segunda-feira, agosto 22, 2005

António Barreto

"Somos pequenos,
pobres e incultos"

António Barreto recebe depois de amanhã prémio da Fundação alemã Alfred Toepfer F.V.S.Crítico feroz do sistema político, pautado por excesso de demagogia, e do actual primeiro-ministro, António Barreto garante que "Santana Lopes é um homem que não sabe o que quer fazer." À Esquerda, o panorama não será melhor. "Não sinto uma força determinada e programática no Partido Socialista de Sócrates". Seguro de que o diagnóstico do país não é favorável, o sociólogo aponta a justiça como a primeira reforma urgente a pôr em curso. Na véspera de receber o Prémio Montaigne, destinado a consagrar um pensamento supranacional e de esforços humanitários, António Barreto, defensor reconhecido de uma Europa plural, confessou encontrar na adesão da Turquia à União Europeia o travão para o federalismo.
(Entrevista de Helena Teixeira da Silva e António José Teixeira publicada no Jornal de Notícias a 23 de Outubro de 2004)

O prémio Montaigne acrescenta-lhe o quê?
Sabe quem ganhou o primeiro prémio Montaigne? O homem que mais admiro no pensamento europeu, Raymond Aron.É uma enorme honra, que não tenho a certeza se mereço. Desde que regressei a Portugal - vivi 12 anos na Suíça -, a minha obsessão, do ponto de vista de estudo, foi sempre a sociedade portuguesa.Mas a natureza deste prémio não seria reconhecer alguém que se ocupa de um assunto particular, nacional; ele fala de património cultural europeu e de tradição europeia. A Europa que eu gosto é a que reconhece as culturas.
Naturalmente, não precisava ter vivido na Suíça para se sentir europeu, mas foi com essa experiência que criou a ideia da Europa mais plural?
Não concordo. Se há coisa, na minha vida pessoal, que agradeço, foi ter podido passar mais de uma década lá fora. Fez-me perceber o que gostava e o que não gostava em Portugal, e ajudou-me a perceber os outros. Defendo uma Europa plural, que aceita quem se ocupa mais da sua tradição cultural nacional, não sendo nacionalista - o que não sou em nenhum grau.

O objecto do prémio prende-se com o seu pensamento político, que publica semanalmente, ou com o estudo sociológico que exerce na universidade?
O júri falou simultaneamente do estudo da sociologia e da minha colaboração frequente nos media, referindo a minha independência de espírito. Talvez não saiba que os momentos mais dramáticos da existência de alguém é tentar fazer duas coisas que não são completamente compatíveis.

Há um significado acrescido por Montaigne ser um dos pensadores que mais admira?
Tem. Sendo francês até ao tutano, e tendo sido presidente da Câmara de Bordéus, que é a cidade do vinho, conseguiu o que nunca conseguirei: elevar-se acima da contingência da circunstância social e cultural da sua vida. Tentou manter-se ligado à natureza humana. É um esforço excepcional. Eu faço o contrário, tenho uma costela positivista.

Têm em comum o cepticismo?
Sim. Mas se há alguma coisa que olho como identificação é quando ele viaja, em espírito ou na realidade. Percebe-se nele o fundo comum aos homens europeus: pluralidade radical. Esta é a minha Europa; não é o federalismo europeu, que destrói a pluralidade das culturas. A Europa que está em construção pode ser travada com a não aprovação da Constituição. Ao contrário do que se pensa, as coisas nunca são irreversíveis na vida: as nações vão por certos caminhos e de repente podem fazer marcha atrás.

Essa marcha atrás não é a posição em que já estamos, após o alargamento, o 11 de Setembro, a guerra do Iraque...
É possível que se tenha começado uma fase nova. Ao contrário de quase toda a gente que conheço, sou favorável à adesão da Turquia à União Europeia (UE).

A Turquia pode ser o travão?
Se entrar, significa que a Europa federal não se fez.

Como deve ficar a Europa? Tem que ser uma UE federal ou há alternativa?
Dentro de uma Europa, que é quase o continente europeu todo, não vejo por que razão não poderá haver, dentro dos 25 ou dos 30, novas formas de associação parcelares. Se houver uma tendência para que os países escandinavos estabeleçam entre eles algo mais do que com os outros, como já acontece com a moeda única, não cria necessariamente uma contradição com os restantes países. Por isso, penso que a Constituição deveria ser recusada. Tenho esperança que haja povos que a bloqueiem. A Constituição estabelece um quadro de fixidez que será depois extremamente difícil de corrigir.

É o primeiro sociólogo português a receber este prémio. A sociologia é um instrumento tido em conta para a acção política?
Infelizmente, a investigação sociológica informa muito pouco a decisão do poder. Quando estive na vida política, houve importantíssimas decisões tomadas sem que se tivesse em conta a informação existente. Foi o caso da legislação sobre as propinas, uma decisão tomada pelo faro. A maior parte das decisões continuam a ser faro. Há três exemplos importantíssimos: agricultura, pesca e floresta. Até 2003 funcionava-se com os resultados para a população portuguesa do Censos de 1991, que foi publicado em 93, corrigido em 95. Entretanto já havia mais meio milhão de pessoas em Portugal. No domínio da Segurança Social, não existe estudo apurado da evolução demográfica, dos residentes, dos naturalizados e dos estrangeiros. No orçamento é a mesma coisa. Estou convencido que algumas das últimas decisões - benefícios fiscais, rendimento mínimo garantido - são tomadas exclusivamente em função de uma margem pequeníssima de liberdade de acção que tem o ministro das Finanças, porque o orçamento está apanhado com a função pública, a dívida e as transferências sociais.

A imagem que o espelho nos devolve enquanto povo tem-nos levado a melhorar ou à depressão?
Talvez tenha ajudado mais à depressão. Nestas três décadas houve uma euforia. Portugal foi promovido a país de primeira, aderiu à UE, criou o Euro, passou a ser respeitado, deixou de ter inimigos, deixou de haver países que cortassem relações com Portugal. O país terminou a guerra, descolonizou, criou a democracia. É quase comovedor ver o que os portugueses conseguiram fazer nos últimos 30 anos. Fizeram de Portugal uma sociedade plural sem que houvesse sequelas trágicas. Nos diagnósticos, o resultado parece positivo, mas continuamos a deprimir com facilidade. Primeiro, porque os outros também cresceram. Depois porque a euforia é como as paixões: cegou o facto de sermos pequenos, pobres, periféricos, incultos. Não temos riqueza importante: nem agricultura, nem petróleo, nem mineral. A euforia criou excesso de expectativas. E o país não chega lá. O fim da euforia começou nos últimos dez anos com a percepção de que tudo é muito mais lento. Aquilo que se tinha conseguido é insuficiente. Redescobrimos a nossa desorganização, a nossa falta de racionalidade, a nossa incultura profundíssima, a nossa insuficiência na formação. Isto é muito pessimista? Acho que não, é uma tentativa de realismo. Há dias, estava a ler as entrevistas de Medina Carreira e de Silva Lopes, que diziam: "Parece que não há ponta por onde pegar." É melhor que nós saibamos onde estão as pontas para tentar pegar nelas.

Encontra alguma ponta?
Primeiro, é preciso acabar com a demagogia. Há muitos anos que não vejo os políticos portugueses mostrarem o diagnóstico exacto da realidade portuguesa. O défice continua, a produtividade não sobe o que deve, o défice externo continua, o défice público, apesar das engenharias, das aldrabices orçamentais que se fazem, continua. Porque é que os políticos não informam melhor, não fazem a pedagogia do diagnóstico, que é de desastre quase eminente? Na política, as minhas duas únicas esperanças limitam-se a alterar o sistema eleitoral, que condena a sociedade política, a participação e o interesse político. E obrigava a que todos os ministros fossem eleitos [deputados]. Depois, a crise na justiça, que faz com que a sociedade esteja sistematicamente votada ao improviso, à lei do mais forte. A justiça é o instrumento que moralmente mais contribui para a formação do cidadão. O próprio pilar da democracia é afectado pelo sistema judicial não funcionar. Não teremos cidadania nem justiça social se a justiça não for reformada.

Se Portugal avançou de forma imensurável nos primeiros 30 anos de democracia e ainda assim ficou atrasado, e se dificilmente conseguirá igualar esse ritmo de progressão, o futuro antecipa-se frágil?
Subscrevo. Portugal chegou a crescer num só ano 11%, no tempo de Salazar. Bagão Félix fica radiante se crescermos 1,4%. O futuro só poderá melhorar se se reformar a educação e a justiça.
Isto não se resolve em três anos.
Em 1992, dizia que o semi-presidencialismo era "mais fértil em conflitos políticos do que em equilíbrios institucionais" e que "no futuro, será pior". Hoje, continua a pensar o mesmo?
Continua a ser um sistema híbrido. O Presidente da República (PR) não depende só da personalidade, mas também do momento. O último gesto de Jorge Sampaio foi de primado parlamentar, na nomeação deste primeiro-ministro. Houve quem o acusasse de ser ilegítima e ilegal. Mentira. Eu teria feito o mesmo: nas actuais circunstâncias políticas portuguesas, prefiro sublinhar o lado parlamentar do regime. Jorge Sampaio criou uma tradição nova, que é o Governo sob vigilância. E já alertou para cinco casos, todos eles importantíssimos - educação, saúde, défice, despesa pública e justiça -, dando sempre um tom de vigilância apertada que quase obriga à acção. Não sei se vai dissolver; acho que nem ele sabe.

Sampaio já disse que este Governo é tão legítimo como qualquer outro...
Compreendo. Quer estar totalmente livre na sua decisão de dissolver, ou não, até Junho. Não quer que esteja presente a chantagem que o primeiro-ministro já fez, nem o contrário.

Já teve motivos para dissolver o Parlamento?
Tendo dado posse a este Governo, não creio que o que aconteceu até agora seja suficiente para fundamentar a dissolução. O último facto pré-político, o caso Marcelo Rebelo de Sousa, é muito grave, mas não tem relevância que justifique a dissolução. Os casos acumulam-se, é certo.

Defende a não dissolução, apesar de já ter dito, sobre o primeiro-ministro, que "não tem projectos, tem invenções"?
Sim, porque trata-se de dissolver o parlamento e não o primeiro-ministro (PM).

E se fosse possível manter o Parlamento e destituir o PM?
Agora é tarde. Em Junho teria sido possível. Jorge Sampaio podia ter dito: "Quero refazer o Governo com a vossa maioria parlamentar, proponham-me outro PM". A Constituição permite isso. O resultado das eleições aplica-se ao partido, não se aplica ao PM, que não foi eleito.

Belmiro de Azevedo diz que estamos perante um caso de regência...
É uma boa metáfora. O próprio Santana Lopes sente isso, considerando as vezes que repete que é legítimo, que é o partido mais votado, que era presidente da Câmara, e pela forma como já desafiou o presidente da República. O PS, na sua melhor tradição, só quer a cabeça de ministros, embora diga que o Governo é ilegítimo. Dentro do próprio PSD houve muita gente que pôs em causa a solução, o que também aumenta a ilegitimidade.

O congresso do PSD, em Novembro, poderá legitimar Pedro Santana Lopes?
Acho que não. Santana Lopes terá que viver com este défice de legitimidade até ao fim do mandato - se o mandato chegar ao fim. E como ele tem instinto político, estou convencido que, a partir daqui, vai tentar demonstrar que está a ser vítima de perseguição dos partidos, do Presidente, das instituições, dos seus adversários dentro do PSD. Pode precipitar a dissolução.

