não ter alternativas"
Beatriz Batarda não sabe com que filme ganhou o Globo de Ouro, prémio que a distinguiu pela segunda vez como melhor actriz. "Ninguém me disse e eu não perguntei". Nomeada pela tragédia grega "Noite escura", de João Canijo, e "A costa dos murmúrios", olhar feminino de Margarida Cardoso sobre a guerra colonial, a actriz consagra-se como a figura mais prestigiada da actualidade. Mas, para ela, os requintes da fama são pouco relevantes. "Há dois anos, era a mesma pessoa e hei-de ser sempre". Beatriz tem uma filha bebé e a capacidade de fazer inúmeras coisas ao mesmo tempo. Durante a entrevista, brincou com Maria, alimentou-a, chegou a ensinar-lhe os primeiros passos. No fim do mês, estará no Teatro Nacional S. João, no Porto, com "Berenice", de Jean Racine. Antes, estreia em Inglaterra a comédia "It's all gone Pete Tong".
(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 7 de Maio de 2005)
Para quem não cresceu a querer ser actriz, o seu percurso, preenchido agora com o segundo Globo de Ouro, é uma sucessão de acasos?
Quando digo que não cresci a querer ser actriz é um bocadinho aldrabice. Até aos 18 anos sonhei com outras coisas. Depois, comecei a trabalhar e o interesse foi crescendo. Aos 23, fui estudar teatro para Londres; agora tenho 31 anos, ou seja, já cresci muito a querer ser actriz [risos]. No início, foi um acaso. Desde então, houve muito investimento, vontade de aprender. Não vivo de outra coisa.
O facto de os Globos serem o único prémio nacional, tem um valor acrescido?
Foi a terceira vez que fui nomeada, e a segunda que ganhei. [A primeira foi com "Quaresma", de José Álvaro Morais]. No estrangeiro, o cachet passaria a ser mais elevado; aqui significa o reconhecimento do público e o interesse dos media pelo cinema e teatro. Este ano não foi o público a votar. É mais equilibrado, porque o grosso da população não vê as peças, nem vê filmes portugueses.
Sente-se a actriz portuguesa a viver no estrangeiro que regressa como uma espécie de estrela convidada?
Não. Sinto-me em casa nos dois países. Vou para onde houver trabalho. Só fui para Inglaterra estudar - nunca fez parte dos meus planos trabalhar lá. Aconteceu, e quero alimentar isso, para me proteger. Evita a sensação de me sentir presa a um só mercado.
Em Portugal, os actores são obrigados a fazer telenovelas para sobreviver. Equacionaria essa possibilidade?
Nunca equacionei. Só faria novela se tivesse mesmo que fazer. Tenho tido o privilégio de poder escolher. E tenho pena que haja belíssimos actores a fazer novela, porque não só estão descontentes como se desgastam. A televisão expõe os actores de forma muito injusta.
Saiu de Portugal porque sentia "uma certa claustrofobia". O sufoco era profissional?
A claustrofobia não está nos outros; está em nós. Teve a ver com nos deixarmos pressionar, seja pelas expectativas dos outros, seja pelas prisões que nós próprios criamos. Precisei sair para perceber isso. Achava que era um problema do exterior em relação a mim. Mas não é. Os modelos repetem-se seja onde for. Portugal é um país pequeno. Quando as coisas são pequenas, naturalmente, esgotam-se mais rapidamente: conhecem-se as pessoas, incompatibilizam-se, apaixonam-se e desapaixonam-se mais depressa. Mas o que me assusta é não ter alternativas. No fundo, é complicado ser-se sempre honesto connosco próprios no trabalho, fazer sempre aquilo em que acreditamos e que gostamos e não o fazermos só porque não temos outro remédio.
Em Inglaterra já interpretou personagens cómicos em televisão, que é outra vertente a que Portugal nunca assistiu?
Porque nunca me convidaram. Aqui ninguém me acha graça nenhuma... [risos]
Na representação, como na música, a língua condiciona o significado?
