quarta-feira, agosto 19, 2015

Umberto Eco, Número zero


"Quando se vive a cultivar esperanças impossíveis, já se é um perdedor (…). Os perdedores, como os autodidactas, têm sempre conhecimentos mais vastos do que os vencedores: se queres vencer tens de saber uma coisa só e não perder tempo a sabê-las todas, o prazer da erudição está reservado aos perdedores. Quantas mais coisas uma pessoa sabe, mais as coisas não lhe correram como deveriam."

Umberto Eco, Número zero

[Se fosse professora de jornalismo, este livro seria obrigatório. Onde quase todos os livros e filmes e séries exibem o lado romântico da profissão, Umberto Eco expõe o lado cínico, sarcástico e pernicioso - da profissão e das suas relações com o poder, dos seus interesses e contingências. É uma facada. É sobre Itália, mas podia muito bem ser sobre Portugal.]


Coura é partilha


domingo, agosto 16, 2015

Lykke Li


A primeira vez que ouvi esta rapariga foi num filme de vampiros para adolescentes (sim, o Twilight), apesar de já não ser adolescente para aí há cinquenta anos. Na altura, passei não sei quantos dias seguidos a ouvi-la pedir: tell me when you hear my heart stop. Era uma espécie de guilty pleasure, um acesso insano de adolescência retardada. God, save me!

Dois anos depois, em 2011, Lykke Li esteve no Meco (sim, vou continuar a chamar-lhe Meco até que o devolvam à proveniência) e deu um concerto absolutamente inacreditável. Uma espécie de prestação em modo Alice Glass em versão moderada, salvo ainda assim o exagero. Foi aí que ficámos a saber que a sueca, de 29 anos, passou parte da infância em Portugal, com os pais. E foi aí que percebemos que os concertos dela não são para chorar, são para dançar.

Passaram quatro anos, cada canção um single, quase. Lykke Li já não é a rapariga dos vampiros embora esteja ainda mais gótica, mas nunca mais ninguém a trouxe. Até agora. Coura, 22 de agosto, próximo sábado, concerto único. Coura é partilha!

sábado, agosto 15, 2015

Absolut João Semedo*


Esta entrevista foi feita por escrito, por razões óbvias. O carismático ex-coordenador do Bloco de Esquerda, João Semedo, reformou-se agora por doença e, neste momento, não fala. Está optimista e cheio de vontade de reaprender a falar, mas o processo será longo.

A doença não o impede de continuar a participar na vida do partido. Nesta entrevista ao i defende claramente uma posição que até agora não tem sido assumida pelo Bloco de Esquerda: se for rejeitada a reestruturação da dívida, é preciso começar a preparar a saída de Portugal do euro.

Lamenta que Carvalho da Silva não seja candidato à Presidência e tem dúvidas sobre o pensamento de Sampaio da Nóvoa e a sua ligação ao PS. Sobre o Livre, é duríssimo: “Se é para defender o mesmo que o PS, basta o próprio PS”. Rejeita usar o termo “capitulação” no caso da Grécia e acredita que, apesar das condições do terceiro resgate, é melhor um governo grego liderado pelo Syriza.

Podemos começar por falar da sua doença, que o obrigou a reformar-se e a abandonar o cargo de deputado?
Sim, podemos falar e começar esta entrevista pela minha doença. Sou médico e isso permite olhar a doença com maior naturalidade. Fui sempre muito claro, nunca escondi, nem fiz mistério e muito menos tabu sobre o que me aconteceu. A minha privacidade tem outras fronteiras ou muralhas que não a doença. E até por isso, pela forma como assumi e abordei publicamente o que se estava a passar comigo, quero registar com agrado a forma como a comunicação social não transformou em notícia a minha doença. Acho que isso traduz maturidade informativa e mais elevação nos critérios editoriais. Aproveito para aplaudir e agradecer, claro.

Como é que descobriu que estava doente?
Conta-se em poucas palavras. Em 2013, a seguir às autárquicas, foi-me diagnosticado um cancro numa corda vocal. Comecei a tratar-me no IPO, com um médico e uma equipa fantásticos, num servico (ORL) que é o retrato da excelência do SNS, apesar de tão maltratado por este e outros governos. Nessa altura fizeram o que se faz nestas circunstâncias: uma primeira cirurgia e radioterapia. A probabilidade de cura era esmagadora, 96%. Estive bem durante 2014, mas depois da convenção do Bloco, entre o Natal e o fim do ano, apercebi-me que estava do lado errado da estatística e que o tumor tinha reaparecido, a situação agravou-se muito e rapidamente. Fui novamente operado, no início deste ano, uma cirurgia que procurou ainda conservar alguma voz própria. Infelizmente também não resultou e voltei a ser operado em Junho, agora uma cirurgia mais radical que me deixou sem cordas vocais, sem laringe e sem falar.

Isso levou-o a sair do parlamento...
Estas limitações são irreversíveis, definitivas. Não tive outra alternativa e fiz o que todos os portugueses na mesma situação fariam. Deixei a Assembleia, pedi a reforma por doença, incapacidade, ao fim de 42 anos e 3 meses de descontos. Como o tempo correu depressa, ainda me lembro quando fui ao hospital São José levantar o meu primeiro ordenado de interno policlínico dos então Hospitais Civis de Lisboa.

Como está agora?
Estou agora bastante bem, bastante melhor, muito optimista e cheio de vontade de reaprender a falar, processo que será longo, como acontece com uma criança, se excluirmos a componente cognitiva e simbólica da aprendizagem da fala. Essa, acho que me posso dispensar de reaprender... Mas daqui a uns meses, julgo que já poderei fazer-me ouvir. E, claro, confio que esta última cirurgia tenha finalmente arrumado com o tumor. Olho para o futuro com essa perspectiva e essa confiança.

Vai participar na campanha do Bloco?
Tenho participado. Colaborei na redacção e coordenação do programa eleitoral do Bloco, tenho participado nalgumas reuniões sobre assuntos eleitorais variados. Mas, claro, a minha situação actual traz grandes limitações. Uma campanha é sempre muito exigente do ponto de vista físico e é sobretudo comunicação. Mas lá estarei nos comícios, nas arruadas, de bandeira na mão. E sempre disponível para ajudar em questões mais políticas.

Lembra-se do primeiro dia como deputado? Como foi?
Lembro-me perfeitamente e é fácil de perceber porquê. Foi a 8 de Março, dia mundial da mulher, é difícil esquecer. Até porque passei parte do dia a arrumar a secretária que o João Teixeira Lopes tinha deixado desarrumada...E lembro-me do primeiro dia de plenário, o dia seguinte, 9 de Março de 2006. Foi a tomada de posse de Cavaco Silva como Presidente da República, marcada por um indisfarçável contraste entre o colorido da cerimónia e o cinzentismo do Presidente. Ao longo destes anos, muitas vezes me lembrei desse dia e, sobretudo, dos motivos à data invocados por Cavaco Silva para se candidatar: “Ajudar a superar o ambiente de descrença e pessimismo da sociedade portuguesa”. Aconteceu exatamente o contrário: os portugueses estão hoje muito mais descrentes e pessimistas, atestando o completo fracasso da presidência de Cavaco.

