segunda-feira, dezembro 30, 2013

Pedro Burmester: O concerto que faltava

[Casa da Música]

[O jornalismo tem regras. E tem contingências de espaço. Nem sempre é possível dizer tudo, e muito menos tudo o que se quer, da forma que se sente. O jornalismo é feito de factos, não de afectos. Mas às vezes custa muito cumprir as regras. Porque às vezes as regras parecem distanciar-nos mais da verdade do que aproximar-nos dela. E porque há pessoas tão raras, capazes de gestos tão singulares, que escrever sobre elas, mesmo que seja rigorosamente factual, parecerá sempre apenas emocional.

Aqui fica a versão alargada do texto que escrevi sobre Pedro Burmester para a Notícias Magazine de dia 8 de Dezembro, com tudo o que seria passível de figurar na transgressão das regras e com tudo o que não cabia num espaço que, sabe quem escreve, é sempre pouco.]

Esteve dez anos sem pisar um palco no Porto, silêncio que foi um ruidoso protesto contra a ausência de política cultural de Rui Rio, presidente da Câmara da cidade entre 2001 e 2013. Pedro Burmester, que acaba de completar 50 anos, quarenta de carreira, foi o primeiro director artístico da Casa da Música, mas nunca tocou na Casa que sem ele não existiria. Hoje fecha-se um ciclo. Não é regresso nem reconciliação, é estreia absoluta carregada de simbolismo. A sala Suggia está esgotada para o ouvir.

Nunca saberemos o que poderia ter sido o Porto se Pedro Burmester não se tivesse ausentado. Mas sabemos o que não teria sido se ele não tivesse estado presente: no mínimo, a Casa da Música (CdM) não existiria. Não é coisa pouca. Portugal terá um dos melhores pianistas do mundo, mas o Porto tem o homem que aos 35 anos acreditou que todas as pessoas poderiam, através da música, caber no mesmo lugar. Não era só um sonho artístico, era um projecto de igualdade. Estávamos em 1998. Mas o que nunca pareceu fácil haveria de tornar-se ainda mais difícil.

Depois de uma improvável vitória autárquica em 2001, rapidamente se percebeu que Rui Rio, social-democrata até então vagamente desconhecido, iria cumprir mais de um mandato na Câmara do Porto. No bolso trazia, como orgulhosamente avisou, uma máquina de calcular para observar a cultura. Observou, calculou e arrasou. No primeiro ano, reduziu o orçamento da cultura em 60%. Depois acabou com o próprio pelouro da Cultura, esvaziou o Teatro Municipal Rivoli, exigiu demissões e impôs novos protagonistas na Casa da Música, todos gestores, todos do PSD. Os seus doze anos de presidência autárquica foram marcados pelo mais espesso vazio cultural de que há memória numa cidade que fora eleita, na antecâmara da sua chegada, Capital Europeia da Cultura.

A Casa da Música (CdM) era o sonho de Pedro Burmester. Idealizou-a em 1998, pensou detalhadamente numa casa que albergaria todas as músicas para todas as pessoas. Seria "uma revolução", vaticinou. Foi dele a ideia de acolher no equipamento a Orquestra Nacional do Porto, foi dele a ideia de criar células como o Remix Ensemble, o Remix Orquestra ou o Estúdio de Ópera. Foi dele o projecto artístico. Foi até dele a escolha do arquitecto holandês Rem Koolhaas, autor da obra, que haveria de ser galardoado em 2000 com o Pritzker. Pela crença na Casa da Música, "contra a vontade da família e amigos", Pedro Burmester largou a carreira musical e o piano, os concertos e os discos. Mas os novos gestores tinham dificuldade em ver nele o mentor do projecto, quanto mais a alma. E Rui Rio parecia decidido a não facilitar a vida a quem tivesse ambições culturais. As ambições de Bumester não eram egocêntricas, eram puramente democráticas, o que longe de ajudar só piorava.

"Tive muitas decepções na política", confessa o pianista numa tarde de sábado, no mesmo camarim da CdM onde se refugiava quando no passado precisava de fumar. “Encontrei muitas pessoas que usam a causa pública só para servirem a sua carreira pessoal”. Mas também conheceu o outro lado, “pessoas sérias, dedicadas, que fazem coisas pelos outros”. Para ele, são essas pessoas que contam. "Só faz sentido o trabalho para o bem comum. Fazer coisas só para nós é ridículo. Um dia deixamos de existir, e se o que fizemos não servir para os outros, então não serve para nada".  Era esta convicção que o fazia correr. 