É complexo porque na estrutura latina as frases são muito rebuscadas, usa-se muito o adjectivo. O francês, o italiano e o espanhol também usam e, no entanto, fazem bom teatro e cinema. Em português também é possível. Mas estamos preguiçosos da nossa própria língua. Por outro lado, o inglês provoca sensações imediatas, tem uma vivacidade que as línguas latinas não têm.
Desistiu do curso de design devido à morte de uma pessoa próxima. O desaparecimento de José Álvaro Morais, que conhecia desde pequenina?
Se pensei deixar de representar? Passou-me pela cabeça, mas percebi que era uma tontaria. É frequente o actor, ciclicamente, querer deixar de o ser. É uma profissão muito absorvente, esgotante e limitativa. Não sabemos fazer nem falar de mais nada. E há alturas em que gostaríamos de poder ter sido outra coisa. A morte dele espoletou um desses ciclos, mas já me passou. O que não passou foi a saudade.
Já disse que muitos realizadores querem trabalhar consigo, mas nenhum interessado em fazer o que lhe apetece. O que é?
Não sei [risos]. Disse isso quando morreu o Zé Álvaro porque me senti muito só em termos criativos. Tinha uma relação com ele bastante simbiótica e isso não é repetível. Correndo o risco de ser um bocadinho pretensiosa, havia alturas em que sentia que nos complementávamos na forma de filmar. Fiquei muito preenchida em termos criativos, e muito cheia de mim própria - também sou vaidosa, também me deixo afectar por essas coisas. E encantar.
"É verdade que copio coisas"
Perturbada, Ana, a menina-mulher de "Quaresma", do realizador falecido no início do ano passado, José Álvaro Morais, terá sido a experiência cinematográfica mais marcante de Beatriz Batarda. "Nesse filme, não havia separação entre a personagem e eu". A actriz não justifica, mas assegura que não o voltará a fazer. Apesar de ter ganho maior visibilidade no cinema, é no teatro que sente maior tensão. "O palco dá uma descarga grande de adrenalina; no cinema temos que a provocar", reconhece.
Regressou ao teatro ao fim de dois anos para protagonizar "Berenice", de Jean Racine. O palco é mais assustador do que a tela do cinema?
Com a minha ida para Inglaterra, ganhei maior visibilidade com o cinema, mas o teatro sempre fez parte do meu processo. Não é produtivo para os actores fixarem-se num só formato. Para aquilo que me apetece construir, seria limitativo ficar fechado num só estilo. No teatro existe, espontaneamente, com o facto de ser ao vivo, efémero, falível, de não haver repetições, de podermos perder a atenção e o interesse do público a qualquer momento. O palco dá uma descarga grande de adrenalina; no cinema temos que a provocar.
"Berenice" é uma história de vingança ou de resignação?
Não é uma vingança. E não sei se é uma história de resignação. Há uma aceitação, que tem a ver com o crescimento. Ser adulto é saber aceitar. Aceitar para evoluir. Berenice percebe que, como ser individual, não vale o caos de um império inteiro. Ela aceita a sua insignificância.
E aceita abdicar do amor...
Sim. Mas só é capaz de o fazer porque Tito - filho do imperados romano, que foi obrigado a optar pelo reino em detrimento dela -, quando Berenice apresenta a decisão irrefutável de morrer, diz que também morrerá. E ela não quer isso. Berenice, rainha da Palestina, começa a peça na ingenuidade de poder oficializar aquele amor. Quando é confrontada com a separação, vê como única solução possível a morte. Não foi uma estratégia feminina para chamar a atenção. Nela, tudo é impulso, cegueira de paixão.
Há diferenças entre o processo criativo teatral em Portugal e em Londres?
O processo de trabalho do actor é sempre individual. Em Portugal as coisas são igualmente profissionais, rigorosas, capazes. A diferença está na língua e, obviamente, nas personagens. Em Inglaterra, nunca teria a oportunidade de fazer a Berenice ou outro protagonista desta dimensão, com esta responsabilidade. A língua portuguesa tem uma ressonância e um passado emocional em mim que a língua inglesa não tem. Quando digo "amor", "solidão", "desgosto", essas palavras ganham cor, textura. Quando o som sai, sente-se. Em inglês tenho que o construir. É uma coisa mais artificial.