Quem foram os primeiros amigos que fez na Assembleia?
Quando entrei no Parlamento reencontrei alguns deputados que conhecia há bastante tempo, outros de quem era mesmo amigo, claro, mais no meu grupo parlamentar, no grupo do Bloco. Do passado, o Bernardino Soares, o José Honório, o António Filipe, o Agostinho Lopes, por exemplo. Da actividade profissional, a Maria de Belém, o Pizarro. Do Porto, o Paulo Rangel, o Assis, o Alberto Martins e outros. No Parlamento, o trabalho mais frequente e próximo nas comissões acaba por facilitar as relações pessoais, mesmo entre deputados de grupos parlamentares adversários. Podem não ser exatamente relações de amizade no sentido que habitualmente damos à palavra e que inclui alguma partilha de afectos, de intimidade – é qualquer coisa entre isso e o reconhecimento de certas qualidade, respeito, consideração. Isso aconteceu-me na comissão de saúde, por exemplo, com a Teresa Caeiro, a Maria Antónia Almeida Santos, a Maria José Nogueira Pinto, a Regina Bastos. Espero que ninguém se melindre por algum esquecimento meu, mas foram muitos anos. As comissões de inquérito, que têm muitíssimas horas de trabalho, facilitam muito esse tipo de relações. Conheci aí alguns deputados com que me fui entendendo melhor, apesar das discordâncias, o José Eduardo Martins, o Pacheco Pereira, o Afonso Candal, o próprio Mota Amaral.

Vai sentir a falta da actividade parlamentar?
É natural que sinta, eu gosto de intervir, de discutir, de controvérsia. Já tinha decidido não continuar como deputado, independentemente da doença que me afectou. O grupo parlamentar do Bloco precisa de renovação. Aliás, é isso que vai acontecer agora, metade do actual grupo parlamentar do Bloco não será deputado na próxima legislatura. Tudo tem um fim e espero que, no futuro, o que fizer politicamente me ajude a não ter saudades do Parlamento. Como se costuma dizer, há mais vida para além do Parlamento.

Conte-nos como chegou ao Bloco de Esquerda.
Foi através do Miguel, do Miguel Portas. Durante alguns anos tivemos percursos diferentes mas mantivemos sempre uma grande proximidade pessoal e política. Através dele acompanhei a formação do Bloco e os seus primeiros anos. Até que, no final de 2003 ou já em 2004, ele procurou-me no hospital para saber se eu aceitaria ser candidato na lista encabeçada por ele ao Parlamento Europeu. E eu aceitei. Em 2005, ele e o Francisco [Louçã] falaram comigo para ser candidato nas legislativas e, no ano seguinte, como já disse, fui para o Parlamento, substituindo o meu amigo João Teixeira Lopes. O resto da história é conhecida, é pública.

Como é que se sente o ex-coordenador do Bloco de Esquerda ao ver a capitulação do seu partido-irmão, o Syriza, que aprovou um resgate duríssimo como o faria qualquer partido liberal ou social-democrata? Para que é que serviu ter votado Syriza na Grécia?
Capitulação é um excesso de linguagem. Este processo está longe de estar terminado e, como o próprio Syriza diz, o resgate não vai resolver qualquer problema, a não ser o dos bancos, quer gregos quer europeus. Vamos ver quais serão os contornos finais do resgate em discussão e até se vai haver acordo. Parece que os alemães querem apertar e sufocar ainda mais o povo grego. Digamos que vamos ter várias voltas até vermos e sabermos o resultado final, um balanço final. Agora, tenho consciência que as posições do governo grego diminuem a possibilidade de uma solução mais favorável, fragilizam a barreira que é necessário levantar e opor à pressão da ortodoxia financeira que comanda a zona euro e atrasam a afirmação de uma alternativa à austeridade e aos resgates. E isso não é bom. Mas abriu uma intensa discussão por toda a Europa, tornou a reestruturação das dívidas soberanas cada vez mais irrecusável e contribuiu para o isolamento dos ortodoxos da austeridade. Quem votou Syriza viu pela primeira vez um governo a defender os interesses das vítimas da austeridade, a bater-se pela dignidade de um povo e pelo direito a escolher o seu próprio caminho. Numa situação muito difícil, uma relação de forças muitíssimo desigual, essa estratégia não se impôs, não venceu. Mas nada ficou como dantes. E isso não é pouco.

O que a lição grega nos ensina é que este euro não permite políticas alternativas à austeridade. Havia planos para a Grécia sair do euro. Seria melhor para a Grécia sair do euro?
No que respeita à Grécia, ponho-me mais na posição de tentar aprender com o que se passou e está a passar do que dar lições sobre o que seria melhor ou pior para os gregos. Ficar ou sair do euro? Os gregos que escolham. Aprendemos ou confirmámos várias coisas. Na zona euro, qualquer alternativa à austeridade é “fulminada”. E aprendemos mais. Não se pode negociar com os credores sem uma alternativa na mão e sem uma forte convicção e disposição para a executar. O “bluff” é arma de casino, não resulta em política. E ensina, também, que a esquerda não pode contar nem confiar na “ajuda” dos socialistas, trabalhistas ou sociais-democratas. As posições de Renzi, Hollande ou do socialista holandês que preside ao Eurogrupo só ajudaram a senhora Merkel a encostar os gregos à parede. Aliás, esse é um dos pontos negros da política de António Costa, mais solidário com os partidos da sua família europeia do que comprometido e empenhado na construção de uma alternativa à austeridade e disposto ao confronto com os credores. António Costa foge a esse confronto e não vejo como se possa mudar a situação actual sem enfrentar a senhora Merkel e companhia.

O Bloco de Esquerda já vai dizendo que com esta moeda única há uma política única. Isto não é já meio caminho andado para se começar a defender a saída do euro, como já faz o PCP?
Julgo que a posição do Bloco é bastante clara: Portugal não tem condições para pagar a dívida nas condições impostas pelos credores. O serviço da dívida é brutal, esmaga a capacidade do Estado investir nas suas funções sociais e na economia que faz crescer o emprego. O país, as famílias, a economia, não param de empobrecer. A dívida tem de ser reestruturada para nos libertarmos desses juros. Se os credores recusarem, um governo responsável tem de preparar o país para uma alternativa fora do euro. Portanto não é meio caminho, é mesmo o caminho que defendemos.

Existe uma divisão no BE sobre isto?
Não creio que haja qualquer divisão. A posição do Bloco tem evoluído a partir de contributos muito diversos e em função do desenvolvimento da própria política europeia e dos seus desgraçados resultados. Aliás, cada vez mais gente reconhece que, a continuar assim, a União Europeia não tem futuro. Esse debate vai ter de continuar e o Bloco não estará fora dele. Independentemente do projecto inicial e das intenções dos seus fundadores, a União Europeia hoje trata as políticas de esquerda como um corpo estranho que rapidamente é excluído. A esquerda não pode ignorar isto, pelo contrário, precisa de reflectir sobre isso e retirar dessa reflexão todas as consequências estratégicas. Muito do futuro passa por essa reflexão.

