sábado, novembro 23, 2013

Rui Nunes: Uma viagem no Outono


"O massacre concentrou-se em pequenas coisas. E sobrevive, nas cansadas viagens urbanas. Sob os olhos colados de sono, a mão esquecida pesa ou afasta, às vezes cai, abandonada. Um cão enrola-se debaixo de um banco: as palavras têm aqui a aspereza de um vidro riscado. Estação a estação fica mais nítido o vómito nas janelas. E cada minuto recua até encontrar a sua explicação.
Quem não conhece estas manhãs, duvida:
somos todos o passado clandestino dos felizes, quando o rio era um brilho entre salgueiros, um desvio incerto da infância.
(...)
façam com as palavras aquilo que quiserem,
desfaçam-nas:
uma palavra desfeita não magoa,
uma palavra inteira rasga a boca,
uma palavra inteira é a certeza
de outra palavra inteira, a corda fina
que vai da trave à terra, do caibro ao vento
de uma janela aberta:
a imprecisa
minúcia da poeira
(...)
todas as verdades têm
a solidez de um desabamento
(...)
Uma vezes as palavras partem-se,
outras, inteiras rejubilam,
onde estão os cães que ladram em qualquer intimidade?
em que praia desembarcará o medo rastejante?
Em que toca o cimento engolirá alguma décadas
até não apodrecer?
O futuro onde estamos tem a iníqua alegria dos sacanas."

[Nem Saramago nem Lobo Antunes. Rui Nunes será sempre o meu Nobel da Literatura português. Este é provavelmente o seu último livro.]

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