O seu agente inglês não defende as suas participações no teatro em Portugal, porque diz não haver público. Concorda com essa perspectiva?
Um agente quer que o actor trabalhe para o poder mostrar a empregadores - e angariar mais trabalho. Ora, essas pessoas não estão em Portugal. O público vê teatro português, embora não seja possível comparar qualquer teatro do West End com o Teatro Nacional. Cá, o teatro sente-se cheio quando tem a plateia cheia e os balcões vazios. Em Londres, o teatro está cheio até aos galinheiros. Mas o público são estrangeiros que estão, temporariamente, a viver em Londres. Na "Berenice", temos o público que é possível ter. A peça, que é do século XVII, é complicada; não é para relaxar ou entreter.
João Canijo, com quem fez a "Noite escura", define-a como "actriz do método". E diz que isso se deve à escola inglesa...
Sou metódica. A "Noite escura" requereu muita preparação. Não estávamos a representar; estávamos a tentar ser aquelas pessoas. Fizemos um estágio em casas de alterne, convivemos com pessoas daquele meio. Era um trabalho que precisava disso, senão corria o risco de se transformar numa farsa, porque aquilo é tão real que poderia ser visto quase como uma anedota.
Que imagem guarda de Portugal depois desse tempo que passou nas casas de alterne?
É um bocadinho assustador, medieval, primário. Mas tenho a consciência de que Portugal não e só aquilo. Na altura achava que era, mas já me passou.
Concorda com a crítica francesa, que descreve o filme como uma "visão desesperada do mundo"?
A crítica francesa não se pode identificar com o filme, porque é muito mais intelectual. O filme precisava de ter sido bem apresentado, porque é 'underground'. Não só porque fala desse mundo subterrâneo, mas também pela forma como é filmado. Pela sua rudez. Não é um filme agradável e bonito, de encher os olhos.
É mais confortável trabalhar com um cineasta que prevê tudo, como João Canijo, ou com um adepto do improviso, como era José Álvaro Morais?
Gostei muito dos dois. A Carla, de "Noite escura", não estava completamente pensada. Tinha, apenas, a base da personagem em termos de tensão física, que seria provocada pela actividade profissional dela, pela noite, pelas limpezas. Isto combinado com os problemas emocionais, a disfunção familiar. Essas coisas despertam-me interesse. E estava programada a forma de falar, com uma certa cadência que tentei roubar à Rita Blanco [mãe de Carla], para criar alguma familiaridade na voz. No "Quaresma", não tive acesso ao guião. O Zé Álvaro contou-me a história e dava-me, diariamente, os diálogos. Nesse filme - não é necessariamente bom e, se calhar, não volto a fazê-lo -, não havia separação entre a personagem e eu [pausa]. Foi uma fase em que havia mesmo uma Ana a viver dentro de mim.
A Evita de "A costa dos murmúrios" tem a sua idade. Houve identificação nos ideais?
Ela é confrontada com o exemplo máximo de racismo, de fascismo, de falta de direitos humanos e isso dá-lhe uma profunda solidão. Parece um filme belo, mas é muito violento. Ainda tenho ideais - espero conservá-los sempre -, mas já não fico deprimida nem vou para casa chorar com as injustiças do mundo.
Por que é que tem necessidade de dizer que copia coisas?
Porque é verdade. É difícil acusar um actor de fazer plágio. As coisas podem ser sempre transformadas. Digo isso porque as pessoas levam-se muito a sério, e não devem. Apesar de ter 31 anos, não sou nenhuma jovem. Há actores muito mais jovens e é importante ter alguma humildade. Não há nada que não tenha sido já inventado, na música, no teatro ou no cinema. É preciso ter consciência disto: devemos fazer o melhor que pudermos, mas não nos acharmos muito especiais, porque como nós há muita gente. Passei a questionar-me sobre isto por causa desta história dos prémios e do vedetismo. Há dois anos, eu era a mesma pessoa e hei-de ser sempre. O mundo da fantasia é só nas histórias; fora delas as pessoas são pessoas.