Depois do derrota da Grécia, o eleitorado não tenderá a olhar para o Bloco como um partido que jamais poderá implantar as suas políticas, como aconteceu com o Syriza?
Na transformação social e política nada é fácil. Nem aquilo a que a Ana chama derrota da Grécia é definitivo, como já disse. É preciso acumular forças para mudar a relação de forças a favor da mudança. É preciso combater e derrotar a direita e disputar a hegemonia política que os socialistas vão dispondo em certos sectores sociais. Não vejo outro caminho.Tudo o que se tem passado em torno da dívida grega, tudo o que o Syriza trouxe de novo à construção de uma alternativa – apesar da evolução registada até ao momento – criou melhores condições para aqueles que em Portugal e na Europa se batem contra a austeridade, contra as troikas. Estamos melhor hoje com o Syriza no governo do que antes. Com mais Syrizas, os portugueses percebem que seria mais fácil vencer a austeridade e os credores. Há objectivos difíceis mas não há impossíveis. Antes da vitória do sim, poucos acreditavam que a despenalização do aborto viesse a ser uma realidade. Mas foi. 

O BE não se pode tornar, depois do que aconteceu na Grécia, um voto inútil?
Penso exactamente o contrário. É fácil de perceber que os gregos estariam muito pior se não fossem governados pelo Syriza. A situação da Grécia não é da responsabilidade do Syriza mas sim de quem governou antes do Syriza. E, apesar de tudo, da chantagem, das pressões, das dificuldades, o governo do Syriza já tomou várias medidas de enorme alcance social, em favor dos mais atingidos, que outro governo jamais tomaria. O voto no Bloco é útil porque dá força aos que querem acabar com a austeridade, com o corte nos salários e nas pensões, que querem políticas de emprego e serviços públicos a funcionar, para reforçar a disputa com os credores e com as instituições internacionais, para lhes bater o pé em defesa de uma reestruturação da dívida que nos deixe iniciar uma política diferente da actual. Há duas grandes mudanças que podemos alcançar nas próximas eleições: correr com Passos Coelho e Portas e alargar o espaço eleitoral e a representação parlamentar à esquerda do PS. São, na minha opinião, os maiores factores para uma viragem à esquerda no futuro próximo em Portugal. Essa é a grande utilidade do voto no Bloco. E o Bloco saberá fazer bom uso dele na construção de uma alternativa de esquerda.

Foi coordenador do Bloco em conjunto com Catarina Martins. O que falhou na direcção bicéfala?
Não gosto de ser juíz em causa própria, mas é claro que fiz um balanço sobre a coordenação a dois com a Catarina. Mas já que pergunta, direi apenas duas coisas: primeiro, julgo que o modelo foi muito atacado porque era a forma mais directa e incisiva de atacar o Bloco. Isto é um clássico de qualquer manual de ciência política: a melhor forma de enfraquecer um partido é atacar a sua direcção, os seus principais dirigentes. E o Bloco, depois da perda eleitoral de 2011, ficou debaixo de fogo cerrado, os nossos adversários não perderam a oportunidade. A segunda coisa que direi é que, no balanço que faço – e partilhado por outros bloquistas – é que uma liderança a dois dificulta a comunicação política, é muito diferente do modelo a que as pessoas estão habituadas, a percepção das pessoas está muito rotinada noutra forma. Isso tornou mais difícil a afirmação daquela solução.

Há mais de uma dúzia de anos o Bloco prometeu contaminar o PS. E hoje como está esse PS? Nessa medida, o Bloco falhou?
E contaminou, mas não o suficiente. Basta ver quantas propostas o PS aprovou por iniciativa do Bloco, se quiser por pressão do Bloco.

O Bloco deve apoiar o candidato presidencial Sampaio da Nóvoa?
Depois das legislativas decidiremos. Mas parece-me mais provável que haja um candidato próprio do Bloco, militante ou independente, capaz de mobilizar os que se batem por políticas claras e coerentes de combate à austeridade, aos credores e à Europa dos mercados. Mas uma decisão depende de muitos factores que ainda não são totalmente conhecidos.

O que pensa de Sampaio da Nóvoa?
Como candidato? Acho que teve um arranque algo precipitado, isto é, sem ter estabelecido algumas definições políticas prévias que se traduziram depois nalguns equívocos, dos quais me parece ainda não se ter libertado completamente. Talvez o mais flagrante seja a sua relação com os partidos, muito especialmente com o PS, demasiado dependente. Também me parece pouco claro o discurso sobre a Europa e a forma como vê o exercício da Presidência.

Carvalho da Silva deveria ter avançado? Francisco Louçã seria um bom candidato para o Bloco de Esquerda?
Eu gostaria que Carvalho da Silva tivesse avançado mas não foi essa a sua decisão. Até hoje não vejo nenhum candidato ou pré-candidato que traga para as eleições presidenciais o património de luta e de ideias que Carvalho da Silva representa e defende. Isso empobrece a disputa política. Sobre o Francisco Louçã, recordo que já foi candidato e um óptimo candidato. Numa campanha muito difícil, obteve um resultado muito razoável. Não duvido que seria um bom candidato mas sei que isso não está nos seus planos nem do Bloco.

Acha possível o PS vencer as eleições? Que avaliação faz de António Costa? 
Sobre António Costa direi apenas que o programa eleitoral apresentado pelo PS é frustrante para quem entenda que o PS pode ter algum papel numa ruptura com as políticas do passado. É um programa que anuncia uma atitude frouxa e envergonhada com quem precisamos de ser mais consequentes e determinados: os mercados, os grupos financeiros, o patronato, a Comissão Europeia. Uma vitória do PS não mudará o que mais faz falta mudar. Mudar o que conta só com uma grande votação no Bloco, uma grande votação à esquerda do PS.

Dissidentes do Bloco fizeram novos partidos. O Livre vai dividir o eleitorado tradicional do Bloco?
Durante muito tempo anunciou-se uma “revolução” no mapa partidário e na sua expressão eleitoral, a partir da multiplicação de novos partidos que não paravam de se constituir. Julgo que esse anunciado terramoto não saiu das páginas dos jornais. Foi uma novidade que se esfumou muito depressa. É uma evidência a dificuldade de afirmação desses partidos que, na verdade, são mais organizações constituídas para concorrer a eleições do que partidos políticos. Um partido político tem de ter raízes mais sólidas na sociedade e tem de ter uma intervenção mais presente e global, um projecto mais sólido e articulado do que esses novos partidos apresentam. Julgo que também há um problema de credibilidade. Alguém imaginaria ser possível reunir no mesmo barco o Gil Garcia, a Joana Amaral Dias e o José Manuel Coelho? É afundanço pela certa. O Livre está refém do objetivo que definiu: entender-se com o PS para que o PS possa governar.Toda a sua proposta política se subordina a esse objetivo. E portanto vai deixando cair sucessivas posições em função do que o PS e António Costa vão dizendo, eliminando as zonas de conflito programático que possam comprometer o desejado acordo com o PS. Aliás é visível que isso está a criar dificuldades, atritos, divergências. Nas questões europeias, ou na resposta à evolução dos acontecimentos na Grécia, isso é particularmente evidente. António Costa recusa a disputa com os credores, não quer qualquer confronto com os chamados parceiros europeus e, ainda recentemente, para que não subsista qualquer dúvida, rejeitou a reestruturação da dívida como saída. Não se ouve uma palavra crítica ou de contestação por parte do Livre, do seu primeiro candidato, o Rui Tavares. É como se o PS não tivesse programa, é como se António Costa não dissesse ao que vem. Se é para defender o mesmo que o PS, basta o próprio PS.

