quarta-feira, janeiro 06, 2010

A carta II

De onde menos se espera, a lição de humildade. Deitámo-nos com aquela sensação de cobardia que invade quem evita olhar nos olhos alguém só para não ter de lhe dizer uma coisa má. Ou para não ter de fazer inversão de marcha numa decisão que se pretende manter como definitiva. Deitámo-nos assim, a evitar olhar para o Lobo Antunes, ele mesmo ali ao lado a olhar para nós, a Memória de Elefante presa por um capítulo, os corredores daquela espécie de sanatório a implorarem para não os deixar agora, logo agora. Deitámo-nos a fingir não conhecer o senhor Stendhal, ele ali em fila de espera, nós a fazermos de conta que não lhe tínhamos prometido já ter inaugurado O vermelho e o Negro apresentando-nos finalmente a Julien Sorel, o anti-herói romântico que, dizem-nos, tanto há-de fazer-nos chorar. Deitámo-nos portanto com aquele travo a traição: trocámos os bons romances por uma história furtiva, cheia de regras de trânsito, distâncias e afins. E isso, a substituição, pesa-nos na consciência, irrita-nos, porque nos subtrai de um prazer maior. Porque temos uma vida maior dentro da cabeça do que fora dela. Porque claramente temos um défice de realidade.

Depois, acordamos cedo e, apesar da calma, sentimos a adrenalina de quem pratica um qualquer desporto radical, quase reclamamos uma taça pela proeza, tão rara que era a vida antes do meio-dia. Mas percebemos logo, quando entramos na sala de aula, a nossa imbecilidade. Todas as pessoas ali são mais novas - todas têm o triplo da responsabilidade. Não são os livros adiados que lhes pesam; é a vida, a sobrevivência. Todas, ou quase todas, já deixaram os filhos na escola, já adiantaram o almoço para os maridos, uma delas já ganhou parte do dia e ainda só eram dez horas. Ficamos a ouvi-las tagarelar, uma tem a quarta classe: "Posso não ter tanta cultura como quem tem o 12º ano, mas sou muito capaz de fazer isto". E ficamos a pensar no termo de comparação, que termina no fim da escolaridade obrigatória. Percebemos que estamos noutro campeonato. E não é um campeonato mais rico, o nosso.

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