Confissões
"Manoel de Oliveira é difamado no seu próprio país"
Beatriz Batarda reage fervorosamente quando o tema é Manoel de Oliveira, com quem filmou "Vale Abraão", em 1993, e "A caixa", no ano seguinte. "É vergonhoso dizerem à boca cheia que não gostam do cinema dele quando, na maior das certezas, nunca viram nenhum filme. Isso envergonha-me, não me identifico com essas pessoas, incomoda-me que o façam", diz a actriz a subir o tom da voz. "De ninguém se deve dizer que não se gosta sem nunca se ter visto, só porque um comediante ou um apresentador de um talk-show decidiu fazer graças sucessivas sobre ele", admite. "Durante anos, Manoel de Oliveira foi alvo de chacota e tema para graças infantilóides. Difamou-se assim o trabalho de um artista sério, respeitado em todo o mundo. Só em Portugal ninguém o respeita. Ou melhor, respeita vagamente porque os estrangeiros também respeitam. Mas isso, para mim, não vale nada. E, por isso, é que eu fico tão sensível", justifica. "Em Portugal promovem-se esses actos de difamação com a maior leviandade e as pessoas saem impunes. Isso entristece-me".
Beatriz Batarda reage fervorosamente quando o tema é Manoel de Oliveira, com quem filmou "Vale Abraão", em 1993, e "A caixa", no ano seguinte. "É vergonhoso dizerem à boca cheia que não gostam do cinema dele quando, na maior das certezas, nunca viram nenhum filme. Isso envergonha-me, não me identifico com essas pessoas, incomoda-me que o façam", diz a actriz a subir o tom da voz. "De ninguém se deve dizer que não se gosta sem nunca se ter visto, só porque um comediante ou um apresentador de um talk-show decidiu fazer graças sucessivas sobre ele", admite. "Durante anos, Manoel de Oliveira foi alvo de chacota e tema para graças infantilóides. Difamou-se assim o trabalho de um artista sério, respeitado em todo o mundo. Só em Portugal ninguém o respeita. Ou melhor, respeita vagamente porque os estrangeiros também respeitam. Mas isso, para mim, não vale nada. E, por isso, é que eu fico tão sensível", justifica. "Em Portugal promovem-se esses actos de difamação com a maior leviandade e as pessoas saem impunes. Isso entristece-me".
A nova comédia do DJ surdo
No novo filme "It's all gone Pete Tong", que estreia em Inglaterra no dia 26, Beatriz Batarda é Penélope, uma professora de surdos. "Sou professora, mas nunca apareço a dar aulas", diz a rir. O filme, realizado pelo canadiano Michael Dowse, é uma comédia negra que relata a ascensão e queda de Frankie Wilde, carismático DJ da cena de Ibiza que tem de lidar com a surdez depois de uma vida de excessos com drogas. "O protagonista é um DJ que fica surdo e, depois de muito sofrimento, decide fazer qualquer coisa para viver com o problema. Vai a uma escola de surdos e conhece esta professora, que também é surda, por quem se apaixona - e que o ensina a sentir a música de forma diferente", revela a actriz. "Isto parece uma coisa muito séria e sentimental e recheada de sentimentos nobres, mas não é. É uma comédia cheia de clichés. É um disparate do início ao fim sobre os DJ, os ingleses e a vida de 'clubbing' e 'pastilhame' em Ibiza". O elenco integra, além do par Beatriz Batarda /Paul Kaye,uma série de disc-jockeys reconhecidos, como Tong, Carl Cox, Tiësto ou Charlie Chester.
Filmografia
Alice (2005)
It's all gone Pete Tong (2004)
A Costa dos Murmúrios(2004)
Noite Escura (2004)
Amnesia (2004)
The Forsyte saga: To let (2003)
Quaresma (2003)
Pexe Lua (2000)
O que te quero (1998)
Elles (1997)
Porto Santo (1997)
Dois dragões (1996)
A Caixa (1994)
Vale Abraão (1993)
Tempos Difíceis (1998)
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