*Entrevista de Ana Sá Lopes, publicada hoje no i

quarta-feira, agosto 12, 2015

Amy by Asif Kapadia



Pode um documentário medíocre, que falha em quase tudo, que explora até ao nojo da exaustão tudo aquilo que supostamente pretende denunciar, comover-nos dias seguidos, assim, em contínuo, e ameaçar não parar de nos martelar a cabeça? Pode. Pode mesmo. And now the final frame, love is a losing game.

terça-feira, agosto 11, 2015

Fernando Sobral: Don Draper não vem


Aquele momento em que uma pessoa sozinha mata um assunto, esse que andamos todos a mastigar há duas semanas, com o alto patrocínio do PS.

"É esta a primeira lição desta pré-campanha: já ninguém confia em ninguém. E simboliza a miséria franciscana da campanha eleitoral que se viverá em Setembro, com muito pó e frases empolgadas e poucas ideias."


segunda-feira, agosto 10, 2015

Tolstoi, Ivan, o tolo


A contracapa do livro mostra ao que vamos: 

"Pode um homem simples, tolo no sentido em que recusa as regras do mundo materialista, onde reina a guerra, a vanglória e a ganância, vencer o diabo e liderar daí em diante toda uma nação com base apenas no seu despojamento e força de carácter? Tolstoi questiona o materialismo, a ganância e a vaidade, e questiona-nos a todos nós enquanto sociedade, questiona as nossas opções de vida e abre caminho a uma realidade alternativa baseada noutros valores, talvez menos ilusórios."

É um conto para crianças. E, como quase todos os contos para crianças, deve ser lido por adultos. A literatura russa, obcecada pela justiça, está repleta de contos de fadas, de parábolas, alegorias, fábulas, de alertas sobre os princípios que aprendemos quando somos pequenos e, na maior parte das vezes, esquecemos quando crescemos. Ivan, protagonista costumeiro dos russos, e também de Tolstoi, é o personagem de uma história tão simples que só pode embaraçar-nos. A Civilização acaba de reeditá-la e vale mesmo a pena lê-la ou relê-la. 

"Mil anos transcorreram e Ivan ainda vive. Multidões acodem constantemente ao seu reino. Até mesmo os seus próprios irmãos, desde há muito, com ele foram morar. E a todos os que chegam e digam: "Deixai-me aqui ficar", ele manda responder: "Seja! Vivei! Temos de tudo." Há, todavia, nesse reino, uma lei, uma única lei - aos que trabalham com verdadeiro afã, dizem-lhes: "Sentai-vos à mesa"; mas aos outros, aos que queriam viver sem esforço, é-lhes dito: "Comei as sobras". 


Lev Tolstói: Ivan, O tolo


A contracapa do livro mostra ao que vamos: 

"Pode um homem simples, tolo no sentido em que recusa as regras do mundo materialista, onde reina a guerra, a vanglória e a ganância, vencer o diabo e liderar daí em diante toda uma nação com base apenas no seu despojamento e força de carácter? Tolstoi questiona o materialismo, a ganância e a vaidade, e questiona-nos a todos nós enquanto sociedade, questiona as nossas opções de vida a abre caminho a uma realidade alternativa baseada noutros valores, talvez menos ilusórios."

É um conto para crianças. E como todos os contos para crianças deve ser lido por adultos. A literatura russa, obcecada pela justiça, está repleta de contos de fadas, de parábolas, alegorias, fábulas, de alertas sobre os princípios que aprendemos quando somos pequenos e, na maior parte das vezes, esquecemos quando crescemos. Ivan, protagonista costumeiro dos russos, e também de Tolstoi, é o personagem de uma história tão simples que só pode embaraçar-nos. A Civilização acaba de reeditá-la e vale mesmo a pena lê-la ou relê-la. 

"Mil anos transcorreram e Ivan ainda vive. Multidões acodem constantemente ao seu reino. Até mesmo os seus próprios irmãos, desde há muito, com ele foram morar. E a todos os que chegam e digam: "Deixai-me aqui ficar", ele manda responder: "Seja! Vivei! Temos de tudo." Há, todavia, nesse reino, uma lei, uma única lei - aos que trabalham com verdadeiro afã, dizem-lhes: "Sentai-vos à mesa"; mas aos outros, aos que queriam viver sem esforço, é-lhes dito: "Comei as sobras". 

*Em russo, tolo diz-se durak. E durak significa "aquele que segue o sol".

sábado, agosto 01, 2015

David Grossman: Foi importante regressar à vida*


Um dos maiores escritores israelitas contemporâneos é também um ativista que condena a ocupação da Palestina. Perdeu um filho na segunda guerra do Líbano, e a sua escrita é hoje definida pelo sentimento de perda

David Grossman é descendente de judeus polacos por parte do pai, a mãe nasceu durante o Mandato da Palestina. Ele nasceu em Jerusalém em 1954, seis anos após a criação de Israel e nove anos depois do fim do Shoah, o Holocausto. Numa altura em que, como ele diz, ninguém falava no assunto, “porque era uma dor e uma humilhação e o ar em Israel estava cheio de promessa e esperança”. “O milagre de Israel.” Apesar dos problemas e das críticas que faz ao país, pensa que é um “milagre” o que Israel conseguiu durante estes anos. A luta pela paz deve-se a achar que nada está garantido e que Israel deve proteger esse milagre.

O pai deu-lhe o primeiro livro, do escritor Sholem Aleichem, que lhe devolveu a narrativa do passado judeu no shtetl da Europa. O pequeno David apaixonou-se por aquela narrativa da tradição como se fosse um livro de Harry Potter. “No princípio, pensava que toda a gente era judia, só mais tarde descobri os gentios.” E mais tarde soube dos pogroms, das expulsões e perseguições. E dos “seis milhões”, que parecia um número abstrato, incompreensível. “Os mortos eram o meu povo, a gente de ‘O Violinista no Telhado’, a gente dos livros de Sholem.” Para ele, Israel era forte e militante naquela altura. A literatura levou-o à literatura, depois de trabalhar 25 anos na rádio, donde acabou por ser despedido por razões políticas.Da

O seu primeiro livro, “The Yellow Wind” (“O Vento Amarelo”), um relato de jornalismo, causou polémica por dar a conhecer aos israelitas a realidade da Ocupação e a revolta palestiniana que conduziria à primeira Intifada, em 1987. Começa aí o seu ativismo. É, com Amos Oz e A. B. Yehoshua, um dos intelectuais que defendem a solução negociada dos dois Estados e condenam a Ocupação. Com o romance “Ver: Amor” e depois com “Até ao Fim da Terra” solidificou a sua posição como um dos grandes escritores contemporâneos, premiado e traduzido em mais de 30 línguas. Na segunda guerra do Líbano, a meio deste romance, perdeu o filho Uri, atingido por um míssil antitanque do Hezbollah, a dias do fim da guerra. Esta perda e a escrita dolorosíssima sobre a perda definem David Grossman. Um escritor que tenta compreender o mundo através das palavras e superar a raiva e a frustração, a sua, a de palestinianos, a de israelitas.

