"Sei reconstruir-me apenas na tristeza"
Aldina Duarte editou primeiro CD de fado tradicional em 2004. A fadista percebeu, aos 20 anos, que nunca tinha visto uma vaca. "Como é possível nunca ter visto realmente uma vaca?", pergunta, desfeita numa gargalhada afinada. "Fui logo a Sintra". A vida da fadista, que já trabalhou num centro de paralisia cerebral, no arquivo da editora EMI, no teatro e na Cinemateca, é feita disto: de questões que não pára de se colocar, de desafios que o medo não impede de vencer. "Sou insegura. Mas não deixo de arriscar". Visitou uma casa de fados aos 24 anos e percebeu que era aquilo que tinha procurado a vida toda. "Não sei o que é alma de fadista. Mas sei quando ela aparece.E sei que ela vive em mim". A confissão, dita com o rigor das certezas absolutas, não anula os tremores que sente quando sobe ao palco."Sei muito pouco da calma. Tenho pena, mas não está no meu carácter. Deus permita que nunca deixe de cantar". Aldina é o fado que canta.
(Entrevista realizada por Helena Teixeira da Silva, no Jornal de Notícias, em 11 de Setembro de 2004)
Na adolescência já consumia fado?
Não. Ouvia compulsivamente José Mário Branco, Fausto, Jorge Palma e Sérgio Godinho. Andam comigo desde os 12 anos. Estava a descobrir Jim Morrison, Rolling Stones, Beatles, Genesis. E o Peter Gabriel, que começou a fazer a carreira a solo. Sou completamente obcecada por ele. E lembro-me de estar a descobrir também a Billie Holliday.
Ouvia os cantores de intervenção. Já os associava à revolução?
Cresci, obrigatoriamente, com uma consciência social clara. Qualquer criança com seis anos, que vivesse nos universos que vivi, ganhava uma consciência social natural. É tão visível a discrepância entre ser pobre e ser rico. Eles deram forma a isso. A consciência política é ainda mais funda. A política podia ser uma ciência tão séria como a medicina, se fosse exercida na sua essência. Mas eles fizeram mais: fizeram-me sentir acompanhada. E despertaram a minha curiosidade para saber mais, e mais sobre o Mundo. Alertaram-me para aspectos do ser humano que não imaginava, a nível sentimental e ideológico. Nesse sentido, são amores da minha vida.
Acreditava neles como veículo de mudança?
Acreditava. E acredito. Mudaram muita coisa, ainda que, na prática, as coisas estejam nesta reviravolta. Somos bebés em termos de liberdade. Continuam a ser a minha referência. Ouço os mesmíssimos discos que ouvia aos 12 anos, e percebo a utilidade e a necessidade que continuam a fazer aquelas palavras, aquela forma de sentir, aquele despertar.
No entanto, não foi a música a primeiraexpressão artística a seduzi-la...
Foram os livros, mesmo enquanto objecto. Tive sempre o desejo de saber ler. É a coisa mais sagrada do Mundo. O que mais me toca é o poder que as palavras podem ter entre as pessoas. O gesto, o abraço, são lindíssimos. Mas sinto que nos tornamos brilhantes no uso que fazemos da palavra. É misterioso, porque uma palavra muda tudo. Ler é o privilégio máximo para poder chegar a todo o lado. O que é hoje uma pessoa que não sabe ler? Ler é uma forma de falar comigo. Falar comigo própria ensina-me a falar com os outros.
A paixão pelo fado explica-se pelo peso que dá à palavra?
De certa forma, apesar de ter surgido mais tarde. Sempre fui sensível à música das palavras. Quando percebi que havia pessoas que cantavam para falar a cantar... É lindíssimo, não é? Margueritte Yourcenar diz: "A palavra escrita ensinou-me a ouvir a voz humana".
Com toda a modéstia, é exactamente o que eu sinto. O fado é a expressão artística que mais privilegia a palavra. Quando o ouvi, senti que era dali. Não sei como, nem porquê, mas sabia que tinha que fazer parte da minha vida.
Tinha 24 anos quando entrou numa casa de fados pela primeira vez...
Fui ao Bairro Alto ouvir a Beatriz da Conceição. E percebi que queria ser dali. Era daquilo que andava à procura. E, no fim, tive tanta, mas tanta vergonha... Como era possível ter crescido sem saber nada daquilo? O fado é uma arte muito profunda. Não é por acaso que perdura neste contexto tão adverso, desde sempre, e se calhar, para todo o sempre. Foi um tremor de terra. Não me imagino a viver sem fado, nem que deixe de cantar. Deus permita que isso não aconteça.