A sua vitimização poderá colher a simpatia do eleitorado?
Há, actualmente, na população, um sentimento muito avesso a esta solução política e a este governo - aliás, já em relação ao anterior. Um sentimento muito azedo que não passa só por razões económicas. A herança deste Governo é desagradável para muita gente. O facto de Santana Lopes ter andado no futebol, nas noites, nas discotecas, nas câmaras, na imprensa, na televisão, faz dele um senhor que está sempre a querer derrubar quem está, e a querer preparar-se para chegar a qualquer sítio. Não faz dele um homem com ponderação para estar depois de chegar. Não sabe o que quer fazer. Não sabe gerir. Pede aos ministros para gerirem o melhor possível.

José Sócrates, o novo secretário-geral do PS, poderá ser uma alternativa?
Não tenho muitas expectativas em relação ao PS daqui para a frente. Não senti uma força determinada e programática. José Sócrates e algumas pessoas da equipa dele foram quase mecânicos na utilização de "clichés", a começar pelas "Novas Fronteiras". Dizer que são uma homenagem a John Kennedy é um disparate. As novas fronteiras de Kennedy referiam-se às fronteiras da pobreza, da intolerância. Numa altura em que a sociedade europeia e a portuguesa luta contra as fronteiras, há um senhor que vai pôr novas fronteiras. As fronteiras separam. Depois, o lado muito bem comportado de Sócrates, tudo cuidadosamente feito, com a música, o sítio, a posição, a forma, a cor, o design.

António Guterres também começou com uma imagem semelhante...
Guterres conseguiu em quatro anos o inesperado: ganhou tudo o que havia para ganhar em Portugal. Até ter ido embora daquela maneira. Não era previsível aquela fuga tão descarada.

É por este sucessivo abandono de cargos que fala num regime democrático senil?
Não é senilidade. Os dirigentes políticos só se dão conta do estado grave em que vivemos quando chegam ao Governo. O discurso da oposição, seja esta, seja a anterior, é ilimitadamente optimista. Tudo é possível. É possível gastar mais dinheiro, aumentar as pensões, os vencimentos, a função pública. Chegam ao poder e as coisas alteram-se rapidamente. As promessas de Durão Barroso mudaram radicalmente depois de ter sido eleito. Guterres fez algo muito parecido: só se deu conta nas vésperas da sua derrota autárquica - caso único na Europa, do estado do país. Quer dizer que o debate público é desfasado da realidade; é dominado pela demagogia. Grande parte dos media têm a informação fabricada. Hoje devem estar a receber recados todos os dias.

A coligação CDS/PSD faz sentido no futuro?
Não sei se sobrevive. A coligação tem duas experiências negativas: a europeia e a açoriana. No PSD vão surgir muitas vozes a contrariar a dinâmica coligacionista. Mas sem coligação não chegam lá. Esta Direita parece-me muito instável do ponto de vista político e programático. Pode haver uma pressão no sentido de fazer um só partido de Direita liberal, quebrando o PSD ao meio - algo que está no código genético há muito tempo -, o que não será vantajoso. A grande vitória política de Cavaco Silva foi ter eliminado a fractura dentro do PSD. Não creio que Santana Lopes seja capaz disso. Imagino que ele tenha vocação para reforçar o PSD da Direita.

Que papel está destinado ao próximo PR: um papel mais forte na condução política ou menos interveniente?
A minha preferência era que a evolução fosse de cariz parlamentar. A minha previsão não é a minha preferência. A situação política e económica não vai melhorar nos próximos dois anos. Os factores de descontentamento vão aumentar. Não vejo que algum dos partidos esteja disponível para, responsavelmente, diminuir a demagogia. O próximo PR acabará por ser mais intervencionista, acentuando o carácter presidencialista.

Seria capaz de colocar o lugar de PR no seu horizonte?

Não. Estou retirado da vida política definitivamente. Tem a ver com a minha idade, com o que quero escrever, estudar, publicar. Fui convidado pela RTP para fazer a continuação dos estudos sobre a situação social em Portugal, transpondo-os para programas televisivos. Dá-me mais prazer fazer isto do que regressar à vida política.

Deixou de considerar a sua impaciência para a vida política um defeito?
Não. Mas a vida política exige certos atributos pessoais, que não tenho. O mais importante na política é saber estar no sítio certo, o que não é um acaso. Apesar da minha visão céptica sobre os destinos mediáticos da política portuguesa, sou incapaz de dizer frases como: "a política é o pior da humanidade". Não é verdade. É o melhor. Todas as qualidades humanas estão lá. Não deixo de escrever sobre política porque me interessa mesmo. Consegui foi interessar-me sem me interessar estar na vida política.

É outra forma de estar activo?
Mentalmente activo, sim. Não estou na vida política activa, por ter tomado uma decisão racional, ou porque me fartei. Fui derrotado. O que tentei desempenhar em determinados momentos falhou. A primeira derrota com Mário Soares, em 1977/78. Depois de ter feito o que fizemos, na reforma agrária e da política agrícola, ele alterou a sua táctica, para o ano seguinte, que era contrária da minha.

Mas o tempo deu-lhe razão...
De que vale ter razão 20 anos depois? Na vida política não serve para nada.

Depois disso ainda criou o movimento dos Reformadores...
Algumas das ideias defendidas pelos reformadores de então fizeram caminho. A revisão da Constituição, a presença acrescida do Estado na vida social, uma presença muito reduzida do Estado na vida económica, a privatização das actividades económicas, isto fez caminho, ainda que com protagonistas diferentes.

Ou seja, verdadeiramente não foi um derrotado. Sente que chegou antes do tempo?
É possível, mas não tenho medo da palavra derrota. A ideia mais nobre de uma reforma agrária é tirar a quem tem mais para dar a quem tem menos. O meu destino, na altura, foi impedir que um grupo limitado do PCP, e do seu sindicato do Alentejo, ficassem proprietários de um milhão e meio de hectares. Mas a reforma agrária e a revolução política no Alentejo tinham de tal maneira dividido a sociedade que já não era possível. Cheguei a más horas, fiz uma reforma ao contrário do que devia ser, e finalmente fui desautorizado pelo chefe de Governo, que era líder do partido de que eu era membro. Saí meses depois do PS, sendo que voltei sete anos depois. E voltei a sair.
"Universidade não é um direito"
Há 400 mil alunos no Ensino Superior, o que significa que se massificou. A Carta de Bolonha, a ser aprovada, aproxima-nos ou afasta-nos do nível da União Europeia?
A melhor intenção da Carta de Bolonha é permitir a circulação de estudantes, de professores, nos centros de investigação. A mentalidade democrática acha que ela existe para uniformizar a universidade institucional, e isso dará cabo das melhores intenções, porque irá destruir a autonomia de cada instituição. Quanto à massificação, não acho que a universidade seja um direito. Deve ir para a universidade quem souber, quem quiser e quem puder. O estudante precisa de aprender a investigar, a raciocinar, e tem que cumprir os seus deveres. Isto é, fazer o curso de quatro anos, em quatro ou cinco. E não passear eternamente nos corredores, como fez até agora. A lei das prescrições existe desde 86, mas em duzentas e tal escolas, só três a aplicam.
Que ensino deve ser um direito de todos?
A escolaridade obrigatória. A partir daí, é mérito. Uma universidade à qual toda a gente tem direito nunca desempenhará as suas funções de vanguarda da ciência. Acaba por não fazer ciência; faz ensino.O mais importante para se ser bom cientista é ter cultura geral, saber pensar e saber estudar. Não é ter diplomas profissionais.Infelizmente, é mais um caso de demagogia em Portugal. Agora vão-se criar duas espécies de universidades, para dar o título.Todos os politécnicos querem ser universidades, o que quer dizer que não haverá boas universidades, nem bons politécnicos. É a eterna doença do sistema educativo português: uniformiza em vez de permitir que cada escola tenha a sua organização.
Essa autonomia, adaptada às escolas secundárias, poderia evitar os atrasos na colocação dos professores?
Claro. O facto mais infame da vida política portuguesa recente foi a colocação dos professores. Cheguei a ficar céptico em relação à incapacidade de reacção dos portugueses. Estão anestesiados.O que aconteceu é absolutamente selvagem. Não conheço nenhum sítio do mundo onde isto possa acontecer. Creio que uma das causas do infortúnio deste Governo será isto, porque deixa uma mossa que não se apaga.
Acredita na reforma da universidade?
Não tenho ilusões. Nem os governos nem os reitores o farão. A minha esperança é que um Governo aceite que cada universidade tem o seu próprio modelo de gestão. E que, ao lado de uma universidade onde contratam o director, só aceitam doutorados, não aceitam assistentes, e onde os professores não faltam, haja uma que gosta mais da bandalheira. Ao lado de uma universidade que se quer especializar na investigação, haja uma que quer fazer ensino de massas. Se houver universidades autónomas, acredito que possa haver universidades boas e excelentes. Reforma global não acredito.
Passará a haver universidades de primeira e de segunda?
E de terceira. Nos melhores países do mundo é assim.
"Manipulação é tão nefasta quanto a censura"
O espaço público de informação tem suscitado alguns casos polémicos.Estamos na iminência de voltar à censura?
Por causa da opinião pública e de uma parte importante da classe jornalística, não acredito que haja censura. Mas suspeito que uma das prioridades do actual Governo, por se sentir ele próprio diminuído na sua legitimidade, seja concentrar a informação, manipulá-la por todos os meios, desde a sua sonegação até à compra de pessoas, e à chantagem com empregos. Tenho informação não comprovada em que há casos de manipulação na informação.
A manipulação é tão nefasta como a censura?
É. Mas não é igual. Defendo a ideia de um jornal com uma linha política - política, não partidária , sendo que é melhor ter do que não ter. Quando não tem, tem mas não mostra. Quando tem e afirma é melhor. Só é censura quando o jornal não advoga a linha política e depois altera o que o jornalista escreveu sem que haja modelo de referência.
Concorda com o ministro Rui Gomes da Silva que, ouvido pela AACS, falou de uma cabala montada pela comunicação social contra o Governo?
É espantoso. O natural seria que se demitisse imediatamente a seguir. O que disse sobre a democracia, a liberdade de expressão, o contraditório é tão boçal, que é de um homem que não sabe o que está a fazer. Armar-se em vítima só pode ser inspiração do primeiro-ministro.

Perfil
Idade: 62 anos
Naturalidade: Foz do Douro, Porto
Formação: Doutorado em Sociologia pela Universidade de Genebra, Suíça
Percurso político: Foi deputado à Assembleia Constituinte e à Assembleia da República. Foi secretário de Estado do Comércio, ministro do Comércio e Turismo, ministro da Agricultura e Pescas
Trabalho: Sociólogo, investigador, professor universitário em Lisboa, e cronista semanal do diário "Público".
Paixão: Douro e fotografia
Viagens: De estudo: Argélia, Guiné-Bissau, Oxford, Angola, Bruxelas, Açores. Exílio político: de 1963 a 1974 viveu em Genebra, na Suíça.
Prémio Montaigne: Ana Espírito Santo, cientista política, licenciada pelo ISCTE, é a figura escolhida por António Barreto para estudar durante um ano, na Alemanha. A concessão de uma bolsa de estudos, distribuída por 920 euros mensais, está consagrada no prémio Montaigne, atribuído desde 1968, no valor de 20 mil euros.