Fala árabe, o que o ajudou a compreender a história do outro lado e a escrever “The Yellow Wind”. Nunca ninguém tinha perguntado aos palestinianos como é que se sentiam antes desse livro. Hoje, o escritor sabe que o território mudou e as forças mudaram. David Grossman é um homem suave, com um sorriso que reflete a mágoa de “sair fora do tempo”, como escreveu depois da morte de Uri. Nunca mais parou de escrever até agora, em que concedeu a si mesmo um ano para viajar e falar de literatura pelo mundo fora.

Um escritor é alguém que tenta inscrever a sua narrativa pessoal na narrativa mais vasta do mundo, a paisagem humana. Você escreve particularmente sobre dor, perda, amor, sobre os ingredientes da tragédia. E é israelita. Um povo com uma longa e dolorosa história. Quando é que se dá conta de que a sua história pessoal se transforma numa parte da explicação universal para o que significa ser humano? Como fez Tolstoi, assim faz você.

Não tenho a certeza de conseguir pensar na minha escrita nesses termos grandiosos. Tento escrever a minha vida porque é a única maneira que tenho de explicar a minha vida. Descobri há muito tempo que escrevo para compreender o que me acontece e o que significa ser um ser humano normal numa situação anormal. Uma situação extrema e violenta. O romance “Até ao Fim da Terra” é sobre uma família que tenta desesperadamente manter a privacidade, manter a intimidade da bolha da família no meio de uma realidade que é tão brutal que a brutalidade apodera-se da ternura dentro dessa bolha. Os pais, os filhos, os dois irmãos. E vemos o que acontece quando a unidade familiar é exposta à radiação dessa brutalidade exterior.

Nós, os escritores, não somos historiadores, não escrevemos sobre os grandes processos históricos da Humanidade. Escrevemos sobre o modo como esses processos afetam um indivíduo ou dois. Os momentos mais grandiosos e significativos da Humanidade não ocorreram no campo de batalha. Ou nos corredores dos parlamentos ou dos palácios. Ocorreram em cozinhas e quartos de dormir, em quartos de crianças. Este é o meu modo de compreender a grande realidade, e muitas vezes para a compreender é preciso clarificar a linguagem. Numa realidade dominada pelo medo e a violência, há grande manipulação da linguagem e da história que contamos a nós mesmos ou que somos mandados contar a nós mesmos. Uma manipulação da narrativa nacional. É importante encontrar palavras que não tenham sido manipuladas. Pelo exército, pelo primeiro-ministro, pelo governo, pelo inimigo. Um modo de dizer o que sinto, porque um escritor sente-se claustrofóbico nas palavras alheias. Todos os escritores têm esse sentimento de asfixia quando falam em clichés. Ou numa linguagem imposta.

As origens da escrita literária são a necessidade de sair dessa asfixia através das palavras próprias. Quanto à minha perda, à perda da minha família, perdemos o nosso filho Uri na guerra do Líbano, faz agora nove anos. Lembro-me de quando aconteceu. Recebemos cartas de condolências, de Israel e de fora de Israel, e muitas dessas cartas eram de escritores. Alguns eu conhecia e outros não. O que me chamou a atenção foi que todos os escritores tinham a mesma voz, que dizia: estamos sem palavras, não temos palavras para descrever o que sentimos, não podemos falar sobre isto. E pensei: estes são os mestres da verbalidade dos nossos dias e não têm palavras. E no princípio também eu não tinha palavras.

Quando uma coisa assim acontece, o que queremos é chorar ou correr até ao fim da terra. Fazer algo totalmente físico. Ao fim de algum tempo, percebi que o silêncio não era bom para mim. Era uma negação, um modo de proteção, embora eu precisasse de me proteger a mim mesmo. Não é isso que quero da vida. Em todos os meus livros tentei entender o que me acontecia. Lembro-me de dizer à minha mulher que se fosse tão desafortunado ao ponto de ser enviado para essa ilha de exílio — porque o desgosto é exílio, é estar exilado de tudo o que antes se tinha como adquirido, e nada se toma por adquirido depois desta perda, nem mesmo a vida —, se fosse condenado a essa ilha de exílio, pelo menos queria mapeá-la com as minhas próprias palavras. Primeiro acabei este livro que estava a escrever [“Até ao Fim da Terra”] quando aquilo aconteceu e depois comecei outro a que chamei “Falling Out of Time” [“Cair Fora do Tempo”], no qual descrevo o que acontece nessa ilha de exílio. O que se sente e o que se tem medo de sentir. E como tudo muda.

Falou de exílio, uma condição que associamos estreitamente ao povo judeu. Exílio, deslocação, fuga, movimento... A personagem feminina do livro, Ora, anda até ao fim da terra. Em “Falling Out of Time”, os walkers, os andarilhos, que andam o tempo todo, andam para onde? Para esse lugar de exílio interior, essa ilha? Considerou alguma vez a hipótese de sair, de viver noutro país, nos Estados Unidos, por exemplo? Poderia viver fora de Israel? Ou precisa dessa terra?

Tudo foi posto em questão. Isso também. Se vivêssemos noutro país, isto talvez não tivesse acontecido... Não me vejo a viver fora de Israel. Israel é muito relevante para mim. Posso descodificar os códigos desta sociedade, posso compreender o que as pessoas fazem mesmo que aquilo que fazem me faça perder a cabeça. Sou feito destas matérias, as mesmas de que são feitas as pessoas que são totalmente contra mim, ou eu contra elas. Vejo o que os colonos fazem na Cisjordânia, dão comigo em doido, mas vejo também que eu poderia ser um deles e estar ali. Por uma pequena mudança dos cromossomas, cromossomas biográficos, podia estar ali. Tenho uma família ali, nos colonos. Quero viver num lugar em que tudo o que acontece, ou me enche de alegria, ou me atormenta, é feito de matéria-prima. É relevante. Podia ter uma vida confortável em muitos lugares, recebo convites para viver nesses lugares, mas eles não me pertencem e não me causam alegria ou dor. Tem razão quando fala no exílio dos judeus. Uma das definições básicas do judeu é a de alguém que nunca se sentiu em casa no mundo. E Israel foi feito para ser essa casa, o lugar onde nos sentimos em casa, a nossa casa. É uma questão trágica, a razão pela qual somos incapazes de tornar Israel a nossa casa. Depois de 60, quase 70 anos de soberania e independência.