Nessa altura, trabalhava num centro de paralisia cerebral. Como passou a integrar o fado nessa sua vida?
Integrei-o no quotidiano como uma refeição. Quando me apaixono, fico com energia redobrada. Não me cega; alarga-me a visão. Preciso mesmo dormir oito horas para estar desperta, mas, apaixonada, durmo quatro, e sinto-me bem. Passei a ir todas as noites às casa de fado, sobretudo onde estava a Beatriz. Passava noites a falar com ela, pedia-lhe sugestões, fiz tudo o que ela mandou sem questionar nada. Tive sorte, porque ela é um talento único e muito raro. No meio disto tudo, quando dei por mim, já estava casada com um fadista.
Quando decidiu que não queria só ouvir fado, que também queria experimentá-lo?
Sempre cantarolei, mas nunca me levei muito a sério. Quis experimentar, de facto, mas tinha que ter um repertório de 12 fados, saber os tons, saber interpretar minimamente. Criei as Noites de Fado, no Teatro da Comuna, e correu muito bem. Cantava fados menos conhecidos dos fadistas que mais gostava. Tive a certeza que queria ser fadista, mas tinha que ter aquela espécie de nota mínima necessária para a faculdade. Então, fiz tudo a sério, de acordo com o que mais me tinha tocado. Venero os rituais do fado - aliás, adoro rituais. Gosto de celebrar os acontecimentos importantes, gosto de chorar os acontecimentos tristes, rituais de partilha. Há uns anos que consigo fazer uma coisa que agora não se faz: reunir um grupo para conversar. É difícil mas ainda consigo. São pessoas mais velhas...
Sempre teve amigos mais velhos?
Sempre tive poucos amigos. Os que tenho, são todos mais velhos.
Mas sou muito sozinha. Nunca tive um grupo de amigos. Nunca tive a melhor amiga. Não sou nada de ídolos, de endeusar pessoas. Tenho três ou quatro amigos, que não têm nada a ver entre si, mas que são igualmente fundamentais na minha vida.
As Noites da Comuna abriram-lhe portas?
O Mário Pacheco abriu um clube de fados e convidou-me para cantar todas as noites.
Foi como entrar para a faculdade...
Exactamente. E saí do centro de paralisia. Não tinha vocação. Ao fim de três anos e meio estava completamente esgotada, quase deprimida. Quando temos vocação, a adversidade pode fazer-nos ir para a frente; quando não temos, destrói-nos e torna-nos piores. Sou insegura em muitas coisas, mas nunca deixo de arriscar por causa do medo. Não me imagino sem medos ou sem inseguranças. Aí sim, ficaria desequilibrada.
Exactamente. E saí do centro de paralisia. Não tinha vocação. Ao fim de três anos e meio estava completamente esgotada, quase deprimida. Quando temos vocação, a adversidade pode fazer-nos ir para a frente; quando não temos, destrói-nos e torna-nos piores. Sou insegura em muitas coisas, mas nunca deixo de arriscar por causa do medo. Não me imagino sem medos ou sem inseguranças. Aí sim, ficaria desequilibrada.
Não teve medo de sugerir a Carlos do Carmo que queria gravar um disco?
Sentia que estava na altura de o fazer, mas tinha dúvidas, e gosto da ideia de ter alguém que sabe mais do que eu. Queria gravar um disco a cantar letras próprias no fado tradicional, que é o que me seduz completamente. Se calhar ainda não sou a fadista que queria ser, mas a fadista que já sou faz sentido. O Carlos do Carmo concordou, mas disse que tinha que treinar primeiro. Não gravei logo. Ainda cantei cerca de ano e meio.
Como uma espécie de estágio?
Sim. Depois, com o Francisco Leal, amigo de muitos anos, o Carlos Manuel Proença (viola) e José Manuel Neto (guitarrista), pessoas de talento raro, arriscamos tudo. Na altura, ainda punha a hipótese de fazer um empréstimo. Mas eles disseram que não tinha que pagar nada. Arriscariamos todos. A motivação foi meramente afectiva. A EMI, onde trabalhava, pediu-me para me comprometer a mostrar-lhes o disco primeiro, e aceitei. Quando o ouviram, assinamos contrato para quatro anos.
