Chegou na passada sexta-feira de Nova Iorque o escritor que fala como escreve. Com açúcar derretido. E é, como parece, melodioso, sossegado, alado. José Luís Peixoto, que recolheu o Prémio José Saramago ao segundo livro, viveu, durante três meses, na Colónia Internacional de Escritores de Ledig House, com uma bolsa de criação do Instituto Português do Livro e da Biblioteca. "Foi muito bom. Conheci o método de trabalho dos escritores dos Estados Unidos. São mais pragmáticos, eficazes, vão directos ao assunto", confessou, na sua voz pausada, sentado nas costas de uma das cadeiras do Auditório do Centro de Arte Contemporânea, da Gulbenkian, em Lisboa. Ao fim da tarde.
(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 29 de Outubro de 2002)
"Quando fui distinguido por 'Nenhum olhar' - uma história sobre a traição vista pelo lado de quem trai -, estava a meio do romance que lança, hoje, nas livrarias, a par de um livro de poesia."Costumo dizer que é um livro de poemas escrito a pensar no romance, também ele escrito a pensar nos poemas". Dito de outra forma: "São dois livros complementares, mas independentes". "A Casa na escuridão" é uma história de amor.
O pai no primeiro livro
A dois anos de distância dos redondos 30, que encara com "naturalidade", o pai de um menino de seis anos lançou o primeiro livro - uma edição de autor, com 500 exemplares - quando, ele próprio, perdera a sua figura paterna. Tinha 21 anos e colaborava com o DN Jovem, onde viria a publicar o primeiro capítulo. "Nunca imaginei que pudesse vir a ser um livro. Mas depois de publicar aquele início, pareceu-me que precisava escrever mais sobre isso", recorda.
"Faltas tu a levar o tempo. Falta o teu olhar a guiar-nos se a chuva nos puxa. Pai, ter a tua memória dentro da minha é como carregar uma vingança...", lê-se em "Morreste-me" - a mais comovente das cinco obras do autor. O texto - doloroso, porque "escrito em cima do acontecimento"-, é, ainda hoje, "fundamental". Aquela confissão sobre a perda do pai, que nunca teve coragem "de sujeitar à opinião de um editor", apresentar-lhe-ía a direcção, pessoal e literária, que pretende seguir. "Procurar mais a verdade do que a beleza, sendo que não são conceitos que se excluem".
Deste livro, de cujos direitos abdicou a favor da Liga Portuguesa Contra o Cancro, José Luís Peixoto sublinha que "não mudaria, tantos anos depois, um adjectivo, um substantivo, uma palavra sequer".
"Escrevo a minha vida"
Quem entra na obra - nos livros ou nas crónicas que continua a escrever para vários jornais - do escritor de piercing a iluminar a sobrancelha e o ouvido, fica com a sensação de estar a assaltar-lhe a vida. Não será um acometimento. É ele quem a oferece. "Aquilo é a minha vida. Ponto final", consente. E esclarece. "Não só aquilo que escrevo envolve o que é a minha vida, como a minha vida entra e se deixa envolver por aquilo que escrevo". Apesar disso, salvaguarda, "por muito ricos que os textos sejam, a realidade é riquíssima". Daí que, acrescenta, "muitas vezes, a descrição da realidade não deixe de ser ficcional".
No Jornal de Letras, onde habita a penúltima página, com uma coluna denominada "Verdades quase verdadeiras", há uma técnica, quase quilométrica, que se denuncia. "O facto de ter reacções imediatas daquilo que escrevo na imprensa leva-me a usar aquele espaço para experimentações. Tento perceber até que ponto aquilo seria viável num texto mais longo".
Ritmo aleatório da poesia
Foi, no entanto, a poesia que o despertou para o universo literário."Foi a primeira coisa que escrevi. Muito cedo. E, desde então, continuo, mais ou menos no mesmo ritmo, que é aleatório. Escrevo prosa e ficção todos os dias. Mas poesia, escrevo só quando tenho que escrever. Quando um poema chega".
"No tempo em que éramos felizes o horizonte tocava-se com a ponta dos dedos/ As marés traziam o fim da tarde e não víamos mais do que o olhar um do outro/ Brincávamos e éramos crianças felizes/ Às vezes ainda te espero como te esperava quando chegavas com o uniforme lindo da tua inocência/ Há muito tempo que te espero/ Há muito tempo que não vens".
O poema integra a "A criança em ruínas". "É um livro que fala sobretudo do crescimento, de algumas ilusões que caem e se transformam em ruínas", sustenta o autor. Muitas vezes o "eu" do poema é ele. Sem segredos. Mas o gosto que tem em partilhar textos com os leitores, deixa-o embaraçado com as pessoas que conhece. "Tenho um certo pudor em mostrar o que escrevo a quem me conhece. Fico envergonhado", confessa.
Peso da responsabilidade
Alentejano, licenciado em Línguas e Literatura Moderna, José Luís Peixoto tem ar de infante, com medo do escuro. Uma imagem que não corresponde à realidade. "Acho mesmo que temos que tentar ser felizes. Por isso, combato todas as minhas inseguranças", diz, sempre a sorrir.
Cada livro publicado tem várias edições. E todos estão a ser traduzidos para vários países do Mundo. "Nenhum olhar" integrou o programa da cadeira de Literatura Portuguesa da Universidade de Santiago de Compostela. E Saramago elogiou-lhe a qualidade de escrita.
A velocidade do reconhecimento insuflou-lhe o ego? "Trouxe-me responsabilidade. Só quem for cego pode deixar que o que quer que seja lhe suba à cabeça", conclui.
"Uma casa na escuridão" é uma metáfora sobre o amor. É a história de um escritor que se apaixona pela personagem de um dos seus livros. "O escritor está muito próximo da personagem, foi ele que a criou, ela está dentro dele, mais perto não seria possível.Mas, ao mesmo tempo, está muito longe, porque ela não é um ser físico. Ele não a pode tocar. Nesse sentido, está distante", explica José Luís Peixoto.
Esse amor, coluna vertebral de todo o romance, está em harmonia com tudo o que acontece na comunidade.Se acontecem coisas menos boas no amor, isso refletir-se-á nas histórias da sociedade. Daí nascerá um lado cruel do romance.
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