Em 2003, em pleno e aceso divórcio dos agentes culturais com a autarquia, o pianista e então administrador da CdM, alertou numa entrevista ao JN, para o risco que Rio representava. "Vai transformar o Porto numa aldeia", antecipou. Rio ofendeu-se, exigiu a sua demissão. "Se for sério, demite-se. Depois, pode fazer as críticas que quiser", ripostou. Burmester acabaria por ser afastado, tal como o resto da administração. Mas deixou uma promessa: "Enquanto Rui Rio mantiver a sua política cultural, ou a ausência dela, não toco na cidade". Há palavras de honra e palavras de circunstância. Passaram dez anos e Burmester manteve intacta a honra cumprindo o que hoje designa como “um boicote que infelizmente não serviu para nada”. 

Rio nunca cedeu. Burmester também nunca mudou de opinião, mesmo hoje, à distância, sobre o ex-presidente da Câmara do Porto. "Terá sido um excelente contabilista, embora me pareça que gerir bem as finanças é obrigação de qualquer autarquia". De resto, tem dificuldade em reconhecer nele o salvador da Pátria que, nos últimos tempos, e de forma cada vez mais efervescente, tantos parecem ver. "Acho estranhíssimo que se consiga pensar nele como solução para Portugal, caso o estado do país piore. Mas Portugal sempre foi historicamente assim, sempre gostou desses homens providenciais que fazem bem as contas, e que parece que sabem o que é melhor para os outros. Já tivemos vários desses: Salazar, Cavaco Silva enquanto primeiro-ministro e Rui Rio têm perfis semelhantes", classifica. E insiste que não se enganou. "Aquilo que Rui Rio provou ser em doze anos foi o que eu achava em 2003". Ou seja? "É limitado para o cargo que ocupou".

"Rui Moreira vai ser um excelente presidente"

Em Abril de 2005, quando a CdM foi finalmente inaugurada, Burmester não estava lá. Voltou em 2006, como director artístico, mas nunca subiu ao palco. "Mesmo que a política cultural tivesse mudado, nunca iria programar-me a mim próprio", diz, sem surpresa. Um ano depois, quando o Porto celebrava o 11º aniversário como Património Cultural da Humanidade marcou presença no salão Árabe do Palácio da Bolsa. Especulava-se se deixaria cair a sua palavra. Não deixou. Executou a peça "4'33" do compositor norte-americano John Cage. Quatro minutos e meio de silêncio. Deixou a Casa da Música em 2009, raras vezes foi visto na cidade, e obviamente nunca no palco.

A sua última aparição pública na cidade enquanto pianista foi no Dragão, em 2003, pendurado numa grua. O Futebol Clube do Porto (FCP) inaugurava o novo Estádio onde hoje tem lugar cativo - e fé. "O FCP preenche aquela coisa que não tenho, que é a fé. Não tenho fé, não sei o que é. Não digo que não sou uma pessoa religiosa, que sou, ou pelo menos entendo a dimensão religiosa, até porque ela só enriquece (não a ter é ter seria ter uma lacuna qualquer), mas a fé não sei o que é.  O Porto preenche esse vazio desde pequeno."  Essa fé pode salvar o campeonato deste ano? "Para já, o que me preocupa não é o resultado, mas repetição dos erros, Espero quem está à frente continue com o mesmo discernimento que tinha, se não ainda fico mais preocupado." Pinto da Costa é Deus para a maioria dos portistas. Burmester não vai tão longe. 

Talvez o país não perceba, mas o Porto sabe-o: o concerto de Pedro Burmester, hoje, na Casa da Música, não é só mais um concerto. Ele diz que é. A fazer de conta. "Vou fazer de conta que é, para não ficar nervoso". Mas sabe que não é. Como poderia ser só mais um concerto se é o primeiro na Casa que foi "a grande aposta" da sua vida, e na qual nunca tocou? Como poderia ser só mais um concerto se representa o fim do exílio artístico que se auto-impôs na cidade que é a sua? Não é só mais um concerto, é o concerto que faltava. "Digo sempre que toco igual, seja para dez pessoas, para cem ou para mil. Seja onde for, tento sempre fazer o meu melhor. Portanto, é só mais um". Não é, pois não? "Aqui entre nós", sorri, "não é. Mas vou fazer de conta que é".