Na Europa, e em Portugal, a questão da terra não é a essência. A necessidade da terra como lugar de pertença. A permanência. Pelo contrário, quando nos sentimos mal na terra, emigramos, saímos da terra. Não a disputamos. Portugal é um país antigo. E os escritores também costumam emigrar, sair, trocar de terra, quando deixam de se sentir bem nela. Ganhar distância. Coetzee foi para a Austrália, Graham Greene para França e Itália, Joyce para França e Itália, Martin Amis para a América... Partir parece ser a solução para os problemas. Em Israel, parece que é o contrário. Chegar, ficar na terra, é a solução. Muita gente muda-se para Israel vinda de outros lugares. É a nova condição do judeu. Parar a deslocação.

Mesmo se como coletivo, como povo, não se tem o gosto de ficar em casa, de estar em casa, ao cabo de algum tempo ficamos esfomeados desse sentimento. Queremos sentir que estamos em casa. Algures. E sentir o conforto de saber que estamos no nosso lugar. Sentir esse contacto nervoso com as fronteiras do nosso ser. Encher todos os quartos com a nossa presença. Ansiamos por isso, ansiámos por isso durante milénios, em que rezámos, em 70 diásporas, como dissemos, rezámos na direção de Jerusalém, desejámos estar em Jerusalém, e estudámos o Talmude com todos os problemas de saber que frutos e que comidas e a que horas podíamos comer isto e aquilo, sabendo que estávamos noutro lugar, com outro horário, longe de Jerusalém. Sabendo que estávamos na Polónia, em Portugal, no Egito, em Marrocos... E ao mesmo tempo havia qualquer coisa de concreto no nosso ser que estava enraizada em Zion, na terra de Israel. Era uma estranha e dupla existência, difícil de acreditar. E de compreender. E agora, como disse, temos a terra. Eu não sinto a necessidade de ser dono da terra. No conflito que temos com os palestinianos, não sinto que tenha de ser o dono de toda a terra entre o rio Jordão e o mar. Acho que a devíamos dividir com os palestinianos, e eles deviam ter a sua casa e os seus lugares. Nem sinto sequer que tenha de ser dono dos lugares santos, que tenham de ser nossos, dos judeus, desde que os judeus crentes tenham acesso a eles. Ao túmulo de Raquel, por exemplo. As pessoas parecem precisar deste título de propriedade, de serem os donos desta terra, e essa é uma das raízes profundas do conflito entre nós e os palestinianos. Como disse antes, a solução podia ser a divisão do país entre os dois, uma solução muito dolorosa e que nunca seria de justiça absoluta. Mas não procuro justiça absoluta, talvez a justiça absoluta signifique que um dos lados não estaria lá nunca mais, ou deixaria de estar, procuro uma justiça à medida dos homens, uma justiça de compromisso, com toda a espécie de concessões. Sim, de compromisso. Compromisso é a palavra-chave.

A terra. E as guerras da terra. Como é que conseguiu não ficar amargo com a perda do seu filho?

É uma pergunta pessoal a que tento responder. Se bem me lembro, e lembro-me bem, quando estava muito amargo e vingativo, à procura de uma vingança —e tive os meus momentos —, senti que o contacto entre mim e Uri ficava diminuído. Que eu estava inundado por qualquer coisa que impedia o meu acesso a ele. E eu queria conservar esse acesso. Não acho que estivesse imune ou protegido desses sentimentos de vingança, que eram naturais. Mas sinto que se me render a esses sentimentos fico privado do meu filho. Mais tarde veio a racionalização. A vingança não leva a lado nenhum. Olhando dois passos à frente, verifica-se que quando se é vingativo sofre-se no passo seguinte. Alguém se vingará de nós. E quando penso nisso sei que centenas de milhares de pessoas nos dois lados da guerra perderam a vida, inúmeras famílias foram esmagadas, e não saímos do quadrado da partida. Estamos ainda na situação que garante que cada vez mais pessoas perderão a vida. Realmente, qual o ponto disto? Qual o ponto? Não podemos colaborar com esta maquinaria, este círculo vicioso de violência. O ponto maior é autorizar o maior número possível de pessoas a viver uma vida normal e com sentido, porque a vida que temos lá, embora pareça vital — e Israel é famoso pela alta voltagem emocional e pela vitalidade que encontramos quando viajamos para lá —, ainda assim acho que estamos a viver uma vida paralela à que devíamos ter. Não é bem vida, é sobreviver a uma catástrofe a seguir à outra.

Nos últimos quatro anos estivemos envolvidos com os palestinianos em duas guerras em Gaza. Ao cabo de uma hora vemo-nos envolvidos numa guerra que não antecipámos. Foi o caso há nove anos, na segunda guerra do Líbano. De um momento para o outro, de repente, vimo-nos em guerra. Depois de uma provocação de Gaza, retaliámos, eles retaliaram, e entrámos dentro de uma guerra mortal. Se vivermos a nossa vida sabendo que em qualquer momento ela pode mudar, começamos a viver uma vida dentro desta opção. Não a vida que temos ou podíamos ter, mas a vida escolhida, a da reviravolta da realidade. Isto torna-se a normalidade. Existe uma bela frase de Bertolt Brecht: “Aquele que ri é porque não ouviu as últimas notícias.” Esta é a corrente subterrânea a nós, em Israel. A duradoura antecipação da reviravolta da nossa realidade. Tudo de pernas para o ar. E é parte deste paradoxo que sinto em nós: o facto de termos sobrevivido ao longo da História como povo para viver a nossa vida e agora vivermos apenas para sobreviver. Claro que só vivemos para sobreviver quando estamos no campo de extermínio e a vida está por um fio. Mas quando se é, como somos, o exército mais forte na região e o décimo, creio, no mundo, se temos o apoio dos Estados Unidos, da Alemanha, da França e da Grã-Bretanha, se temos isso tudo e aquilo a que aspiramos é apenas sobreviver a uma catástrofe a seguir à outra... isto não é nada. Porque algum dia virá a caminho um inimigo mais corajoso do que nós, mais esperto, mais astucioso, e cairemos na armadilha e veremos concretizados os piores pesadelos. Toda a minha atividade a favor da paz nasce desse pesadelo.

Não tento idealizar os nossos inimigos, nada disso. Os palestinianos cometeram e cometem erros terríveis e colaboram na distorção desta situação e no facto de nem sequer termos um processo de paz neste momento. Não podemos carregar tudo nos ombros de Israel, embora eu desejasse ter um primeiro-ministro e um Governo mais ativo e inovador a reacender o processo de paz. Precisamos de ter um exército forte, porque o Médio Oriente, agora mais do que nunca, digo-o de olhos abertos e sobriamente, é a vizinhança mais violenta e imprevisível. Talvez a vizinhança mais perigosa do mundo. Especialmente para os israelitas. O Médio Oriente nunca interiorizou não a nossa existência mas o nosso direito a estar ali. Temos de ser fortes e possuir um exército que nos proteja de toda e qualquer surpresa. Mas as forças armadas não podem ser a resposta para toda a complexidade de estarmos ali.