Carlos Lopes Pires

"Antidepressivos
aumentam suicídios"

"O aumento da venda de antidepressivos nos últimos anos, em Portugal, tem a ver com a relação entre o Estado e a indústria farmacêutica", acusa Carlos Lopes Pires, psicólogo clínico. Em entrevista ao JN, o docente universitário muniu-se de vários estudos americanos para demonstrar o perigo do uso indiferenciado dessas substâncias. "Os antidepressivos não são inócuos. Já morreram pessoas intoxicadas por tomarem Prozac". O médico alerta ainda para os efeitos desconhecidos de uma medicação que pode induzir à violência, ao suicídio e ao homicídio. "A prescrição de antidepressivos em bebés aumenta 50% o risco de suicídio".
(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 9 de Abril de 2005)
O aumento de 45% no consumo de antidepressivos verificado nos últimos anos significa que não existe critério de prescrição?
Significa que não há prescrição com base científica. Embora os antidepressivos sejam utilizados na depressão, a verdade é que são a primeira escolha do ponto de vista psiquiátrico para uma vasta gama de situações. Diagnostica-se a depressão com muita facilidade. Pessoas que estão tristes ou a reagir a uma perda ou fracasso, são consideradas deprimidas.

Essas situações devem ser combatidas com medicação?
Não. Estudos epidemiológicos mostram que, em cada 100 pessoas deprimidas, 75% recupera passado três meses sem recurso a qualquer tratamento. Passado nove meses, o número aumenta para 90%.

Se a depressão não é uma doença, é o quê?
É um distúrbio. Quando, no contexto médico, se diz a alguém que a depressão é uma doença, está a dizer-se que existe uma alteração bioquímica no cérebro da pessoa deprimida, e que ela não vai conseguir combatê-la a não ser tomando uma substância que se diz restabelecer esse equilíbrio. Isso é uma falsidade científica. Além disso nunca ter sido provado, existem evidências que mostram que as razões que conduzem as pessoas à depressão são de natureza psicossocial. A depressão é uma resposta saudável aos fracassos da vida. Infelizmente, o uso extensivo de fármacos não permitir à pessoa lidar com as suas dificuldades.

Mas os médicos também cedem à pressão do paciente...
O paciente tem a sua parte de culpa. As pessoas querem resolver os assuntos com rapidez e sem esforço. A tolerância à dor é muito baixa. Estamos na época pós-moderna do hedonismo como fim em si mesmo. Não difere da lógica da tomada de ganzas, heroína ou comprimidos para a cabeça, para dormir, para a ansiedade. É uma espécie de cosmética: tomamos coisas para nos sentirmos bem.

Apesar dos antidepressivos não serem vendidos sem receita médica, é fácil adquiri-los. Não deveria haver uma fiscalização mais apertada?
O aumento da venda de antidepressivos nos últimos dez anos tem a ver com a relação entre o Estado português e a indústria farmacêutica. Primeiro, passaram a ser comparticipados. Depois, foi criada uma portaria que permite a qualquer médico prescrever psicofármacos. Finalmente, o aparecimento dos genéricos permitiu que os antidepressivos passassem a ser produzidos a preços mais baixos. Existem interesses extra saúde e é importante discutir até que ponto a prescrição extensiva destas substâncias não constitui um problema de saúde pública. Os antidepressivos não são substâncias inócuas. Já morreram pessoas intoxicadas por tomarem Prozac.

Mas o Infarmed prevê que a depressão possa representar, em 2020, 5,7% das doenças...
Se é verdade que a depressão está a aumentar, é também verdade que os fármacos propiciam esse aumento. Antes do aparecimento do Prozac, quase se pensava que a depressão não existia. Os cálculos eram de cinco para um milhão. Foi a necessidade de o vender que levou à realização dos estudos de natureza epidemiológica. Percebeu-se aí que a depressão tinha uma prevalência muito maior. Hoje atinge 20%. Em Espanha há estudos que mostram que mais de 30% dos acidentes rodoviários são provocados por ingestão de antidepressivos.

O ano passado foi publicada uma carta aberta da Alliance for Human Research Protection (Aliança para a Protecção da Pesquisa Humana), acusando o Instituto Nacional de Saúde Mental dos EUA de encorajar o uso de antidepressivos nas crianças. Em que circunstâncias é que isso se justifica?
Neste momento, nos EUA existem associações médicas preocupadas com isso, porque se tem observado a prescrição massiva em bebés.

Isso condiciona a vida futura desses indivíduos?
Claro. Por isso é que é tão perigoso considerar a depressão uma doença no sentido biomédico. Os bebés são tratados como ratos nos ensaios clínicos. Nenhum deles diz que está triste porque foi abandonado. Estão deprimidos porque comem ou mexem-se pouco. O potencial das substâncias é avaliado se puser os animais a mexer.

Um estudo da Universidade de S. Petersburgo defende que a prescrição de antidepressivos em crianças aumenta 15% o risco de suicídio...
Nalguns casos, essa demonstração chega mesmo aos 50%. Na Grã-Bretanha e na Alemanha os laboratórios são obrigados a escrever nas caixas que aumenta a probabilidade de suicídio.

Os efeitos secundários são subestimados?
As pessoas e os médicos têm tendência a minimizar a possibilidade de acontecerem coisas. Nos EUA calcula-se que, por ano, dão entrada nos hospitais 180 mil pessoas com episódios psicóticos desencadeados por anti-depressivos. Em Portugal, este tipo de episódio é habitualmente diagnosticado como distúrbio bipolar, porque os antidepressivos, devido à sua capacidade de estimulação, podem provocar três fenómenos: euforia, que é uma alegria sem objecto; hipomania, que é uma alegria ainda mais exagerada, possibilitando uma certa violência; ou mania, uma situação na qual a pessoa não tem qualquer noção das proporções.

Tem consequências tomar antidepressivos pontualmente?
Faz ressacas, e nem sequer provoca efeito. É tudo psicológico. Um antidepressivo precisa de várias semanas para resultar. E, mesmo assim, há um estudo norte-americano recente, que se debruça sobre todos os ensaios clínicos de antidepressivos aprovados nos EUA entre 1987 e 1999, revelando que cerca de 90% do efeito dos antidepressivos é placebo. Os dossiês dos laboratórios nunca são questionados. E se estiverem falseados? Nos EUA, houve um julgamento devido a um suicídio provocado pelo Prozac. Quando o técnico da acusação teve acesso aos dossiês do laboratório, descobriu que um determinado número de pessoas dado como tendo desistido do tratamento, se tinha suicidado. Os familiares confirmaram o falecimento no curso do tratamento.

Quer dizer que há efeitos secundários por demonstrar?
Os antidepressivos nunca foram provados como tendo qualquer efeito antisuicídio. Há situações contrárias: pessoas que estavam deprimidas, começaram a tomar um antidepressivo e surgiram-lhes ideias de suicídio. Contrariamente ao que se pensa, não há medicamentos que tenham sido ensaiados mais do que quatro meses. O Prozac foi aprovado com apenas quatro semanas de ensaio. É uma contradição: o tratamento farmacológico da depressão é de seis meses e um período idêntico de manutenção.

Entre 1998 e 2001 houve 10 incidentes graves com tiroteios em escolas americanas, nos quais morreram 105 pessoas. Metade das crianças que cometeu homicídio estava a ser medicada. Isso pode ilibar um assassino?
Nos países norte-americanos, tem-se constatado que pessoas que começaram a tomar anti-depressivos tornaram-se violentas ao ponto de cometerem homicídios. A discrição dessas pessoas é de alguém que está sob o controle de uma coisa qualquer. E isso pode fazer com que cometam graves delitos. Nesse sentido, pelo menos nos EUA, é uma atenuante e leva as pessoas e pedirem indemnizações aos laboratórios. Provando-se a relação de causa e efeito, a pessoa foi vítima de uma substância relativamente à qual não foi informada.

As fichas clínicas devem ser tornadas públicas ou viola os direitos das crianças?
As escolas devem ser informadas, até porque as crianças aparecem alteradas.Mas só o facto de se equacionar essa questão já quer dizer que as pessoas suspeitam que há qualquer coisa de errado com esta história dos antidepressivos.

Recentemente, um cidadão britânico encabeçou uma campanha para sensibilizar a União Europeia contra o uso de anti-depressivos, revelando que em Inglaterra há 1,2 milhões de dependentes - número superior ao dos viciados em cocaína. Qual das duas substâncias é mais nociva?
A diferença é que os antidepressivos são utilizados no contexto legal do sistema de saúde; a cocaína não. Além disso, existem diferenças no modo de acção. A cocaína tende a ter um efeito mais curto, causa mais ciclos de ressaca. Mas não sabemos o que é que aconteceria se os antidepressivos se tornassem ilegais e a cocaína legal. Porque também há ressaca de antidepressivos. Neste momento, em Inglaterra, na água canalizada, já é detectada a flextina, que é o princípio activo do Prozac. As pessoas consomem tanto, que a água potável já tem a substância. É um ciclo.

O uso dos antidepressivos pode ser também motivado por uma sociedade cada vez mais competitiva?
Estudos realizados nos Estados Unidos, Japão e Alemanha demonstram que a depressão está a aumentar nos jovens, justamente, pela pressão que é exercida sobre eles para terem sucesso. Ao sobrecarregar os filhos de tarefas, os pais acham que os estão a preparar para a guerra que se avizinha. Mas essa guerra pode fazer com que os filhos desistam antes do tempo. As pessoas precisarem de média 19 para entrar na faculdade é um disparate. Significa que são pessoas pouco dotadas: só sabem utilizar a memória. Em termos de qualidades humanas ficam para trás. O que é que uma pessoa sem qualidades humanas faz ao exercer profissões em que isso é essencial?

quinta-feira, agosto 18, 2005

Ricardo Pais

"Acho que nunca quis ser
uma figura gloriosa"

É um homem de Esquerda cujo protagonismo profissional aparece imiscuído na Direita laranja. Ricardo Pais surge quando surge um Governo PSD. Lida bem com isso. "Nos países civilizados, o que conta é a competência das pessoas". O encenador diz que o Teatro Nacional de São João, no Porto, que dirige pela segunda vez, "é uma praga". Mas já se habituou a aceitá-la como boa.Da primeira vez ficou cinco anos. Desta, ameaça sair no fim do ano, caso não lhe seja devolvida a autonomia financeira.
(Entrevista de Helena Teixeira da Silva e José Miguel Gaspar publicada no Jornal de Notícias a 5 de Fevereiro de 2004)

Exceptuando, em 1995, no primeiro mandato no Teatro Nacional de São João (TNSJ), todos os cargos de relevo que tem desempenhado verificam-se em governos PSD. É uma coincidência?
Sim, mas foi precisamente nesse mandato que se fez obra. No Teatro D. Maria II , o tempo provou que os disparates que o Governo me propôs eram absurdos. Com Manuel Maria Carrilho nunca senti qualquer constrangimento. Depois da sua demissão, não ficaria nem mais um dia. Sentir-me-ia pior a trabalhar com uma pessoa como José Sasportes do que me sinto a trabalhar com pessoas civilizadas como Pedro Roseta e José Amaral Lopes.

Na altura, acusavam-no de beneficiar do estado de graça do Governo socialista. Continuando conotado com a Esquerda, beneficia de quê, agora?
Quando Teresa Gouveia me convidou para o D. Maria, fiquei perplexo.Comentei que esse era, provavelmente, o tipo de convite que o PS nunca me faria, sendo que eu era acompanhante de estrada do partido. Sempre tive a sensação de que as pessoas com disponibilidade para trabalhar este tipo de instituição são poucas.