Resistindo sempre à vaga do fado novo e insistindo nas suas próprias letras...
A minha motivação nunca é o que está na moda; é o que me faz sentir. Vi passar toda uma geração que seguiu outros caminhos, que não são o meu. O que me seduz nesta arte é o quotidiano, a forma de vida. A ideia de gravar discos e dar espectáculos só por si nunca me atraiu. Quanto às letras, não tenho qualquer comprometimento com a escrita. Mas tive urgência de dizer determinadas coisas, num momento de grande solidão afectiva. Ainda preciso cantar isto por palavras minhas. Não amadureci o suficiente. Uso o fado para me libertar, para ir mais e mais fundo. E acho que é para isso que estamos cá. Para que as pessoas possam reconhecer o seu sofrimento e libertar-se dele. Além disso, tenho pudor de usar as palavras dos outros.
"Apenas o amor" é um compêndio de músicas tristes. Mas o fado não tem que ser triste...
O meu fado é mais triste porque ainda não descobri a alegria com a mesma intensidade com que descobri a tristeza. Estou habituada a reconstruir-me na tristeza; ainda não sei o que é reconstruir-me na alegria. É uma realidade minha, aceito-a, e acho-a muito bonita.
Mas também quero aprender a alegria - até como intérprete é fundamental -, porque sinto que é tão profunda quanto a tristeza. Vejo isso nas crianças. Mas ainda só sei crescer na tristeza.
O advérbio do título, "apenas", contém alguma ironia?
A ironia é o contra-senso de dizer "apenas". Porque o amor é tudo. A ideia é do Carlos do Carmo. Mas o problema é quando o amor não se manifesta, e nós não o conseguimos exercer...
O fado tem essa vantagem de lhe permitir viver à noite, que é uma das suas coisas preferidas...
Também preciso muito das tardes. Não sou de dormir o dia todo, nem gosto de me deitar já com a luz do dia. Mas, se pudesse deitava-me sempre às cinco da manhã, e levantava-me à uma da tarde.
Por que é que diz que o fado apurou a sua sensibilidade para as pessoas?
Porque foi com o fado que ganhei consciência do outro. Vive tanto da interpretação, da autenticidade e do carácter único de quem o está a cantar, que tenho que ter a generosidade de o partilhar com pessoas desconhecidas, à distância de um metro. Isto muda o meu olhar sobre o outro. Senão para que é que estava ali a dar-me naquela intimidade toda? Poder fazer disto um modo de vida é lindíssimo. Tive que ganhar um respeito pelas pessoas para poder exercer bem a minha arte. Sem esse respeito não conseguiria fazer nada.
Gostava que o fado tivesse o peso interventivo que tiveram os discos que ouve desde os 12 anos?
Gostava de me tornar mensagem. É a minha maior ambição. Mais do que ser famosa, ou muito conhecida, gostava que a mensagem de um tema que canto ficasse para todo o sempre.
Confissões
Vai desistir da tranquilidade?
"Quando meto uma coisa na cabeça, vou até ao fim. E meti na cabeça que hei-de viver grandes emoções sem perder a serenidade. Revejo-me mais na adrenalina" - na adrenalina dos cheiros que experimentou em Marrocos, no movimento do Rio de Janeiro -, "mas sei que preciso de procurar a serenidade." Sabe que ainda não completou o caminho. "Quanto menos sei, mais medo sinto. Estou a meio do meu caminho".
"Sonho atrair pessoas para o fado"
Ela sabe que as pessoas gostam dela, independentemente do que canta. "Não me importo, mas, às vezes, tenho medo que isso suplante a minha arte. Não quero que eu, Aldina, me torne mais importante que o fado". Respira fundo, sorri, e atira para a mesa como quem tira do bolso, o desejo. "Tenho um sonho", confessa. "Gostava de pensar que contribuí para atrair um maior número de pessoas para esta arte. Se por minha causa, alguém descobrisse o Alfredo Marceneiro, ou começasse a ouvir o Camané de outra forma, ou passasse a dar mais valor a alguns aspectos da vida... [gargalhada]... adorava". E se o sonho se concretizar? "Se acaso realizo um sonho, arranjo logo outro. Gosto de ter este estado de sonho dentro da minha cabeça. Preciso disto. E não me importo quando eles não se realizam. Não vivo sem eles".
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