Precisamos de um exército forte e temos de ter paz com os nossos vizinhos. Porque a paz mudará a realidade, e até agora só tivemos agentes para a guerra, a violência, o ódio e a suspeita. Quando houver paz — e insisto ainda em dizer quando e não se tivermos paz —, ela começará a gerar os seus agentes. Haverá contactos entre pessoas e organizações e universidades e equipas desportivas e orquestras, que começarão a criar muito lentamente e de um modo frágil uma paz mais duradoura. E muitos tentarão assassinar esta paz bebé. Mas ficará uma hipótese de ao fim de algumas décadas a paz produzir frutos e sugerir às pessoas uma vida vivida normalmente. Uma vida com dignidade, sem a sombra da Ocupação, do terror. Uma pequena hipótese, muito pequena, de começarmos finalmente a Ser, com S maiúsculo. E não apenas a sobreviver no Médio Oriente.

Falemos da escrita como meio de sobrevivência. Li na “New Yorker” uma peça do Lawrence Wright que descrevia a vida e a angústia dos pais que viram os filhos ser raptados na Síria e decapitados pelo ISIS. Estes pais não só tiveram de guardar segredo durante anos como foram expostos à violência brutal e extrema dos vídeos e fotografias na internet. Uma das mães revia obsessivamente as decapitações, à procura de sinais. Isto tocou-me pelo horror, a tragédia, a tortura de tentar comunicar com o filho morto através do filme, cortado, da sua decapitação. Entramos no coração das trevas, aqui. Pergunto-me se a escrita acede a esta dor e se, acedendo a ela, descrevendo-a, acaba por se tornar uma vantagem. Um modo de domesticar o horror. Quando se têm as palavras, será que elas podem ajudar a fazer sentido aos que não as têm? Será que ajudam a sobreviver? Como é que voltou a escrever? O seu caso é incrível. Começou a escrever um livro sobre uma mãe que teme que lhe batam à porta a dizer que o filho morreu na guerra, que foge das notícias, e de repente batem à sua porta para lhe dizer que o seu filho tinha morrido na guerra. Conseguiu regressar ao livro e terminá-lo. O livro foi salvador?

Não sei. Fico hesitante sobre o poder mágico da escrita. Escrevi porque era a única coisa possível.

Qual é o lugar de onde se escreve? Aquele lugar de que falam os walkers, os andarilhos, em “Falling Out of Time”? “Ali”?

Sim, “ali”, como digo, “ali”, o lugar para onde se dirigem todos os pais que perderam os filhos. É um lugar onde eu não procurava redenção. Como poderia? Fiz o que achei que era a única coisa que podia fazer. Tudo o resto à minha volta estava esmagado. E o único lugar sólido era o da história.

Tornou-se uma personagem do livro.

Tornei. Tornei-me uma das personagens, a que é incapaz de escrever e incapaz de não escrever sobre a morte do seu filho, e por causa dessa ambivalência torna-se o Centauro, metade escritor e metade mesa de escrita. A única maneira de me libertar era escrever a história. Lembro-me nitidamente de como nas primeiras semanas e meses tinha a necessidade de continuar a criar personagens. Como se tivesse a obrigação de não as abandonar, de não parar a respiração, a respiração constante da imaginação, as anedotas e os episódios da biografia delas, de lhes dar vida e calor e sensualidade, sexualidade, um sentido de humor... A necessidade da combustão e da injeção destas personagens, todo o tempo, gerou coisas dentro de mim.

Estas personagens são muito visuais. O cabelo branco, a incidência da luz... Eu vejo-as como leitora. Quão reais são para o escritor? Andarilhou com elas?

Muito, muito reais. Caminhei com elas, sim. Tudo o que descrevo no livro eu mesmo fiz. Nunca entendo a personagem se não entender o seu físico. Preciso de saber o que significa estar dentro de outro corpo.

E tudo começa por um corpo ou pelo discurso?

Preciso do físico. Uma vez escrevi um livro, “Someone To Run With”, que penso que sairá aqui no ano que vem. Há uma personagem no livro, com 16 anos, uma miúda... E eu era incapaz de escrever porque não sabia como ela era, que aspeto tinha. Nessas alturas, quando procuro uma personagem, torno-me um caçador. Cada cara que vejo, cada gesto, cada voz, fico lá dentro imediatamente, se me convier. Um dia entrei numa loja de computadores, num centro comercial perto da minha casa, em Jerusalém, ia comprar alguma coisa, e de repente vi aquela rapariga vestida com uns jeans e percebi imediatamente que era ela. Fotografei-a de costas e vi-lhe o maxilar, uma mistura de força e de ternura, e soube logo que a conhecia. Corri para fora da loja antes que ela dissesse alguma coisa ao empregado, porque já não precisava da voz dela.

Isso é curioso para alguém que começou na rádio, foi ator em criança na rádio e trabalhou na rádio muitos anos. A rádio é voz. O seu primeiro contacto com a literatura foi feito através de peças de rádio, recitações, leituras... Tchekhov chegou-lhe de ouvido. E agora...

...Agora preciso do físico. E foi sempre assim. Quando escrevo sobre alguém, é importante saber como caminha, como fala, o toque do seu cabelo, como faz amor e como come. Preciso de saber isso ao começar, e depois ficam sólidos, concretos, conheço-os. E vem o prazer de os juntar, de os justapor, de ver como agem uns com os outros. Mas começa com o físico. Posso desapontar as pessoas ao dizer isto, mas não começo com grandes ideias, as ideia vêm mais tarde.

Bom, todo o universal é local. Mas pensei que a voz, o modo como o texto é ouvido, a textura da frase...
Sim, depois, a voz é importante. No ouvido interno do leitor é muito importante. Quando acabo um livro, leio alto a última versão. Para mim, às vezes para a minha mulher. E sei que grandes escritores fizeram isso. Flaubert reunia os amigos e lia para eles durante horas. Sou mais misericordioso com os meus amigos. E nesta leitura afloram imensos erros e faltas! Vejo as redundância e as repetições, as melodias e coisas que estão a mais e que limpo de modo simples. Fragmentos, partes de que não preciso. Talvez venha dessa minha experiência da rádio, é capaz de ter razão. E amo a voz humana. Em “Até ao Fim da Terra” há três adolescentes de 16 anos, dois rapazes e uma rapariga, que estão num hospital em Jerusalém, sofrem de hepatite, e a Guerra dos Seis Dias começa, e a luz é tapada em todas as janelas, apaga-se a cidade. Foi assim, lembro-me quando a guerra começou. Eles não se veem uns aos outros, mas falam uns com os outros, ouvem as vozes. São vozes na escuridão. E começam a aproximar-se, e até a apaixonar-se, sem se verem. E talvez isto seja a semelhança entre a rádio e o livro. Como leitor, sei quanto respondo à melodia da história.

E disse-me que acaba de escrever um livro com comédia, stand-up. Novamente vozes, vozes que seduzem uma audiência sendo cómicas...
Acaba de sair em Israel e noutros países. O título é “Comes a Horse into a Bar” [“Um Cavalo Entra num Bar”]. É o princípio de uma anedota, de muitas anedotas em hebraico e não só. Um cavalo entra num bar e diz ao barman: “Quero um vodka.” O barman dá-lhe o vodka, e o cavalo pergunta: “Quanto é?” “São 25 dólares.” O cavalo paga, sai do bar, e o barman corre atrás dele. “Peço desculpa, senhor cavalo, é inacreditável, nunca tinha visto uma coisa assim, um cavalo que fala.” Responde o cavalo: “E com estes preços tão cedo não volta a ver!” Há centenas de anedotas que começam assim, e agora que o livro saiu as pessoas mandam-me mais anedotas com o cavalo que entra num bar. E querem que as inclua na próxima edição. É amoroso da parte dos meus leitores.

