo o que dei pela Casa da Música, mas faria algumas coisas diferentes, se soubesse o que sei hoje.» O convite foi desonesto? O pianista sorri. Cala. E conclui. «Por princípio, acredito nas pessoas. Espero continuar a fazê-lo.»
Sem ignorar as dificuldades do caminho, Alves Monteiro parecia ter devolvido a «serenidade» que tanto desejava ao projecto. Anuncia a conclusão da obra para o fim de 2004 e recupera a fundação comomodelo privilegiado para gerir a Casa da Musica. «Sou fundamentalmente um gestor. Estou aqui para levar o projecto a bom porto. Se o modelo de fundação não for o escolhido, os meus princípios não são violentados», ressalvou sempre. Reconhece o «descalabro financeiro e temporal»-vê-se obrigado a contrair novo empréstimo no valor de 85 milhões de euros -, mas promete, seguro: «Não haverá mais derrapagens até ao final da obra.»
Antes disso, lamenta o «permanente branqueamento de penalizações ao arquitecto e aos empreiteiros», que considera responsáveis por uma fatia substancial dos atrasos. Decide ainda que o modelo de funcionamento oscilará entre a Gulbenkian, da qual pretende importar a ligação estreita aos agrupamentos da casa e a aposta na formação de músicos, e o inglês The Sage, do qual tenciona reproduzir a ideia de uma programação ecléctica. «Não queríamos um modelo que fizesse sentido agora mas perdesse a actualidade daqui a cinco anos», justifica.Por definir, continuava a integração da ONP.
E Burmester voltava a alertar para a necessidade de tomar decisões: «Quanto mais tarde se resolver o problema da orquestra, pior será de resolver.» Mas a convivência entre Alves Monteiro e o pianista não dava sinais de preocupação. «Penso que pode e deve estar ligado à Casa dá Música», reconhecia o presidente sobre Burmester ao fim dos primeiros meses. «Conhece o projecto desde a sua origem e tem trabalhado comigo de forma muito gratificante.»
No fim de 2003, o pianista deixa um recado aparentemente inofensivo: «O lugar de director artístico é o único que estou disponível para aceitar no futuro.» No circuito político, a declaração terá tido outro impacte. Dois meses depois, em Fevereiro de 2004, a administração da Casa da Música faz o anúncio, imprevisto e surpreendente: «O director artístico será o inglês Anthony Withworth-Jones.»
O nome não podia ser mais desconhecido. Mas ninguém parecia estar interessado em familiarizar o público com a carreira do britânico, que alegadamente teria justificado a sua eleição para o cargo. Alves Monteiro remeteu-se ao silêncio. O Ministério da Cultura lavou as mãos do assunto: «A escolha é da competência da instituição.» E de Burmester, que além de não ter sido consultado foi informado da nomeação por carta, e ao mesmo tempo que a imprensa, poucas palavras se ouviram desde então.
Na missiva, Alves Monteiro endereçava-lhe ainda um convite. Mais ambíguo do que o primeiro. O presidente do CA pedia-lhe para desempenhar funções de consultor para a programação numa relação directa com Withworth-Jones. «Não, obviamente», foi a resposta, completando a que, de forma indirecta, já dera por antecipação em Dezembro.
O pianista sai «magoado», e em silêncio.
Era o temido fim de um enlace de cinco anos e meio. Burmester divorciava-se, de forma irreversível, do projecto de cujo programa foi o principal responsável. «Não se devem fazer convites que as pessoas não podem aceitar - não são convites, são presentes envenenados, cascas de banana», diz Augusto Santos Silva, para quem este afastamento fica associado a «uma das mais desastrosas decisões políticas deste Governo». «Ninguém é insubstituível, mas a saída de Pedro Burmester desencadeou uma desestruturação de equipas que com ele trabalhavam. Essa é, ainda hoje, a principal ameaça ao bom funcionamento da Casa da Música.»
Opinião diferente tem Sasportes: «O projecto não tem dono. A passagem de testemunho é natural.» Abraçando o optimismo, o actual comissário da UNESCO defende «que um projecto como o Casa da Música está condenado ao sucesso - é preciso fazer muitas asneiras para que assim não seja». Os três partidos da oposição - PS, PCP, BE -, exaltados, ainda chegam a solicitar a presença de Roseta no Parlamento para explicar a escolha. Mas a maioria chumbaria o requerimento. Por duas vezes.
Sem Burmester, o promissor programa começa a dissolver-se.
A 24 de Março, Fausto Neves, pianista e responsável pelo Serviço Educativo da Casa da Música desde 1999, apresenta a demissão: «Fi-lo pelo projecto em si, que não consigo dissociar do Pedro», explica ao JN. «A saída dele, além de imprevisível, deve-se a um mau gosto e metodologia que roça a boçalidade.» Suzana Ralha, a face mais visível de um longo projecto desenvolvido com os bairros de Aldoar e Fonte de Moura, já o havia feito. Antónia Castro também. E Ana Morais, que a substituíra, não viu o contrato ser-lhe renovado. O departamento, pautado por uma forte componente formativa e denominado como coração da Casa da Musica, estava absolutamente vazio.