É uma questão suprapartidária?
Não caberia na cabeça das pessoas perguntar aos cento e tal directores dos centros dramáticos de França qual a sua preferência partidária.A esmagadora maioria não está, de certeza absoluta, com o actual Governo. São socialistas ou para a esquerda disso. Nos países civilizados, o que conta é a competência das pessoas e o programa por elas proposto. Está muito acima da política partidária. Só em Portugal é que a questão se coloca dessa maneira.

Sente a opressão partidária?
Em circunstância alguma. De resto, a lei orgânica pela qual ainda nos regemos no TNSJ é muito específica. Tem um capítulo sobre a direcção, a isenção artística e a relação com a tutela. Sempre me pareceu que a coisa mais importante a assegurar é a liberdade artística.

O TNSJ perdeu a autonomia financeira no ano passado. Tenciona recuperá-la?
É uma exigência minha. O que foi negociado com o ministro da Cultura e com o primeiro ministro foi que, se até ao fim de 2003 a autonomia não regressasse, eu deixava o teatro. Ela não regressou ainda. E, até agora, tem passado a ideia de que a SA, criada para o D. Maria II, é uma forma de responder à questão da autonomia financeira. E que isso pode ser extrapolado directa e rapidamente para o S. João. Tenho dúvidas quanto à adaptação dessa lei para aqui. E o facto do Governo ter acedido a transformar uma empresa não lucrativa numa SA não quer dizer que aceda facilmente a fazer mais quatro ou cinco. Está em aberto rever a minha posição no TNSJ se a autonomia não for reposta brevemente.

São dois teatros nacionais, com contextos diferentes. O TNSJ foi aplaudido pela sua gestão, o TNDMII nem por isso. Não é estranho aplicar o mesmo modelo?
Poderá não ser. Também a lei orgânica era a mesma para os dois.Funcionou muito bem aqui e não funcionou lá em baixo. A questão dos modelos orgânicos é mais ou menos liminar, o que importa são as pessoas e o que elas conseguem fazer com isso. Reconheço que poucos colegas meus teriam a pachorra que nós temos para enfrentar o dia-a-dia administrativo de uma casa como esta. Até pode ser hilariante, se quisermos ver isto pelo lado do humor; mas é trágico do ponto de vista da eficácia. Nomeadamente, se quisermos pensar que, por sua vez, se calhar, o Estado até fazia melhor em não ter organismos que, de facto, emperra. Se quer pôr lá dinheiro, que o ponha de forma ágil. Não é porque se muda a lei orgânica que as coisas mudam.

A sua permanência no TNSJ está sempre presa pelo fio das suas exigências?
Não. Mesmo que estivesse, nunca o diria. Sou da maior lealdade e tenho grande respeito pela ideia de administração pública.Não me passaria pela cabeça jogar qualquer influência específica para conseguir meios extras na casa. Está bem estabelecido, desde o início, o que precisamos. Apesar das dificuldades, o que se fez no ano passado foi bem feito. Repôs-se airosamente o TNSJ no mapa, e contribuiu-se de forma decisiva para o desanuviamento do ambiente cultural, que estava de luto quando cá cheguei.

Querer controlar todos os processos passa também por alguma vaidade?
Nada está mais próximo da vaidade que a total insegurança. A vaidade é salutar porque normalmente implica mecanismos tremendos de autoquestionamento. Nessa perspectiva, não me importo que me considerem vaidoso. Como no meu trabalho sou a pessoa mais ferozmente crítica de mim próprio, quando me confronta com a ideia de vaidade o que me ocorre imediatamente é a angústia que sofro diariamente no meu questionamento. Penso que se calhar o faço para poder ser vaidoso. Para poder estimar o meu trabalho, que considero mais importante do que a mim próprio. O teatro é absolutamente fundamental, embora, na realidade, esteja farto de teatro . Tomara eu libertar-me disto e reformar-me. E fazer coisas completamente diferentes, se tivesse coragem e capacidade.Ou reformar-me pura e simplesmente, que era a coisa ideal. Mas o horizonte ético da minha vida é o teatro.

A sua exigência da autonomia ainda não foi cumprida. De que forma poderá reagir?
A única coisa que não quero é ir-me embora do TNSJ. Sempre bati com a porta muito rapidamente e com a maior das facilidades quando foi preciso. Mas estive aqui cinco anos da primeira vez, o que para mim foi um recorde. Tenho espírito de 'free-lancer', nunca fui corredor de fundo. Isto foi uma praga que me caiu em cima.E agora já a aceitei como boa. Portanto, a última coisa que quero é ir-me embora sem completar este ciclo de trabalho. No final de 2005, quando cessar o mandato, não tenho qualquer dúvida que vou embora.

A grande meta deste ciclo é a internacionalização?
Sempre foi um objectivo. Os governos dizem sempre que é um desígnio.Começamos a ser mais sistemáticos neste segundo mandato. Quando estive afastado, percebi que estávamos a dois passos de poder perceber a nossa relação com o estrangeiro.

Há uma viragem associada à "Castro"?
Claramente. A partir da participação da internacionalíssima Maria de Medeiros, o trabalho começou a ser feito de forma diferente.Há finalmente atenção regular aos nossos espectáculos.

Aposta no Brasil ou na Europa?
O Brasil é uma espécie de pesadelo de estimação. Quando lá vamos, o trabalho é recebido de maneira espantosa. Mas o contexto não é viável. A resposta a todas as tentativas que fizemos junto do ministro foi no sentido de que havia pouquíssimo dinheiro.Temos um capital adquirido no Brasil imenso. A classe tem um respeito incomensurável por nós, mas não pode fazer nada. Pensei: "Vamos fazer um intercâmbio, custe o que custar". Mas quando fizemos contas, percebemos que se continuássemos com o projecto, tendo entretanto sido reactivado o processo da UTE (União de Teatros da Europa), estávamos a arriscar parte substancial do orçamento numa altura de crise. Fizemos marcha atrás. Se tivéssemos garantias de financiamento para metade da operação, teríamos ido. Como já nos comprometemos com colegas do Brasil, vamos assumir cinco espectáculos, suportados por nós.

Cumprido esse pacote, inicia um retrocesso na operação de internacionalização com o Brasil e dedica-se à Europa, à UTE?
O Brasil manter-se-á sempre como uma proposta aberta. A Europa não é internacionalização porque nós somos Europa. Internacionalização seria o Brasil, apesar da língua. Uma ressalva: há grupos em Portugal que têm internacionalização assegurada há muitos anos, só que numa escala mais portátil. A escala a que trabalhamos é mais complicada. Mas organizar o PortoGoPhone em Março, e o festival UTE em Novembro, é um trabalho gigantesco. E se nós não conseguirmos o apoio pelo POC, previsto no orçamento, não sei como o vamos fazer o festival. É um risco.

A fasquia da qualidade teatral é mais elevada na Europa do que no Brasil?
Na Europa é diferente - não necessariamente mais elevado. Acho que na Europa se faz melhor teatro do que na América Latina.

Fazer parte da UTE é mais estimulante do que trabalhar no Brasil?
Não. Porquê? Sentir-me-ia mais estimulado a trabalhar com o Brasil.Acho mais divertido o desafio, por causa das diferenças culturais.A generosidade imensa daqueles actores é fantástica. Vi o Tony Ramos - um actor que nunca suportei nas telenovelas - e fiquei comovidíssimo. Mas o Brasil, apesar da grande diversidade de produtores independentes, tem uma imensa dose de teatro comercial.

Interessa-lhe reforçar o eixo Porto-Madrid-Barcelona?
Será um dos meus fetiches este ano. Gosto imenso do Alex Rigola, o jovem colega de Barcelona e gosto muito do Jose Luis Gomez.Já tinha tentado fazer qualquer coisa com o Teatro Nacional da Catalunha, mas nunca consegui. A ideia, lançada por mim, é fazermos anualmente três co-produções, entre a Abadia, o Lliure e o S.João, e que as peças girem pelas três cidades. A única regra é que sejam espectáculos que não nos tragam preocupações de sucesso.

Prometeu recuperar o PoNTI em 2004. Em Novembro abre o festival UTE. É uma substituição?
Espero que se chame UTE-PoNTI. O conceito será o de uma academia informal com uma componente formativa e de partilha de conhecimentos muito forte, e que vai muito para além dos espectáculos. O PoNTI será recuperado, mas, provavelmente, só em 2006. É difícil fazer um festival todos os anos.

A âncora para a internacionalização faz-se com dois espectáculos seus, "Castro" e "Um Hamlet a mais". Não é narcísico começar com duas encenações suas?
Não. O projecto da nossa atenção para a internacionalização será o 'showcase' "PortoGoPhone".
Já agora, faria a mesma pergunta ao Luís Miguel Cintra?

Que coincide com a reposição do seu "Hamlet"...
Sim, mas o "Hamlet" é reposto porque esteve quatro dias em cena.É uma questão de economia - é infinitamente menos caro repor do que montar um novo espectáculo de raiz. A "Castro" tinha ficado nove mil espectadores aquém na primeira exploração - houve muitas escolas que não conseguiram vir e a sala esteve sempre cheia. Manter as peças em repertório não é má política.

Como vê hoje o Teatro Municipal Rivoli: parece-lhe uma estrutura debilitada?
Custa-me usar essa expressão.

Que expressão usaria?
É uma estrutura em revisão. Está um bocadinho entre cadeiras.O Rivoli, como estrutura de produção, fez um trabalho interessantíssimo.Trabalho que está agora em revisão. E afirmou-se como um dos grandes equipamentos do país. É um parceiro muito importante na área da programação, produção e co-produção. O Rivoli e o Campo Alegre são estruturas que nós desejamos ardentemente que se fortifiquem ao longo dos anos, que não se debilitem. Senão, tira-se o TNSJ do jogo e pode ser um vazio muito grande.

Isso é prejudicial para a cidade, e mesmo para o Rivoli, enquanto espaço?
Vejo com alguma apreensão o futuro do Rivoli. Mas não tenho dúvida de que a Câmara está sensibilizada para o que vale a pena investir.Aliás, tenho que ressalvar uma coisa antes que haja confusão: as nossas relações com a Câmara do Porto são excelentes. Tudo o que solicitámos foi aceite com o maior entusiasmo; tudo o que propusemos, como a animação das praças do Teatro Carlos Alberto e do TNSJ durante o Verão. O Rivoli será um dos nossos palcos em Novembro e Dezembro, no festival da União de Teatros da Europa.

Parece-lhe que o Rivoli deveria ter outras ambições enquanto teatro municipal?
Parece-me que não vale a pena ter grandes teatros se não for para funcionar como grandes teatros. E isto deveria ser um imperativo nacional. Não há crise que justifique debilitar-se o funcionamento de uma casa. Pelo contrário. Activá-la é sempre reprodutivo, em última análise. É sempre lucrativo a médio e longo prazo.Essa apreensão prende-se com uma coisa que é uma preocupação minha de sempre: os teatros devem ter um nível de exigência muito grande para si próprios. O que me preocupa é que a programação do Rivoli durante anos era muito interessante, e que ela já esteja a ser menos interessante.

