no instante em que se torna possível contar todas as histórias do mundo, tu dirás (como se o tempo não fosse agora de cinza, como se o meu corpo ainda cantasse…):
- vives como se vivesses por trás das palavras de um poema. existes se me amares.
e eu direi:
- dantes, eras uma visão. sentia uma luz acender-se na pele e eras tu. hoje, preparo e bebo venenos para que o brilho daquilo que já não és venha ao de cima, se solte do sangue e estremeça, cintile, e não se apague.
tu:
- o medo, o grande medo que se confunde com a serenidade, devora-te. e se nos tocarmos perderemos a inocência; ou talvez tu morras e eu ressuscite. mas uma coisa é certa: não nos cruzaremos, mais, estamos definitivamente sós. eu, enterrado. tu, respiras.
eu:
- quero morrer perto de ti, de nada me servirá morrer inocente.
tu:
- aqui, nesta treva, o que é que parou no tempo? as nossas vidas? a paisagem? o mar? do qual nunca soubemos a idade…
eu:
- quando sentia o teu corpo contra o meu ouvia, lá fora, a fúria do mar. era um presságio de felicidade, mesmo sabendo que só o mar das outras terras é que é belo.
tu:
- continuas a escrever demais, matas tudo com as palavras. olha como eu te olho. olha para mim e cala-te. devias encher a caneta com tinta envenenada.
eu:
- o último deserto que me resta de ti é a noite da escrita. nela te mantenho vivo, amante morto. já não possuo bens e não prevejo herança nenhuma. vivo para a travessia do corpo que me sepultou na memória… o teu.
tu:
- aquele que se prepara para morrer tem que povoar a alma com tudo o que vai abandonar. não chegues aqui de coração vazio. é insuportável estar morto, sem nada que nos habite. a morte não admite distracções; por isso, a maior parte das pessoas não sabe morrer, desfaz-se.
eu:
- não há vergonha em dizer ou escrever isto: amo-te ainda.
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