E se fizéssemos de conta que no dia do concerto era Rui Rio? "Se eu fosse Rui Rio", continua Burmester, a rir, no intervalo do ensaio, "compraria bilhete para a primeira fila da sala, assistiria ao concerto e faria questão de me cumprimentar no fim". Burmester tem humor, Rio precisaria de fair-play. Será fácil adivinhar a sua ausência. Estará presente Rui Moreira, presidente da Câmara há 48 dias, que elegeu a cultura como uma das três prioridades para o Porto e cuja vitória fez o pianista feliz. "É cosmopolita, é do Porto e gosta muito do Porto. Sendo de Direita gosta da Esquerda, o que não deve ser fácil de gerir. Apresentou-se como independente porque consegue ter equidistância em relação às coisas. Está atento às pessoas e tem sentido de equilíbrio e correcção na maneira como olha para elas, que é o mais importante". Pedro Burmester acha que o independente ganhou porque "as pessoas sentiram isso". E tem quase a certeza que não vão enganar-se. "Tenho quase a certeza que vai ser um excelente presidente da Câmara". A boa impressão de Moreira é anterior às eleições. "Lembro-me até de ter indicado o Rui Moreira para presidente da fundação da CdM, teria sido um belíssimo presidente".  

Declaração de interesses: Pedro Burmester vive no concelho da Maia, é aí que vota. Não fez campanha por Rui Moreira, foi assediado por outras candidaturas para o fazer, mas não apoiou publicamente ninguém.

Acompanha a política nacional, o que hoje significa estar também atento às políticas europeias. E não embarca na aversão nacional à Alemanha. "A ira sobre a Alemanha é uma ira sobre uma certa política que a Alemanha neste momento representa. Temos que saber distinguir as coisas. Nada me move contra o povo alemão ou contra qualquer povo. Pode mover-me contra as políticas que a Alemanha impôs, e que quase que diz: "nós produzimos muito e bem, e quem não produz muito e bem tem que ser penalizado". Nisso estou em desacordo. Mas tenho uma afinidade imensa com a cultura alemã e em grande parte com a música e a cultura, não deixa de ser o espelho de um povo. Quem produziu Bach e Mozart e Beethoven e Goethe e e Kant e Heidegger e Schopenhauer tem de ter um lado muito bom. Agora, uma coisa é a cultura, outra é o povo e outra são as políticas. Não misturo tudo no mesmo saco".

De resto, Pedro Burmester é um optimista confesso e não há crise ou o Governo que lhe derrube a esperança. "Se olharmos retrospectivamente para o mundo, para o país ou para o nosso canto, acredito que as coisas têm melhorado... mesmo se às vezes andam para trás. Não acredito que vá acabar o Estado Social, nem acredito que venham aí ditaduras. Posso ser ingénuo e estar enganado, mas acredito que se vierem aí ditaduras, as pessoas vão saltar, vão para a rua lutar. Os tempos são difícieis, é verdade, mas eu sou optimista", confirma.

O pianista moral

Pedro Burmester nunca parece o que não é. É tímido e idealista, de uma humildade à prova de bala, rara simplicidade, é demasiado normal para quem tem um talento superior e inescapável. Terminou o Curso Superior de Piano do Conservatório do Porto com vinte valores, surpreendeu professores, correu mundo, rendeu públicos. Tem mais de mil concertos no percurso, mas não gosta de pensar em si como "artista", nem de alimentar a aura que sobre ele se desenhou. "Gosto de pensar em mim como um homem que dorme bem, que tem consciência tranquila, que tenta sempre fazer o que é correcto e justo. Não quero mais do que isso". 

Completou 50 anos em Outubro, mas fez questão de não os celebrar. "Disse, na brincadeira, que se chegar aos 60 farei festa. Porque os 60 são uma idade respeitável. Agora, aos 50, não se é velho nem novo, acontece-nos só aquilo que vem nos livros: olhamos para trás e reflectimos mais, discernimos melhor".
Olhamos para trás e encontramo-lo num berço da alta burguesia portuense. Não o renega, mas é na Esquerda que encontra identidade. "A Direita desconfia do ser humano, ou acha que ele tem sempre um lado mau que prevalece, ou entende que é preciso enquadrá-lo de alguma forma, ou acha que se alguém tiver de ficar para trás, paciência". Ele está nos antípodas deste princípio. "Acredito que o lado bom das pessoas, quando existe, prevalece sempre. E não acredito em ninguém que impõe quem são os melhores".

Nunca planeou a vida, muito menos a carreira. Mas continuando a olhar para trás, descobrem-se ciclos de dez anos. Foi aluno de Helena Sá e Costa (1913-2006) durante dez anos, deu o primeiro concerto aos dez anos, gravou um disco com Schubert e Schumann em 2010 depois de dez anos sem gravar disco nenhum. E ficou dez anos sem tocar no Porto. "Calhou. Nunca fiz planos. Nunca", insiste com a convicção de que "desprendimento é uma virtude ou pelo menos uma vantagem, é liberdade". "Há alturas da vida em que chegamos a cruzamentos, temos várias estradas e fazemos opções, mas são sempre opções de momento. Não olho para o fim da estrada. O que é que eu gostava daqui a dez anos? De me sentir bem comigo próprio, de fazer o que deve ser feito, fazer as coisas certas."