Transformar o Rivoli numa sala de aluguer pode ser uma forma de mascarar a ausência de política cultural da cidade?
O Centro Cultural de Belém fez muito boa programação ao longo dos anos, fazendo alugueres também. Não vejo inconveniente nenhum em uma sala municipal poder ser alugada. O que me custa é imaginar que isso se faça à custa de um projecto de programação personalizado, como foi o do Rivoli durante muito tempo. Disso terei muita pena.

O TNSJ é, em termos culturais, o pulmão da cidade?
Francamente, penso assim. Não teria a pretensão de o dizer, mas é assim que eu penso. Penso-o como uma coisa que ajuda a cidade a respirar, a abrir-se e a ser reconhecida.

Que estruturas estão no mesmo patamar do S. João?
Não está ninguém, porque os meios e a casa, que é uma casa modelar, não são fáceis de montar. Nem estão distribuídos assim à tripa-forra.A outra escala, pode dizer-se o mesmo do Teatro Viriato, em Viseu.

Onde termina a fronteira do S. João?
Temos trabalhado o mais possível para todo o lado. Eu sou muito respeitado na Praça da Batalha por pessoas que provavelmente nunca aqui entram enquanto espectadores. Mas acham que isto faz parte do património deles. A cidade revê-se, primeiro, em ter um teatro nacional; segundo, em ter um teatro nacional que funciona, que se tornou uma referência não só em Portugal como felizmente noutros sítios. As pessoas não têm ideia nenhuma de quão respeitados nós somos para além de Badajoz. Um teatro que faz teatro, e que o afirma como uma coisa vital e possível. Neste ano, que foi um ano mau, tivemos em média 250 espectadores por noite.
Confissões
'Quero deixar marca pessoal'
"Temos poucas oportunidades para deixar a nossa marca pessoal.Se não aproveitamos um sítios destes, quando é que vamos fazê-lo?" Ricardo Pais regressou ao S. João para descongelar tudo o que não tinha concretizado plenamente da primeira vez. "Se regressasse daqui a dez anos, faria o mesmo". É normal, argumenta. "Ficam sempre ideias penduradas".

'Não me acho unânime'
O que é que Ricardo Pais e Amália têm em comum? Um crescente sentido de unanimidade. Mesmo quem, porventura, não os apreciar, não o contestará. "Num país com um panorama relativamente pobre, as pessoas com um corpo de trabalho de anos acabam por ser mais ou menos aceites. Não quer dizer que haja unanimidade sobre o sentido da obra delas", contraria Ricardo Pais . E recusa a analogia."Amália era tecnicamente inquestionável, e eu não tenho a certeza que, como encenador, o seja". Desmonta a impossibilidade da comparação e desabafa: "Não creio que tenha gerado unaminidade à minha volta.Espero mesmo que não".

'Não gosto de dar entrevistas'
Por que é que Ricardo Pais não gosta de dar entrevistas? "Porque não me revejo transcrito". A sua rapidez demasiada no verbo explicará a questão - "a minha verborreia é um pesadelo para toda a gente" - , mas existirá outra, menos superficial: "Faz-me sentir completamente na mão do jornalista e isso custa-me muito". Precisará de sentir, aí como na encenação, que controla todo o processo? "Sim, também".

Rápidas
No seu disco "Grátis" cantou Bowie e Brel. Qual prefere?
Jacques Brel.

E porque escolheu "Time", de David Bowie?
Porque é das canções que melhor falam sobre o palco.

Não ter carreira de cantor é uma terrível desilusão?
Não.

Quem, como Shakespeare, é infinito?
Fernando Pessoa.

Continua a ter o pânico da memória?
Sim.

Voltará alguma vez ao palco como actor?
Infelizmente ninguém me convida...

O que lhe sugere o nome Carrilho?
O eng. Manuel Engrácia Carrilho foi um fantástico presidente de Câmara.

E o de José Sasportes?
Uma espécie de Rei Ubu liofilizado.

E Pedro Roseta?
Uma enorme gentileza.

Qual a última criação que o comoveu?
"Jardim de Inverno", de Olga Roriz.

Qual o último livro que deixou a meio?
Deixo-os frequentemente a meio. Estou a ler Musil, finalmente.
Perfil
"Sempre fui acusado de criar acontecimentos em teatro". Ricardo Pais, nascido em 1945, formou-se em Direito. Terá sido na Universidade de Coimbra, ao iniciar-se como membro do CITAC, que descobriu que o teatro seria o horizonte ético da sua vida. "Como criador, nunca me hei-de reformar, por mais que diga que não me apetece fazer mais teatro". Viveu demasiados anos com o estigma de 'enfant terrible'. É hoje um dos encenadores mais respeitados do país. Já leccionou na Escola Superior de Cinema de Lisboa (75-83), foi director do Teatro D. Maria II (89-90) e comissário para Coimbra Capital do Teatro (92-93). Entre 95 e 2000 dirigiu o Teatro Nacional S. João. Regressou a casa há pouco mais de um ano. Tem mandato até 2005. Que figura gloriosa gostaria de ser se o ousasse? "Acho que nunca quis ser uma figura gloriosa".

terça-feira, agosto 16, 2005

Nuno Cardoso

"Não me demito
de apoiar
o teatro local"

Reunindo invulgar unanimidade à volta do seu trabalho, transformou-se no encenador do momento. O momento, no entanto, dura desde 2001, altura em que encenou "Oresteia", no Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira, com reclusos daquele estabelecimento. "Desde então, nunca mais consegui ter uma visão agradável do que me rodeia", confessou Nuno Cardoso. Mas a crítica nunca mais o perdeu de vista. Antes disso, o criador era já o discreto director do Auditório Nacional Carlos Alberto, no Porto, cuja reabertura, agora em formato Teatro, está marcada para depois de amanhã."É o único sítio onde os grupos não têm que pagar para fazer teatro. Esse é o problema da cidade".

(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 13 de Novembro de 2003)

Foi nomeado director do Auditório Nacional Carlos Alberto (ANCA) em 1998, que fechou para obras em 2000.Ou seja, durante três anos, foi director de um Teatro que, fisicamente, não existia. A reabertura é uma prova dos nove?
Não acho que seja um teste à minha capacidade como director artístico. Fui para o Carlos Alberto com a ideia de conferir novo sentido a uma sala que continuava perdida numa cidade que já tinha novos equipamentos e novas programações.Assumimo-nos como uma unidade de extensão artística do IPAE e, durante esse tempo, tivemos uma programação que, de alguma forma, reenquadrou o ANCA. Desenvolveu-se uma equipa, uma atitude, e desenvolveu-se, face à tutela, uma necessidade de compra do edifício, potenciando-o dentro do universo do teatro de média escala. Ao longo dos últimos três anos, o ANCA nunca cessou de existir e a sua presença, numa espécie de instituição volátil, fez-se sentir com programação extra-muros.

O Auditório passou a ser um Teatro Nacional. O que é que isso significa?
É, apenas, uma questão de nomenclatura. Aquilo que se propõe com o projecto de reconversão do ANCA - agora TeCA -, não acaba segunda-feira. É uma segunda etapa do projecto iniciado em 2000 com o fecho da sala. Com o espaço físico, com conteúdos programáticos, é preciso completar esse ciclo, torná-lo uma força presente, circuito obrigatório para o público, um espaço de cidadania.

O IPAE comprou o ANCA para colmatar a ausência de salas do Porto, criando uma "obrigação" em colaborar com as companhias de teatro independente do Porto. São duas responsabilidades de que se vê agora livre?
Em nenhum momento houve obrigação de apoiar as companhias do Porto, fazendo do TeCA um armazém acrítico de projectos. Havia uma obrigação de abrir o espaço às estruturas de pequena e média produção, cujos projectos artísticos fossem reconhecíveis para poderem criar uma plataforma de sustentabilidade que consolidasse o seu trabalho. Nesse sentido, tendo em conta que o teatro no Porto, nos anos 90, é emergente, a relação é óbvia. É de uma insistência um bocadinho pirrónica insistir nas obrigações do ANCA. Numa cidade deste tamanho, com as salas de espectáculo que tem, incutir unicamente ao Teatro S. João a responsabilidade de activar o teatro, é uma tarefa hercúlea, que nós não podemos cumprir. Dizer que o TeCA se demite de apoiar os grupos do Porto é uma inverdade. Dizer que os grupos do Porto não têm acesso ao TeCA é uma segunda inverdade. Aliás, a programação responde cabalmente a qualquer crítica nesse sentido. O TeCA não pode conter na sua programação tudo o que se faz no Porto. É verdade que há uma retração no tecido de criação devido à falta de espaços, mas esse problema não reside no TeCA.O problema das companhias do Porto é justamente o facto de só existir o Carlos Alberto.Nos outros sítios paga-se para fazer teatro.

Disse que a integração do TeCA no Teatro Nacional São João (TNSJ), representaria "a potenciação de possibilidades que o ANCA prometia e nunca conseguia cumprir". Refere-se a quê?
Refiro-me à possibilidade de apoiar duas estruturas - festivais Co-Lab e Faladura -, que não foram apoiadas por mais ninguém, e cujas franjas em que tocam são fundamentais para uma visão cosmopolita e aberta do que é a arte actualmente. Refiro-me à possibilidade de termos um teatro bem equipado, flexível, para o qual a integração no TNSJ e a ajuda do engenheiro Victor Oliveira e Júlio Cunha, nestes oito meses, foi fundamental. Refiro-me a condições de sustentabilidade económica e de previsibilidade.Refiro-me a ter uma equipa que permite tempo para poder alargar conceitos de programação. Refiro-me à possibilidade de, pela primeira vez, poder desenvolver um trabalho vocacionado para públicos, que é uma vertente fundamental de uma sala de espectáculos.

Um eventual excesso de paternalismo do TNSJ em relação ao TeCA não poderá abafar a sua autonomia?
Fico perplexo. Nós desenvolvemos um trabalho com o TNSJ nos mesmos moldes desde 98. Trabalhamos com duas salas, duas programações diversas, às vezes contraditórias, outras vezes em sinergia.As pessoas que estão preocupadas com o paternalismo do TNSJ em relação ao TeCA, deviam observar o programa. Aí compreenderiam que não há nenhum paternalismo do TNSJ em termos de programação no TeCA. Houve sim, apropriação pelo TeCA de um programa do TNSJ e a sua estilização, e quase escatologia. Refiro-me ao "Dançem".Eu e o Ricardo Pais trabalhamos em colaboração. Há uma intervenção de um na delineação da programação do outro. Partimos da definição clara do que são as duas salas. O TNSJ é uma sala vocacionada para a produção, a criação de espectáculos. O TeCA é uma sala mais pequena vocacionada para o acolhimento de espectáculos.A partir dessas duas matrizes fazemos osmose. O TNSJ tem uma direcção, dois directores artísticos com autonomia absoluta para fazerem a programação. Por que é que estranham que não haja conflitos entre dois directores com processos artísticos e sensibilidades diferentes?

A intervenção de criadores internacionais na cidade é uma das grandes novidades do Teatro Carlos Alberto...
Estamos a desenvolver um conjunto de projectos "Rótula". Há o pressuposto de um projecto trimestral, que tem a ver com a apresentação no TeCA de espectáculos que tenham a ver com um processo artístico contemporâneo, mas que extrapola isso, permitindo que, durante a apresentação, haja contacto com esse projecto pelo público e pelos criadores da cidade através de workshops ou de coproduções entre estruturas estrangeiras e do Porto. Neste momento, estamos em contacto com Jéròme Bel para a apresentação, e estreia universal, da sequela do "The show must go on". No trimestre seguinte, o ANCA poderá ter uma coprodução entre a companhia Instável, do Porto, e a belga "Última vez", de Wim Vandkeybus, para recriar a peça "Les porteuses de mauvaises nouvelles". Haverá colaboração fortíssima entre as duas estruturas, com estágios de bailarinos na Bélgica. A peça poderá ter uma digressão internacional.

