[Alex Stoddard]
“Contra tudo o que é estrangeiro podemos encontrar segurança, mas a morte faz que todos nós, homens, habitemos uma cidade sem defesa." Epicuro, num curto e belíssimo texto sobre o tema da amizade, incluído no livro intitulado O Hipopótamo de Deus, José Tolentino de Mendonça traz-nos ao conhecimento um provérbio inglês de invulgar expressividade: “ Viver sem amigos é morrer sem testemunhas”.
Esta afirmação é de uma densidade prodigiosa, já que remete da solidão irremediável da morte para a natureza diversa das vidas. Ocorreu-me recuperá-la neste instante especialmente doloroso em que me vejo confrontado com a vontade, e a dificuldade, de evocar um amigo morto. Não um amigo qualquer mas o mais próximo dos últimos anos. De súbito, quando a razão parece estar prestes a despenhar-se num abismo de escuridão e silêncio, a recordação das palavras de um grande pensador e poeta permite-nos encontrar um caminho para falar do que parecia indizível: a perda de um amigo profundamente digno. Resta-me, pois, apresentar o meu testemunho sobre o Manuel Seabra, cidadão empenhado, jurisconsulto e político que morreu na semana passada.
Uma lapidar biografia institucional remete-nos para a enunciação de um percurso factualmente verificado. Manuel Seabra foi vereador e presidente da Câmara de Matosinhos, integrou diversos órgãos dirigentes do PS, incluindo o próprio Secretariado Nacional, e desempenhou durante os últimos quatro anos as funções de deputado na Assembleia da República. Ocupou todos estes cargos de forma exemplar deixando um lastro de seriedade, competência e lisura. Valorizava o estudo, cultivava o rigor e pautava-se por critérios de elevada exigência intelectual. Dito isto, que já não é pouco, o essencial fica ainda por dizer.
Manuel Seabra foi sobretudo um homem livre que combateu com mais convicção do que gosto e que nunca abdicou de uma atitude tolerante e solidária. Por detrás da sua permanente bonomia havia um carácter forte e insubmisso, pronto a lutar quando isso se impunha, disposto a concordar quando tal se revelava possível. Essa força interior impeliu-o a tomar decisões de inegável coragem que lhe abriram, simultaneamente, as portas do reconhecimento e da incompreensão. Não tinha o hábito de evitar as incomodidades e nunca claudicava na defesa daquilo em que verdadeiramente acreditava. A sua generosa compreensão das debilidades humanas tinha, porém, um limite – abominava tudo o que era medíocre, pequeno e vil. Por isso o víamos a ele, que era um ser de temperamento solar, a reagir com alguma brusquidão perante manifestações daquela natureza. Agindo dessa forma deu um inestimável contributo para a renovação da vida partidária provocando transformações destinadas a perdurar no tempo. Num país onde ainda parece preponderar a gramática da obediência ardilosa, que prefere a dissimulação à clarificação, el e ousou várias vezes seguir pelo caminho mais difícil. Quando teve de romper, rompeu, quando achou que deveria partir, partiu. Pagou por isto um preço muito elevado quando foi vítima de uma tentativa de silenciamento político. Nessa ocasião optou pela via da dignidade e afastou-se por uns tempos da política activa refugiando-se na prática da advocacia, profissão que aliás o apaixonava. Voltou quando o foram buscar.
Exerceu com especial alegria a função de deputado. Homem inteligente e culto, apreciava o debate, percebido como fecunda interacção de inteligências divergentes. Por isso mesmo era tão incisivo quanto tolerante, tão duro na retórica quanto aberto à compreensão das razões dos outros. Não era um dogmático, cultivava um pragmatismo exigente. Daí que tivesse amigos em todos os quadrantes políticos, decerto sensíveis à sedução do seu humor inteligente. Só num assunto assumia as vestes de um fanático, na exaltação da sua paixão benfiquista.
Fará falta ao país, ao Parlamento e ao PS. Subsistirá como uma memória constante no círculo dos seus amigos, que eram muitos, e que jamais esquecerão que o Manuel Seabra seguia exemplarmente uma outra afirmação, também contida no já referido livro, esta da autoria de Séneca: “Ter um amigo é ter alguém por quem morrer”. Estamos a sair de uma época em que com relativa banalidade os homens se dispunham a morrer por ideias abstractas; infelizmente também se dispunham com relativa facilidade a matar em nome delas. Para não cairmos agora no vazio de um egoísmo radical precisamos de regressar a essa longínqua afirmação de Séneca. Há muitas formas de morrer por um amigo. Manuel Seabra correu muitos riscos em nome desse valor superior da amizade. Isso distinguia-o e elevava-o a uma categoria muito rara na nossa vida pública. Confrontados com a dor da sua morte talvez possamos encontrar algum conforto numa derradeira citação de José Tolentino Mendonça: “Porventura o mais fecundo não está na pergunta ‘Porque é que eles partiram?’, mas nessa outra que levaremos a vida a responder, e sempre em total gratidão: ‘Porque é que eles vieram?’.”
[Hoje, no Público]
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