Não sabe se os últimos dez anos passaram depressa ou devagar. Sabe que foram "anos bons". Foi pai três vezes: de Júlia, que tem dez anos e toca violoncelo, de Ricardo que tem oito anos e toca piano, de Maria Inês, que herdou o nome da avó, e tem apenas oito meses. Sabe que foram anos de aprendizagem. "Ter estado do lado de lá, ensinou-me a gostar mais do público. Ainda sinto desconforto a pisar o palco, é uma coisa muito exposta, intrusiva de alguma forma, mas a relação pacificou-se, hoje sou mais generoso em palco do que era". Sabe que foram anos de redescoberta. "Há uns anos dizia que não me faria grande confusão fazer outra coisa que não a música, não me via dependente do piano. Hoje sei que, mesmo quando for velhinho, a música, o piano, vão lá estar sempre". Talvez o ame mais agora, reconhece. Talvez porque perdas irreparáveis o elucidaram sobre quem é.

"No último ano e meio perdi a minha irmã, o meu pai e a minha mãe". E não fora a persistência desta mãe e talvez ele tivesse sido jogador de futebol. "A mãe não me deixava jogar à bola para não magoar as mãos", recorda a rir. Esta mãe que, já doente, chegou a acreditar que hoje estaria presente no seu concerto inaugural na CdM. Compensou-a ensaiando perto dela. Hoje, ela estará lá sem estar. "A morte da minha mãe mudou a minha relação com o piano. Ela gostava tanto do que eu fazia, entregou tanto de si para que eu e os meus irmãos - Gerardo é pintor, Alexandre é arquitecto, Rita é fotógrafa - fizéssemos aquilo que fazemos, que seria ingrato não lhe agradecer. A forma que tenho de agradecer é continuar, é tocar e gostar de o fazer".

Pedro perdeu ainda Bernardo Sassetti, que com Mário Laginha completava o projecto "Os três pianos", mas nunca esmoreceu. "Tento ver as perdas como luzes que ficam cá dentro, estão acesas em nós e às vezes ficam mais fortes pela ausência. Porque são pessoas que nos deram tanto, que deixaram tanto, que não desaparecem. O Bernardo é um caso desses, nunca vai envelhecer, vai ser sempre na minha memória o que era".

Pedro Burmester é uma espécie de homem moral de que falava Darwin, movido por forte sensibilidade e imbeliscável ética, que defende contra tudo a igualdade entre todos, mesmo que isso implique o seu sacrifício pessoal. Talvez por isso saiba que nenhuma guerra foi perdida. "Voltava a fazer tudo o que fiz. Não estou zangado com ninguém, ninguém me deve nada. Não guardo nenhum rancor, nem de Rui Rio. E a Casa da Música está aqui, existe. Portanto, só pode ter valido a pena." E a Casa é como sonhou? "Terá sempre um handicap: é grande. Uma coisa grande tende a parar, é como um  barco grande no mar: para mudar de rumo ou para reagir, demora muito tempo. Acho que a casa deve estar atenta para não ficar no mesmo sítio. Não pode reiventar-se em cada ano, mas deve estar atenta e se calhar já não falta muito para vir o tempo em que deve dar uma voltinha".

E se um dia o desafiassem para outra empreitada, aceitava? "Avaliava", surpreende. "Se o desafio da CdM fosse hoje, provavelmente diria que não porque não me sentiria capaz de o fazer. A vantagem de ser mais novo é ser inconsciente", diz, sempre a rir. "Fui um bocadinho inconsciente, não fui?", pergunta. E responde. "Correu bem. A minha crença era tão grande que levou tudo à frente. Havendo essa mesma crença, se um novo desafio tivesse características semelhantes, acho que não diria que não".

Porque era o concerto que faltava, o recital de hoje é tão simbólico que será fácil antecipar o desfecho. A sala que ele baptizou Suggia (em homenagem a Guilhermina, violoncelista), numa interminável ovação, que numa palavra quererá dizer apenas: obrigada. Talvez a cidade não lhe deva nada, talvez só essa palavra.

[Foi exactamente assim, sala cheia, interminável ovação, cinco encores, uma corrente de emoção, um obrigada colectivo dito de pé, num momento em que tudo naquela Casa voltou mesmo a fazer sentido.]

PROGRAMA:
J.S. BACH - Partita nº 6, BWV 830 
FRANZ LISZT - Bênção de Deus na Solidão 
FERNANDO LOPES-GRAÇA - Variações sobre um tema popular português 
GYÖRGY LIGETI - Musica Ricercata 

Sem comentários:

Enviar um comentário