O ANCA, que não tinha previsão orçamental no IPAE vê-se, de repente, associado ao TNSJ, com um orçamento de três milhões de euros.Como é gerida essa verba entre as duas salas?
O orçamento é único e gerido com muito cuidado, porque há uma grande distância entre o orçamento alvo e aquele de que dispomos.É óbvio que o cobertor será sempre mais pequeno que o colchão.Mas não se pode cometer o equívoco de confundir o que deveria ser uma política sustentada para a cidade com o papel que um teatro de programação tem. Pode ser o catalisador de uma mudança, mas nunca o ónus de uma política para o país.

Com o TeCA passa a haver um número de salas de teatro que não se reflecte na dinâmica cultural da cidade. Defende uma espécie de intercâmbio entre os directores que permita, por exemplo, atribuir a cada sala uma programação específica?
As fórmulas são imensas e variáveis. Podia, de facto, haver especializações.Mas, até que ponto as outras estruturas da cidade estão escuradas para a sua própria actividade ser continuada? Não pode haver diálogo com estruturas que, infelizmente - e não é por culpa dos seus directores artísticos -, não têm condições de sustentabilidade constantes. Para uma cidade funcionar, tem que haver uma política que infraestruture a vivência de cada uma, com as suas singularidades e os seus pontos de contacto. Se essa política não existe, qualquer vontade posterior não pode existir. Isso cria inactividade ou macrocefalia, o que é mau para os criadores que não conseguem quer distribuir-se pelos sítios, quer ter condições para se sustentar, quer para os públicos, que não conseguem criar um quotidiano em que a vida cultural esteja presente. Isto é tão grave que já se faz sentir no cinema, que abandonou a cidade para se fazer nas suas margens, em ilhas de consumo que são os centros comerciais.

A propósito de cinema, o Fantasporto volta ao TeCA?
De momento, não. O Fantas é intransponível na vida cultural da cidade. Mas o que é também intransponível é que não temos ainda condições de projecção.

"Há uma incerteza quanto ao futuro do teatro em Portugal. Mas o importante é fazer um esforço para fugir à politização da criação artística. É dificil, mas é isso que faz crescer o teatro ", afirmou. Depreendo que não o preocupa o corte à criação teatral da Câmara do Porto?
Não politizar uma actividade é não ser escravo da política. A autarquia devia apoiar os grupos porque eles desempenham uma função importantíssima na cidade. O lazer e a cultura passam pelo mesmo caminho. Mas, para ser sincero, tenho poucos contactos com a política camarária, até porque tenho outro tipo de pressões e outro tipo de trabalho, seja como director ou como criador.Talvez por isso, ainda não tenha um conhecimento pormenorizado da política cultural da câmara. Por outro lado, o traço mais marcante da política cultural do Governo assenta no novo Instituto das Artes (IA), que prevê a intervenção das autarquias nas decisões do apoio à criação.
Há um regulamento ambicioso e complexo. Se não houver consciência do perigo, pode não funcionar. Há um enorme tecido de criação artística no Porto e em Lisboa. As pessoas que estão descentradas podem sofrer com isso e o IA tenta compensá-las. Mas, por outro lado, também pode matar a criação nos grandes centros, que é muito válida. É preciso pensar nas condições de circulação desta produção.

Disse que sairia do TeCA quando as coisas estivessem encaminhadas.É agora?
Mantenho o que disse, mas as coisas ainda não estão encaminhadas.Ser uma instituição não é ter as paredes pintadas e um palco e uma programação definida. O TeCA fica completo como instituição quando tiver condições de sustentabilidade e de continuidade, nem que seja por oposição à direcção artística. Estamos, talvez, na última fase desse processo.

Como compatibiliza agora o TeCA com as suas criações?
Com menos sono e mais trabalho. Eu sou - bom ou mau - um criador.É o que eu sei fazer. E, sem isso, não consigo viver. E tenho este objectivo a que me comprometi que é o TeCA. Preciso de cumprir uma coisa e preciso da outra para viver.

Entretanto, prepara-se para regressar ao palco como actor, o que já não acontecia desde "A mordaça", em 2000.
A peça chama-se "Gretchen" que é uma leitura dramaturgica que o Nuno M. Cardoso faz do Fausto. Eu sou o Fausto. Ainda não decorei o meu papel. Estou enferrujado .

Não é desconfortável ser dirigido por uma pessoa que habitualmente dirige?
No outro dia, estava a jantar com o Mayenburg, que me disse: "Estás no pesadelo de qualquer director , que é ser encenado por um dos seus actores". Para mim é, acima de tudo, uma espécie de banho de humildade e uma espécie de mão na consciência. Ao mesmo tempo é um prazer e um medo muito grande. Não sei se vou fazer um bom trabalho.

Perfil
Idade: 32 anos
Livro: Volume de poesia completa de T.S. Elliot
Filme: "Rocco e seus irmãos", de Luchino Visconti
Cidade: Berlim, Bangkok
Defeito: Teimosia
Qualidade: Memória
Medo: Aviões
Saudade: Férias de Verão da escola primária
Música: "Valsa triste", de Sibelius
Comida: Cozido à Portuguesa

Confissões

Ao Cabo Teatro é um privilégio
A produção das peças de Nuno Cardoso conhece um único nome, Ao Cabo Teatro. O criador garante que "não é exclusivo de ninguém", mas reconhece que é "um grande privilégio" ter encontrado uma pessoa que acredita nele - Hélder Sousa. "É bom ter 32 anos e ter já encontrado uma pessoa com quem se concebe trabalhar daqui a dez anos."

Fascínio pelo contemporâneo
Encenou de um só fôlego três textos escuros - "Purificados", de Sarah Kane, "Parasitas", de Marius von Mayenburg e "Valparaíso", de Don Delillo. Em todos há um fio de dor. "Desde 'Oresteia' que não consigo ter uma visão do que me rodeia, e de mim mesmo, propriamente agradável", confessa. Mas a verdade é que a escrita contemporânea fascina o criador. "Não tanto pelo que ela tem de universal, mas pelo que de conjuntural e imediato possui.E por mais questionável que seja, perturba-me, perturba os meus actores, e acho que também perturba o público." Nuno Cardoso parou. Não foi por acaso. Diz que ainda anda à procura de uma comédia.

O magistral protegido da crítica
Assíduo espectador das criações de Nuno Cardoso, o ensaista Eduardo Prado Coelho catalogou a encenação de "Purificados" de "magistral". O encenador não se deixa iludir, mas não é hipócrita. Agradece."Claro que fico contente". E esclarece: "Sempre achei que entrei nisto para correr a maratona e não os 100 metros." A meta está à vista.

Beatriz Batarda

"Assusta-me
não ter alternativas"

Beatriz Batarda não sabe com que filme ganhou o Globo de Ouro, prémio que a distinguiu pela segunda vez como melhor actriz. "Ninguém me disse e eu não perguntei". Nomeada pela tragédia grega "Noite escura", de João Canijo, e "A costa dos murmúrios", olhar feminino de Margarida Cardoso sobre a guerra colonial, a actriz consagra-se como a figura mais prestigiada da actualidade. Mas, para ela, os requintes da fama são pouco relevantes. "Há dois anos, era a mesma pessoa e hei-de ser sempre". Beatriz tem uma filha bebé e a capacidade de fazer inúmeras coisas ao mesmo tempo. Durante a entrevista, brincou com Maria, alimentou-a, chegou a ensinar-lhe os primeiros passos. No fim do mês, estará no Teatro Nacional S. João, no Porto, com "Berenice", de Jean Racine. Antes, estreia em Inglaterra a comédia "It's all gone Pete Tong".
(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 7 de Maio de 2005)

Para quem não cresceu a querer ser actriz, o seu percurso, preenchido agora com o segundo Globo de Ouro, é uma sucessão de acasos?
Quando digo que não cresci a querer ser actriz é um bocadinho aldrabice. Até aos 18 anos sonhei com outras coisas. Depois, comecei a trabalhar e o interesse foi crescendo. Aos 23, fui estudar teatro para Londres; agora tenho 31 anos, ou seja, já cresci muito a querer ser actriz [risos]. No início, foi um acaso. Desde então, houve muito investimento, vontade de aprender. Não vivo de outra coisa.

O facto de os Globos serem o único prémio nacional, tem um valor acrescido?
Foi a terceira vez que fui nomeada, e a segunda que ganhei. [A primeira foi com "Quaresma", de José Álvaro Morais]. No estrangeiro, o cachet passaria a ser mais elevado; aqui significa o reconhecimento do público e o interesse dos media pelo cinema e teatro. Este ano não foi o público a votar. É mais equilibrado, porque o grosso da população não vê as peças, nem vê filmes portugueses.

Sente-se a actriz portuguesa a viver no estrangeiro que regressa como uma espécie de estrela convidada?
Não. Sinto-me em casa nos dois países. Vou para onde houver trabalho. Só fui para Inglaterra estudar - nunca fez parte dos meus planos trabalhar lá. Aconteceu, e quero alimentar isso, para me proteger. Evita a sensação de me sentir presa a um só mercado.

Em Portugal, os actores são obrigados a fazer telenovelas para sobreviver. Equacionaria essa possibilidade?
Nunca equacionei. Só faria novela se tivesse mesmo que fazer. Tenho tido o privilégio de poder escolher. E tenho pena que haja belíssimos actores a fazer novela, porque não só estão descontentes como se desgastam. A televisão expõe os actores de forma muito injusta.

Saiu de Portugal porque sentia "uma certa claustrofobia". O sufoco era profissional?
A claustrofobia não está nos outros; está em nós. Teve a ver com nos deixarmos pressionar, seja pelas expectativas dos outros, seja pelas prisões que nós próprios criamos. Precisei sair para perceber isso. Achava que era um problema do exterior em relação a mim. Mas não é. Os modelos repetem-se seja onde for. Portugal é um país pequeno. Quando as coisas são pequenas, naturalmente, esgotam-se mais rapidamente: conhecem-se as pessoas, incompatibilizam-se, apaixonam-se e desapaixonam-se mais depressa. Mas o que me assusta é não ter alternativas. No fundo, é complicado ser-se sempre honesto connosco próprios no trabalho, fazer sempre aquilo em que acreditamos e que gostamos e não o fazermos só porque não temos outro remédio.

Em Inglaterra já interpretou personagens cómicos em televisão, que é outra vertente a que Portugal nunca assistiu?
Porque nunca me convidaram. Aqui ninguém me acha graça nenhuma... [risos]

Na representação, como na música, a língua condiciona o significado?
É complexo porque na estrutura latina as frases são muito rebuscadas, usa-se muito o adjectivo. O francês, o italiano e o espanhol também usam e, no entanto, fazem bom teatro e cinema. Em português também é possível. Mas estamos preguiçosos da nossa própria língua. Por outro lado, o inglês provoca sensações imediatas, tem uma vivacidade que as línguas latinas não têm.