Em “Até ao Fim da Terra”, põe-se na pele de uma mulher, Ora. Não é ousado enfiar-se assim dentro da pele de uma pessoa de um sexo diferente do seu? E dar-lhe vida sexual, impulsos, emoções, sentimentos, dúvidas femininas? E envolvê-la numa teia com dois homens? Ver como ela se move, como ela faz tudo? Foi difícil entrar em Ora?
Não é comum fazer da protagonista uma mulher e mãe quando se é homem. Eu queria escrevê-la e compreendê-la, e escolhi o ponto de vista da mulher por várias razões. Escrever do ponto de vista do homem, do pai, não é um verdadeiro desafio. Não me intriga. Durante dois longos anos tentei compreendê-la, descodifica-la, atormentei-me. O livro demorou cinco anos e meio a ser escrito. Lembro-me de dizer à minha mulher e a amigos que ela não se rendia a mim. E depois percebi que eu tinha de me render a ela. Deixá-la estar dentro de mim, ser eu. Isto tem a ver com literatura. Depois de chegarmos a uma certa idade, congelamos. Num género, num modo de falar, num sentido de humor, numa ou duas linguagens. Ficamos cada vez mais estreitos. O que a escrita me ensinou foi este movimento livre. Entre um homem e uma mulher, uma criança e um velho, uma pessoa sã e um louco. Um israelita ou um palestiniano, um esquerdista ou um direitista.

A literatura autoriza-nos esta liberdade, e há imensa doçura nisso, porque nunca nos permitimos este movimento. Precisamos de ser unos, de ser protegidos, entre aspas, de outra opções. Dizemos: eu e o meu irmão somos muito diferentes. Ou: eu e os meus pais. Os israelitas dizem que são diferentes dos palestinianos e vice-versa. A definição é negativa. Não sou aquele. Nunca serei. A escrita deu-me o prazer de ser pessoas diferentes de mim e até contrárias a mim. Não abala a minha identidade. Nesta idade, a identidade não pode ser realmente abalada. Mas exalta-a, incentiva-a. Põe-me em contacto com a vida. E precisava de Ora, da mãe, porque o livro é sobre criar filhos. Há qualquer coisa de primitivo no contacto entre mãe e filho, mais primitivo do que no pai. Sei que parece uma generalização terrível, mas é assim, e sou um pai muito maternal. Muito envolvido. Mas é claro para mim que o que uma mulher sente quando carrega a criança no corpo, quando dá à luz e quando amamenta, cria um contacto primitivo que o homem entende com dificuldade.

Eu queria recriar isso com a imaginação, estar lá, nesse lugar de contacto primitivo. E queria uma mulher como locomotiva da história, porque a guerra, exércitos, governos, são coisas de homens. Todas estas religiões — e não me cite — são jogos de rapazes. Não estou a tentar idealizar as mulheres, mas aquela maquinaria é masculina. Claro que há mulheres agressivas, militantes, beligerantes. Tivemos uma primeira-ministra [Golda Meir] mais beligerante do que os homens. E nalgumas mulheres que conheço vejo esse olhar cético perante os jogos dos homens, os jogos da guerra. E elas não colaborarão logo com a maquinaria das armas. Um homem não fugirá dos oficiais que vêm notificar a morte dos filhos, que batem à porta. Talvez uma mulher fuja. Talvez.

A maioria ficará em casa, esperando passivamente a notificação da perda, a notícia da morte. Penso sempre nesse livro do Génesis, quando Deus foi ter com Abraão, o nosso pai, o pai do judaísmo, e lhe disse: dá-me o teu filho muito amado para o sacrificar, para o matar. Deus é inteligente, não foi ter com Sara, a mulher de Abraão. Porque ele sabia que se fosse ter com Sara com este comando ultrajante ela o poria fora da tenda ou mandá-lo-ia pelas escadas abaixo. E Abraão, o pai da nação, que no capítulo seguinte começa a argumentar com Deus como um advogado sofisticado sobre quantas pessoas Deus pode matar na cidade de Sodoma, quando Deus lhe pede o filho único e que lhe corte a garganta, ele leva-lhe Isaac para a matança. Pega no burro e vai. Mas Ora, que pode ser bastante irritante, tem um sentido apurado do que está certo, de fazer a coisa certa, e não está disposta a colaborar com a maquinaria do exército. Ela não estará lá quando os oficiais vierem anunciar a morte do filho.

Acreditando, magicamente, que se não a encontrarem a roda da sorte será revertida. Um minuto de atraso é suficiente nessa situação. E ela foge. Leva com ela Avram, outro Abraão, que foi o amor da juventude e talvez da vida. E começamos a perceber que ele pode ter sido o pai biológico do filho. Posso estragar o suspense, porque o livro saiu há 10 anos... E conta-lhe todos os detalhes da criação do filho. As centenas de pequenos, domésticos, mesquinhos atos de boa vontade, devoção, esforço, desapontamento, fracasso, preocupação, proteção... Tudo o que um ser humano acumula nesta vida. Aos 16 anos, ele tinha sido um vulcão de imaginação, amor, paixão. E ao ser capturado e torturado pelos egípcios na guerra de 73 [Yom Kippur] regressou devastado e quebrado no corpo e na alma. Não tem contacto com ninguém. E ela quer que ele saiba o que significa criar um filho. Ser parte de uma família. E como cada um dentro da família serve de cruzamento dos outros. Como cada criança representa a relação entre mãe e pai. Coisas de que nem eles se apercebem. E Ora diz-lhe isso porque o filho, Ofer, foi-lhe tirado e está na sombra da guerra, e tudo o que ela pode fazer é fundir esses momentos de vida, vitalidade, amor.

É tudo o que lhe resta. E fá-lo com o coração. Não sei se consegue salvar o filho assim, porque deixei o final aberto, era a coisa a fazer. Mas consegue salvar Avram, como se o fizesse nascer, e trazê-lo de volta à vida.

O que este livro e “Falling Out of Time” me ensinaram é que não podemos nunca atravessar para o outro lado da vida. Não sabemos nada sobre a vida além da morte. Mas há uma coisa que podemos fazer. Podemos sentir intensamente a vida e a perda da vida ao mesmo tempo, e fazemo-lo com o coração.

Esta é a maneira da arte. Poesia, cinema, teatro, música... É o único lugar onde vida e perda podem coexistir de um modo em que podemos estar. Pelo menos eu, que sou um não crente, secular. Podemos tocar no fundo e depois regressar à nossa vida. Foi importante para mim arranjar uma maneira de regressar à vida.

* Entrevista de Clara Ferreira Alves, publicada hoje, no Expresso