sábado, janeiro 18, 2014

Carlos Reis dos Santos: Carta aberta ao presidente da JSD e seus compagnons de route

[Andrew Wyeth]


[Saber-se hoje que a JSD não esteve sozinha no seu momento mentecapto (era previsível, mas enfim, nada como ter a certeza) só torna mais difícil entender as loas a Teresa Leal Coelho. A deputada do PSD era contra o referendo, mas não votou contra o referendo. Demitiu-se da direcção do grupo parlamentar que impôs disciplina de voto, mas não se demitiu da direcção do partido que partilhou com a jota a iniciativa do referendo. O parlamento existe para defender os cidadãos, mas os deputados do PSD (e do CDS) preferiram proteger os partidos (e a pele). A Assembleia da República é suposto ser a casa da democracia, mas revelou ser um albergue de ditadores. Um estudo indica que só 11% dos portugueses confia no Parlamento e 9% nos partidos. Porque será?! Aqui fica uma carta que vale tanto a pena ler. A prova de que na política portuguesa nada se progride, tudo se regride. Já agora, um número que vale a pena decorar: nove milhões de euros.]

Hesitei em decidir a quem me dirigir: não sei quem hoje é o mandante da JSD, nem a quem prestam vassalagem. Assim, terei de me dirigir ao presidente formal da JSD – e a quem deu publicamente a cara por uma das maiores indignidades que se registaram na história parlamentar da República.

Para vocês, que certamente não me conhecem, permitam-me que me apresente: sou militante do PSD, com o n.º 10757. Na JSD onde me filiei aos 16 anos, fui quase tudo: vice-presidente, director do gabinete de estudos, encabecei o conselho nacional, fui quem exerceu funções por mais tempo como presidente da distrital de Lisboa, fui dirigente académico na Faculdade de Direito de Lisboa, eleito com a bandeira da JSD, fui membro da comissão política nacional presidida por Pedro Passos Coelho, de quem, de resto, fui um leal colaborador. Quando saí da JSD, elegeram-me em congresso como vosso militante honorário.

Por isso julgo dever dirigir-me a vocês, para vos dizer que a vossa actuação me cobre de vergonha. E que deslustra tudo o que eu, e tantos outros, fizemos no passado, para a emancipação cívica, económica, cultural e política, da juventude e da sociedade.

Com a vossa proposta de um referendo sobre a co-adopção e a adopção de crianças por casais de pessoas do mesmo sexo, vocês desceram a um nível inimaginável, ao sujeitarem a plebiscito o exercício de direitos humanos. A democracia não deve referendar direitos humanos de minorias, porque esta não se pode confundir com o absolutismo das maiorias. Porque a linha que separa a democracia do totalitarismo é ténue – é por isso que a democracia não dispensa a mediação dos seus representantes – e é por isso que historicamente as leis que garantem direitos, liberdade e garantias andam à frente da sociedade. Foi assim com a abolição da escravatura, com o direito de voto das mulheres, com a instituição do casamento civil, com a autorização dos casamentos inter-raciais, com o instituto jurídico do divórcio, com o alargamento de celebração de contratos de casamento entre pessoas do mesmo sexo. Estes direitos talvez ainda hoje não existissem se sobre eles tivessem sido feitos plebiscitos.

Abstenho-me de fundamentar aqui a ilegalidade do procedimento que se propõem levar avante: a violação da lei orgânica do referendo é grosseira e evidente – misturaram numa mesma proposta de referendo duas matérias diferentes e nem sequer conexas. Porque adopção e co-adopção são matérias que vocês pretendem imoralmente enfiar no mesmo saco.

Em matéria de co-adopção vocês ignoram ostensivamente o superior interesse das crianças já criadas em famílias já existentes e a quem hoje falta a devida segurança jurídica e protecção legal. Ao invés, vocês querem que os seus direitos sejam referendáveis. Confesso que me sinto embaraçado e transido de vergonha pela vossa atitude: dispostos a atropelarem o direito de umas poucas crianças e dos seus pais e mães, desprotegidos, e em minoria, em nome de uma manobra política. E isto é uma vergonha.

Mas é também com estupefacção que vejo a actual JSD tornar-se numa coisa que nunca foi – uma organização conservadora, reaccionária e atávica. Vocês empurram, com enorme desgosto meu, a JSD para uma fronteira ideológica em contradição com a nossa História e ao arrepio do nosso património de ideias e valores: o humanismo em matéria de liberdades individuais sempre foi nossa trave mestra. O que vocês propõem é uma inversão de rumo: conservadores na vida familiar mas liberais na economia. Eu e alguns preferimos o contrário. Porque o PSD, em que nos revimos, sempre foi o partido mais liberal em matéria de costumes e em matérias de consciência.

Registo, indignado, o vosso silêncio cúmplice perante questões sacrificiais para a juventude portuguesa. Não vos vejo lutar contra o corporativismo crescente das ordens profissionais e a sua denegação do direito dos jovens a aceder às profissões que escolheram. Não vos vejo falar sobre a emigração maciça que nos assola. Não vos vejo preocupados com muitas outras questões.

Mas vejo-vos a querer que eu decida o destino dos filhos dos outros.

Na JSD em que eu militei sempre fomos generosos: queríamos mais direitos para todos. Propusemos, entre tantas coisas, a legalização do nudismo em Portugal, o fim do SMO, a despenalização do consumo das drogas leves, a emancipação dos jovens menores e o seu direito ao associativismo. Nunca nos passaria pela cabeça querer limitar direitos.

Hoje vocês não se distinguem do CDS e alguns de vocês nem sequer se distinguem da Mocidade Portuguesa, ou melhor, distinguem-se, mas para pior.

A juventude já vos não liga nenhuma. E eu também deixei de vos ligar.

Jurista, militante do PSD n.º 10757 e militante honorário da JSD

[Hoje, no Público]

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