Desistiu do curso de design devido à morte de uma pessoa próxima. O desaparecimento de José Álvaro Morais, que conhecia desde pequenina?
Se pensei deixar de representar? Passou-me pela cabeça, mas percebi que era uma tontaria. É frequente o actor, ciclicamente, querer deixar de o ser. É uma profissão muito absorvente, esgotante e limitativa. Não sabemos fazer nem falar de mais nada. E há alturas em que gostaríamos de poder ter sido outra coisa. A morte dele espoletou um desses ciclos, mas já me passou. O que não passou foi a saudade.

Já disse que muitos realizadores querem trabalhar consigo, mas nenhum interessado em fazer o que lhe apetece. O que é?
Não sei [risos]. Disse isso quando morreu o Zé Álvaro porque me senti muito só em termos criativos. Tinha uma relação com ele bastante simbiótica e isso não é repetível. Correndo o risco de ser um bocadinho pretensiosa, havia alturas em que sentia que nos complementávamos na forma de filmar. Fiquei muito preenchida em termos criativos, e muito cheia de mim própria - também sou vaidosa, também me deixo afectar por essas coisas. E encantar.
"É verdade que copio coisas"

Perturbada, Ana, a menina-mulher de "Quaresma", do realizador falecido no início do ano passado, José Álvaro Morais, terá sido a experiência cinematográfica mais marcante de Beatriz Batarda. "Nesse filme, não havia separação entre a personagem e eu". A actriz não justifica, mas assegura que não o voltará a fazer. Apesar de ter ganho maior visibilidade no cinema, é no teatro que sente maior tensão. "O palco dá uma descarga grande de adrenalina; no cinema temos que a provocar", reconhece.

Regressou ao teatro ao fim de dois anos para protagonizar "Berenice", de Jean Racine. O palco é mais assustador do que a tela do cinema?

Com a minha ida para Inglaterra, ganhei maior visibilidade com o cinema, mas o teatro sempre fez parte do meu processo. Não é produtivo para os actores fixarem-se num só formato. Para aquilo que me apetece construir, seria limitativo ficar fechado num só estilo. No teatro existe, espontaneamente, com o facto de ser ao vivo, efémero, falível, de não haver repetições, de podermos perder a atenção e o interesse do público a qualquer momento. O palco dá uma descarga grande de adrenalina; no cinema temos que a provocar.

"Berenice" é uma história de vingança ou de resignação?
Não é uma vingança. E não sei se é uma história de resignação. Há uma aceitação, que tem a ver com o crescimento. Ser adulto é saber aceitar. Aceitar para evoluir. Berenice percebe que, como ser individual, não vale o caos de um império inteiro. Ela aceita a sua insignificância.

E aceita abdicar do amor...
Sim. Mas só é capaz de o fazer porque Tito - filho do imperados romano, que foi obrigado a optar pelo reino em detrimento dela -, quando Berenice apresenta a decisão irrefutável de morrer, diz que também morrerá. E ela não quer isso. Berenice, rainha da Palestina, começa a peça na ingenuidade de poder oficializar aquele amor. Quando é confrontada com a separação, vê como única solução possível a morte. Não foi uma estratégia feminina para chamar a atenção. Nela, tudo é impulso, cegueira de paixão.

Há diferenças entre o processo criativo teatral em Portugal e em Londres?
O processo de trabalho do actor é sempre individual. Em Portugal as coisas são igualmente profissionais, rigorosas, capazes. A diferença está na língua e, obviamente, nas personagens. Em Inglaterra, nunca teria a oportunidade de fazer a Berenice ou outro protagonista desta dimensão, com esta responsabilidade. A língua portuguesa tem uma ressonância e um passado emocional em mim que a língua inglesa não tem. Quando digo "amor", "solidão", "desgosto", essas palavras ganham cor, textura. Quando o som sai, sente-se. Em inglês tenho que o construir. É uma coisa mais artificial.

O seu agente inglês não defende as suas participações no teatro em Portugal, porque diz não haver público. Concorda com essa perspectiva?
Um agente quer que o actor trabalhe para o poder mostrar a empregadores - e angariar mais trabalho. Ora, essas pessoas não estão em Portugal. O público vê teatro português, embora não seja possível comparar qualquer teatro do West End com o Teatro Nacional. Cá, o teatro sente-se cheio quando tem a plateia cheia e os balcões vazios. Em Londres, o teatro está cheio até aos galinheiros. Mas o público são estrangeiros que estão, temporariamente, a viver em Londres. Na "Berenice", temos o público que é possível ter. A peça, que é do século XVII, é complicada; não é para relaxar ou entreter.

João Canijo, com quem fez a "Noite escura", define-a como "actriz do método". E diz que isso se deve à escola inglesa...
Sou metódica. A "Noite escura" requereu muita preparação. Não estávamos a representar; estávamos a tentar ser aquelas pessoas. Fizemos um estágio em casas de alterne, convivemos com pessoas daquele meio. Era um trabalho que precisava disso, senão corria o risco de se transformar numa farsa, porque aquilo é tão real que poderia ser visto quase como uma anedota.

Que imagem guarda de Portugal depois desse tempo que passou nas casas de alterne?
É um bocadinho assustador, medieval, primário. Mas tenho a consciência de que Portugal não e só aquilo. Na altura achava que era, mas já me passou.

Concorda com a crítica francesa, que descreve o filme como uma "visão desesperada do mundo"?
A crítica francesa não se pode identificar com o filme, porque é muito mais intelectual. O filme precisava de ter sido bem apresentado, porque é 'underground'. Não só porque fala desse mundo subterrâneo, mas também pela forma como é filmado. Pela sua rudez. Não é um filme agradável e bonito, de encher os olhos.

É mais confortável trabalhar com um cineasta que prevê tudo, como João Canijo, ou com um adepto do improviso, como era José Álvaro Morais?
Gostei muito dos dois. A Carla, de "Noite escura", não estava completamente pensada. Tinha, apenas, a base da personagem em termos de tensão física, que seria provocada pela actividade profissional dela, pela noite, pelas limpezas. Isto combinado com os problemas emocionais, a disfunção familiar. Essas coisas despertam-me interesse. E estava programada a forma de falar, com uma certa cadência que tentei roubar à Rita Blanco [mãe de Carla], para criar alguma familiaridade na voz. No "Quaresma", não tive acesso ao guião. O Zé Álvaro contou-me a história e dava-me, diariamente, os diálogos. Nesse filme - não é necessariamente bom e, se calhar, não volto a fazê-lo -, não havia separação entre a personagem e eu [pausa]. Foi uma fase em que havia mesmo uma Ana a viver dentro de mim.

A Evita de "A costa dos murmúrios" tem a sua idade. Houve identificação nos ideais?
Ela é confrontada com o exemplo máximo de racismo, de fascismo, de falta de direitos humanos e isso dá-lhe uma profunda solidão. Parece um filme belo, mas é muito violento. Ainda tenho ideais - espero conservá-los sempre -, mas já não fico deprimida nem vou para casa chorar com as injustiças do mundo.

Por que é que tem necessidade de dizer que copia coisas?
Porque é verdade. É difícil acusar um actor de fazer plágio. As coisas podem ser sempre transformadas. Digo isso porque as pessoas levam-se muito a sério, e não devem. Apesar de ter 31 anos, não sou nenhuma jovem. Há actores muito mais jovens e é importante ter alguma humildade. Não há nada que não tenha sido já inventado, na música, no teatro ou no cinema. É preciso ter consciência disto: devemos fazer o melhor que pudermos, mas não nos acharmos muito especiais, porque como nós há muita gente. Passei a questionar-me sobre isto por causa desta história dos prémios e do vedetismo. Há dois anos, eu era a mesma pessoa e hei-de ser sempre. O mundo da fantasia é só nas histórias; fora delas as pessoas são pessoas.

Confissões
"Manoel de Oliveira é difamado no seu próprio país"
Beatriz Batarda reage fervorosamente quando o tema é Manoel de Oliveira, com quem filmou "Vale Abraão", em 1993, e "A caixa", no ano seguinte. "É vergonhoso dizerem à boca cheia que não gostam do cinema dele quando, na maior das certezas, nunca viram nenhum filme. Isso envergonha-me, não me identifico com essas pessoas, incomoda-me que o façam", diz a actriz a subir o tom da voz. "De ninguém se deve dizer que não se gosta sem nunca se ter visto, só porque um comediante ou um apresentador de um talk-show decidiu fazer graças sucessivas sobre ele", admite. "Durante anos, Manoel de Oliveira foi alvo de chacota e tema para graças infantilóides. Difamou-se assim o trabalho de um artista sério, respeitado em todo o mundo. Só em Portugal ninguém o respeita. Ou melhor, respeita vagamente porque os estrangeiros também respeitam. Mas isso, para mim, não vale nada. E, por isso, é que eu fico tão sensível", justifica. "Em Portugal promovem-se esses actos de difamação com a maior leviandade e as pessoas saem impunes. Isso entristece-me".

A nova comédia do DJ surdo
No novo filme "It's all gone Pete Tong", que estreia em Inglaterra no dia 26, Beatriz Batarda é Penélope, uma professora de surdos. "Sou professora, mas nunca apareço a dar aulas", diz a rir. O filme, realizado pelo canadiano Michael Dowse, é uma comédia negra que relata a ascensão e queda de Frankie Wilde, carismático DJ da cena de Ibiza que tem de lidar com a surdez depois de uma vida de excessos com drogas. "O protagonista é um DJ que fica surdo e, depois de muito sofrimento, decide fazer qualquer coisa para viver com o problema. Vai a uma escola de surdos e conhece esta professora, que também é surda, por quem se apaixona - e que o ensina a sentir a música de forma diferente", revela a actriz. "Isto parece uma coisa muito séria e sentimental e recheada de sentimentos nobres, mas não é. É uma comédia cheia de clichés. É um disparate do início ao fim sobre os DJ, os ingleses e a vida de 'clubbing' e 'pastilhame' em Ibiza". O elenco integra, além do par Beatriz Batarda /Paul Kaye,uma série de disc-jockeys reconhecidos, como Tong, Carl Cox, Tiësto ou Charlie Chester.
Filmografia

Alice (2005)
It's all gone Pete Tong (2004)
A Costa dos Murmúrios(2004)
Noite Escura (2004)
Amnesia (2004)
The Forsyte saga: To let (2003)
Quaresma (2003)
Pexe Lua (2000)
O que te quero (1998)
Elles (1997)
Porto Santo (1997)
Dois dragões (1996)
A Caixa (1994)
Vale Abraão (1993)
Tempos Difíceis (1998)

domingo, agosto 14, 2005

José António Barros

"Coliseu é aposta ganha pela população da cidade"

Dizem-lhe que é melómano e ele concorda. José António Barros tem "o defeito de abraçar desafios profissionais como causas pessoais". A Associação de Amigos do Coliseu do Porto, que preside há dez anos, é uma "paixão". E só essa paixão o poderia fazer mover-se a ponto de convencer o presidente Jorge Sampaio a fazer um jantar de angariação de fundos, onde reuniu todos os empresários do Norte; a convencer o então ministro do Planeamento, João Cravinho, a doar-lhe 350 mil contos para recuperar a sala depois do incêndio de 1996. Dez anos de batalhas compensam-se na frase de sempre: "O Coliseu é nosso".
(Entrevista de Helena Teixeira da Silva, publicada no Jornal de Notícias a 4 de Março de 2005)

O Coliseu mudou completamente a imagem que tinha há dez anos. O que foi essencial?
O Coliseu conseguiu muita coisa, porque houve uma grande mobilização da cidade à sua volta. Não surgiu em reacção a nada nem a ninguém. Foi a vontade da população. A marca "O Coliseu é nosso" não é um chavão, é uma realidade. As pessoas do Porto têm gosto em vir cá. Isso faz com que tenhamos a maior taxa de espectadores do país. A nossa frequência no ano passado foi de 250 mil espectadores.