Alves Monteiro desvaloriza as demissões, mas reconhece: «A saída de Fausto Neves foi um incidente de percurso», que seria, «rapidamente colmatado». O serviço continua tão vazio como antes. «Ele estava há vários anos no Serviço Educativo pela mão de Pedro Burmester, entendeu que devia sair por solidariedade, e eu respeito. Se não o tivesse feito, eu não o dispensaria, mas exigir-lhe-ia uma contribuição que não se compadece com o part-time em que trabalhava.» Neves, que este ano aceitou o convite para leccionar 12 horas por semana na Universidade de Aveiro, reagiu: «Nunca me criticaram em qualidade, quanto mais em quantidade. E eu nunca exigi da Casa da Música horas extraordinárias. Fizemos trabalhos de produção quase impossíveis, graças ao nosso voluntariado.»Alves Monteiro insiste: «O projecto permanecerá imbeliscável. Doa a quem doer.»
Lentamente, o currículo de Withworth-Jones, que até hoje proferiu publicamente uma única frase - «Vou introduzir a minha visão pessoal /sobre a direcção artística» -, vai sendo revelado. Sempre pêlos jornais.Descobre-se que privilegia a vertente operática. Esteve dez anos à frente da Ópera de Glyndebourne, no Sul de Inglaterra, onde terá deixado um relevante legado artístico. E daí saltou para os EUA, tendo sido nomeado director da Dálias Opera, de onde acabou por sair dois anos depois. Desiludido e com uma indemnização.
Com o mesmo vagar, Alves Monteiro ia sugerindo a sua desilusão com Burmester: «Quando cá cheguei, a 11 meses da abertura desta casa, nunca vi nenhum documento com a programação. E solicitei-o muitas vezes.» Curiosamente, quando apresenta à comunicação social uma grelha de programação, que prevê 340 eventos em ano cruzeiro, subdividida em eventos semanais, mensais e blocos temáticos, verifica-se que corresponde quase na totalidade à delineada por Burmester enquanto consultor. «O documento fala por si», limitou-se a responder o pianista. Alves Monteiro desvalorizou: «Este plano é, apenas, o resultado de uma "folha" que ele me entregou. Cabe agora a Withworth-Jones elaborar a programação definitiva.»Ou talvez não. No mês passado, o CA publicou um anúncio a solicitar um director para as áreas da Pop e da World Music. «Não é um director», ressalva Alves Monteiro. «E um auxiliar.»
Renitente, Manuela Melo volta a ter dúvidas: «Gostava de conhecer primeiro qual é o organograma da instituição para saber onde se encaixam estes concursos públicos.» A preocupação de Augusto Santos Silva é diferente: «Não sou adversário dos concursos, são usados em instituições prestigiadas do todo o mundo. Preencher lugares por concurso público aberto não é errado. Mas é incongruente, depois de terem nomeado Withworth-Jones. Esse sim, não passou por nenhum concurso. Pelo que conheço do seu currículo, não é uma má escolha. O meu ponto não é esse, é o tribalismo político que designou Pedro Burmester como inimigo a abater.»
O presidente do CA esclarece: «Estamos a falar de coisas diferentes. As figuras deste tipo de organização são, geralmente, nomeadas. Depois, há outros profissionais que podem ser recrutados.» E houve ainda o tempo, que parece ter tido um papel crucial: «Temos mais tempo para decidir quem vai assumir funções nesta fase do que antes para escolher o director artístico.»
«Se Bilbao entrou no mapa só por causa do Museu Guggenheim, nós também podemos entrar graças à Casa da Música », acredita Nuno Cardoso. «Só daqui a muitos anos é que se irá ver. O impacte será incomensurável. O efeito deste evento é enorme.» Como uma fé que, no caso, não encontra muitos adeptos.
Burmester espera «que ele não vá por água abaixo». Mas confessa: «Temo que vá.»
Fernando Gomes também não está convencido: «Tenho sérios receios do futuro. Estão a fazer a gestão economicista de um espaço cultural e não a transformá-lo num pólo cultural europeu.»
Teresa Lago não é tão severa: «Se a Casa da Música surgir como um projecto de ambição, com um programa global, mantendo a ideia original, as tricas serão esquecidas. Se não se satisfizerem as expectativas, há que procurar os responsáveis.»
Augusto Santos Silva diz que «corremos o risco de ter um equipamento aberto em 2005 sem decisões claras de como financiar a actividade no prazo devido - na música, a programação faz-se a anos de distância».
Mas é de José Sasportes que vem o axioma definitivo: «Quando abrir, toda a gente vai querer ser o pai da obra.»
(Trabalho de Helena Teixeira da Silva, publicado na Grande Reportagem, em Junho de 2004)
|
Sem comentários:
Enviar um comentário