Como explica essa adesão?
A diversidade de espectáculos abrange todo o mercado potencial nos vários segmentos de interesse cultural das pessoas: público jovem ou de idade, ou saudosista de meia idade. Não temos um público-alvo segmentado; temos toda a população da cidade. Os espectáculos do Tony Carreira já estão esgotados, mas a Nona Sinfonia de Beethoven, também está.

É o programa ecléctico que absolve o Coliseu da discussão pública sobre a direcção artística?
Acho que sim. Temos sobretudo uma preocupação com a qualidade. Não apresentamos coisas cuja qualidade consideramos estar abaixo de um nível desejável. A programação depende directamente da direcção e sobretudo de mim. Mas não sou remunerado. Aliás, só aceitei o cargo nessa condição. Hoje, tenho a Graça Barreto a trabalhar comigo, que é especializada em música. Mas antes disso, até as brochuras da ópera, a biografia dos compositores e a sinopse das obras era feita por mim. Optamos por reduzir e requalificar os funcionários.

Quanto tempo dedica ao Coliseu?
É impossível contabilizar, mas é muito. Isto é uma paixão [comove-se]. Venho cá uma vez por semana, mas quando estou na minha empresa recebo sempre telefonemas do Coliseu.

Considera o Coliseu uma sala de acolhimento?
Há uns dias, o Pedro Burmester disse, numa entrevista, que o Coliseu é uma sala de acolhimento. Não é. É, também, uma sala de acolhimento, mas tem produção própria - que isso fique bem claro. É a única casa no Porto que produz ópera. Integralmente.

A ausência de polémicas no Coliseu pode, por ironia , fazer com que pareça subestimado?
Acho que sim. Temos tendência para evidenciar o que corre mal; o que corre bem, não se fala. O Coliseu corre bem. E é preciso considerar que, sendo uma Associação público-privada, com fortes capitais do Estado, da Câmara e da Junta Metropolitana do Porto, não tem um tostão de subsídio.

Vive unicamente das receitas?
Vive completamente das receitas de bilheteira e do aluguer de sala. O Coliseu acolhe muitos espectáculos de produtoras nacionais reputadas, que estão nos circuitos internacionais, porque não podemos ir buscar artistas directamente aos EUA. Mas depois, há os espectáculos que os produtores têm menos apetência para realizar - música erudita, ópera, música sinfónica, circo -, e isso já é da nossa responsabilidade. Completamos essa falha de mercado porque, como temos boas receitas de cedência de sala, podemos investir num lado o que arrecadamos do outro.

Há dois anos, o Coliseu deparou-se com um problema financeiro, que o impedia de suportar as duas óperas anuais. Depois das críticas à Câmara, a questão ficou sanada?
As críticas não foram minhas. O Coliseu negociou há cinco anos um protocolo com o Ministério da Cultura (MC), no qual nos atribuiu 125 mil euros por cada grande ópera que produzíssemos.Tinhamos a expectativa que esse montante aumentasse à medida que provássemos a qualidade das produções, e que nos fosse permitido alargar para três por ano. A situação económica do país implicou um corte no orçamento do MC, não permitindo que isso acontecesse. Uma ópera custa 100 mil contos. A bilheteira, em três récitas esgotadas, rende 25 mil contos. Somando, temos 50 mil contos para pagar uma coisa que custa quase o dobro.

E o resto?
O resto tem sido suportado por patrocínios privados e na maior parte por prejuízos que o Coliseu encaixa. Vamos apresentar agora a "Flauta mágica", que custa 630 mil euros. Para a cobertura temos 250 mil euros. É complicado.

A Câmara devia comparticipar?
Devia apoiar, porque estamos no Porto, somos o único teatro de ópera da cidade, e a ópera é um espectáculo de grande público, não é de elites. Mas entendo que devia ser sobretudo o MC.

Como é que funciona a trilogia Coliseu/Orquestra do Porto/ Círculo Portuense de Ópera?
Há uma relação pessoal excelente entre nós. Reunimos todos os anos. Já temos a programação definida para os próximos três anos em termos de ópera.

Tem alguma expectativa em relação a este Governo?
Tenho expectativas ao nível do financiamento e da redistribuição. Tem havido sectores mais privilegiados que outros. E, geograficamente, a diferença entre Porto e Lisboa é gritante, e já é tempo de acabar com ela.

Frequência do Coliseu , no ano passado, foi de 250 mil espectadores

Se não acreditasse ser capaz de conduzir a Casa da Música ao sucesso, não teria aceite o convite para ser o primeiro presidente da Fundação. José António Barros confessa ter recebido o convite com "espanto", mas com igual "satisfação". O homem que, a partir de agora, irá conjugar a liderança da CM e do Coliseu defende uma articulação apertada entre as duas casas: "Juntas são mais do que o somatório das duas separadas", acredita.

Foi recentemente indigitado presidente da Fundação da Casa da Música (CM). Como recebeu o convite?
Com enorme espanto. Nunca levantei um dedo nesse sentido, mas fiquei satisfeito. Penso que o convite terá tido origem directa no presidente da Câmara, Rui Rio, que depois terá transmitido a sua opção à ministra da Cultura. Mas penso que tem origem, fundamentalmente, nos projectados fundadores privados da Fundação. É o mesmo grupo de pessoas a que estou ligado há muitos anos em Serralves e no Coliseu. Gira sempre à volta do BPI e do Artur Santos Silva.

O seu percurso tem sido pautado por uma enorme discrição, que acabará com a sua entrada na CM. Está preparado?
Vou evitar isso o mais possível. E uma das condições que coloquei, é não abdicar do Coliseu. Estou disponível para, a prazo, abdicar completamente de toda a minha vida profissional de 40 anos, e dedicar-me em exclusivo às instituições culturais. Mas deixar o Coliseu está fora de questão.

Mas é conciliável?
Totalmente. A CM não vai desalojar o Coliseu; vai complementá-lo. Articulando os dois espaços, potencia-se o efeito. É uma soma de valor acrescentado. Juntos são mais do que o somatório dos dois separados. A CM tem um auditório relativamente pequeno, com mil e tal lugares. Aí, a rentabilidade de alguns acontecimentos é discutível. Mas nada impede a CM de contratar um artista, que depois apresentará dois espectáculos em dias consecutivos: um no Coliseu, outro na CM. O espectáculo passa a ter quatro mil e tal lugares de receita.

As salas têm que ser rentáveis?
Lucro, nem pensar. Mas a área educativa tem que ser subsidiada pelo Estado. É uma função que lhe compete. Nessa vertente, assim como na vertente dos agrupamentos residentes, a CM tem que ser apoiada. Na vertente de apresentação e produção de espectáculos, as pessoas têm que ter o bom senso de fazer aquilo que é, pelo menos, possível de equilibrar em termos de custo/benefício. Não podemos continuar na eterna dependência do 'papá Estado' para subsidiar os nossos devaneios. Nada pode ser gerido só artisticamente sem pensar que tudo tem um preço.

Entende que a CM deve produzir e apresentar ópera?
Não tem condições. Não tem teia de palco, não tem possibilidade de usar cenários convencionais. Pode usar novas tecnologias, mas eu viajo bastante para ver ópera e não vejo no Metropolitan, no Scala ou no Garnier óperas virtuais; vejo óperas convencionais, com cenários. De vez em quando, tem graça apresentar uma ópera moderna - sou a favor disso -, mas não é isso que sustenta uma temporada de ópera e não é isso que o público deseja. A CM também não tem fosso de orquestra, logo não tem condições para fazer obras de repertório. Terá que articular esse aspecto com o Coliseu.

A ausência do fosso de orquestra pode ter sido um esquecimento?
Não admito que tenha sido um esquecimento. As pessoas que estavam à frente da CM são inteligentes. Foi uma opção.

Partilha a reserva de Couto dos Santos, anterior presidente do Conselho de Administração, quanto à existência do Estúdio de Ópera na CM?
Não havendo a possibilidade ou a opção de fazer ópera na Casa da Música, não faz nenhum sentido haver um Estúdio de Ópera.

Mas é um dos projectos mais arrojados da Casa da Música...
Não é. O projecto mais arrojado, inteligente e interessante é a área educativa. Isso é que faz a diferença e justifica a CM. É o que nós precisamos e não temos. O Remix Ensemble faz sentido, porque é um agrupamento interessantíssimo, já com uma qualidade notável. E faz igualmente sentido a integração da Orquestra do Porto na CM. A Casa terá uma vertente dos agrupamentos, que serão a Orquestra, o Remix e o projecto educacional. Depois, será uma sala de apresentação de espectáculos como o Coliseu do Porto.

Defende a integração da Orquestra em que moldes?
Não deve manter a autonomia, mas ser parte integrante da CM. Os músicos da Orquestra, alguns verdadeiramente bons, podem dar aulas, cursos e 'masterclasses' na própria Casa da Música.

A Casa da Música pode vir a ser uma paixão como é o Coliseu?
Tenho o mau feitio de abraçar os desafios profissionais como causas quase pessoais. Isto tem defeitos porque há uma personalização da gestão da direcção, mas tem a vantagem do empenho e dedicação da pessoa. Se ficar à frente da Casa da Música, vou fazer o mesmo esforço que fiz no Coliseu. Se vou conseguir ou não, não sei. Mas estou convencido que tenho possibilidades de ser bem sucedido, senão não tinha aceite.

A sucessão de polémicas que tem perseguido a Casa da Música explica a desmotivação dos empresários para ali investir?
Não. A CM é um equipamento de tal visibilidade e importância, que vai haver uma grande apetência das empresas para patrocinarem a Casa da Música, determinados ciclos ou áreas musicais. Este passado menos pacífico não terá influência. As pessoas rapidamente vão esquecer estas pequenas querelas, que foram excessivamente fulanizadas. O que interessa é o projecto. Não interessa criticar o que falta; interessa pegar no que existe e que é muito bom.

Gostaria de contar com a colaboração de Pedro Burmester?
Águas passadas não movem moinhos. Neste momento, não posso dizer mais nada. Eu ainda não sou nada. Não fui nomeado; fui apenas convidado, e aceitei o convite. Sei que comigo estará Nuno Azevedo, a Cristina Amorim, Fernando Guedes e Ferreira de Oliveira. É o que eu sei. Como vamos gerir, como é que, entre nós, vamos repartir funções, o que é que cada um vai fazer, não lhe sei ainda dizer.

Mas aceita que, a um mês da abertura da CM, as pessoas que se mobilizaram para defender o Coliseu serão, provavelmente, as mesmas que gostariam de assistir ao regresso do pianista?
Repito: não tenho nenhum 'parti pris' sobre essa questão. Não sou contra nem a favor.

Aprova o recrutamento de um director artístico estrangeiro?
Não conheço o quadro em que isso aconteceu, não conheço o Anthony Withworth-Jones, não conheço os seus méritos, as suas competências, nem sequer tenho informação sobre o seu currículo, portanto não me posso pronunciar. À partida, não reprovo. Não vejo que seja um disparate ir buscar um director de fora. Mas também não vejo que seja essencial.
O projecto mais interessante e arrojado da Casa da Música é a área educativa