quarta-feira, setembro 01, 2004

Jacinto Lucas Pires


"Carreira e Obra são palavras
que me assustam um bocado"

Se não fosse Lucas Pires, como o pai, chamar-se-ia Almeida Garrett, como a mãe. De qualquer forma, as más-línguas nunca o poupariam ao apelido. Optou pelo primeiro, "com orgulho". E dedica-se, "se é que isto pode escolher-se", àqueles que não se preocupam como se chama.Com a barba a moldar-lhe o rosto, Jacinto Lucas Pires, 28 anos, escritor, interrompe o ensaio no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, onde estreará uma adaptação de contos em Dezembro, para falar do seu regresso ao Porto. "É sempre um regressar a casa, apesar de nunca ter morado lá".

(Entrevista de Helena Teixeira da Silva publicada no Jornal de Notícias a 24 de Outubro de 2002)


A cidade que o viu nascer recebe, a partir de amanhã, duas peças do autor. "Uma coincidência feliz, que só acontece pela minha ligação aos actores e encenadores Marcos Barbosa e Nicolau Pais", sublinha. Estiveram os dois com ele na construção do "Escrever, falar", em Tondela, de onde viriam a nascer os projectos "No fundo, no fundo", que sobe, amanhã, ao Teatro Helena Sá e Costa, e "Coração transparente", em cena no espaço Maus Hábitos, até 27 de Outubro.
"É engraçado como de uma peça nasceram outras duas. Eu só tinha uma ideia de duas personagens que se encontravam num lugar indefinido...". As três peças foram concentradas pela Cotovia num livro, que estará nas bancas no próximo mês.
Contador de histórias

Francisco Lucas Pires distinguiu-se pela sua condição de homem culto e simples. O mais velho dos quatro filhos copia-lhe os passos. "As coisas mais importantes da minha vida aprendi-as com o meu pai e a minha mãe. É bom que isso se note". Nota-se. A obra do escritor começaria a crescer em 1996, quando lança o livro de contos "Para averiguar do seu grau de pureza". Desde então, multiplicar-se-iam ficções, textos para teatro e argumentos para curtas-metragens.

Mas o protagonismo insiste em não turvar o raciocínio de Jacinto. "Carreira e obra são palavras que me assustam um bocado", confessa."Agrada-me mais a ideia de as pessoas serem tocadas por aquilo que fazemos com seriedade".

Quando o elogiam - e, às vezes, interrompem-no na rua só para isso -, "descontando o embaraço", diz, "é bom, porque percebemos que não estamos a escrever para o umbigo. Gosto de pensar que os meus textos não são só fruto de um presente que correu bem. Gosto de pensar que não me vou envergonhar daqui a uns anos". Não vai.

A modéstia é-lhe uma característica indisfarçável. Gosta do que faz, dessa possibilidade de escrever e não lhe desagrada que o vejam como um contador de estórias. "Começa tudo a partir daí", explica. No entanto, não consegue não ser severo com o seu dom.
"Flaubert queria escrever um livro sobre nada, só baseado no estilo. E o escritor deveria ser assim: encontrar uma fórmula que, só por si, sustentasse tudo. Mas eu não tenho esse talento".
Quando vê os textos transfigurados em palco sente sempre que "poderiam estar melhores", sendo, também, "uma espécie de milagre".

"Agrada-me a emoção que as palavras podem ter acompanhadas de corpos corajosos. A literatura dos livros, às vezes, padece dessa frieza: não há calor entre quem faz e quem recebe". Para quem lê, as histórias, quase todas, parecem ser sobre a solidão. E são. Mas "não sobre essa solidão que é tristeza e sombra". Lucas Pires defende que "todas as pessoas - felizes ou não -, são solitárias, no sentido de que há algo que é sempre só delas".

De resto, o escritor reconhece que "as histórias" - e ele prefere as micro histórias da vida -, "só por si, não chegam". Até porque, acrescenta, "em termos crus, já foram todas contadas. É preciso encontrar alguma coisa que nos faça entender a vida: o sentido do amor, da morte, do desejo, da saudade..."

Para o advogado que guardou o curso de Direito na gaveta - "onde permanecerá enquanto me deixarem viver da escrita" - ,"é no olhar sobre essas histórias que poderá haver a tal forma de solidão, no sentido feliz".

Há pouco menos de dez anos, Jacinto era anunciado na Imprensa, nacional e estrangeira, a par de escritores como Pedro Rosa Mendes, como uma promessa. Começa agora a cumprir-se. Ele, que escreve todos os dias - "embora, às vezes, apague mais do que escrevo" -, diz que "a expectativa é sempre dos outros. E a confirmação também. O próprio é que tem de escapar aos rótulos". Apesar disso, reconhece, "é bom ter a possibilidade de trabalhar.E aprender."

Assumidamente "de Esquerda", Jacinto Lucas Pires continua a tocar na guitarra que o pai lhe ofereceu aos 13 anos: "É uma das coisas que me descansa".

Um encontro e um monólogo

Integrado na primeira edição do projecto do Centro de Dramaturgias Contemporâneas do Porto, "No fundo, no Fundo", encenado por Marcos Barbosa, estreou em Agosto, em Faro. "Eu e o Marcos somos amigos desde crianças. Temos uma cumplicidade muito grande. Quase falamos por meias palavras. Entendemo-nos no silêncio. Os conflitos resolvem-se com um olhar. Trabalhar com um encenador assim, tão de perto, ajuda muito, porque o texto pode aprender com a cena", refere Jacinto Lucas Pires.

A peça - "sobre o encontro de pessoas sós, íntegras, mortais, e também sobre o teatro, sobre a beleza que ele pode ter" - apresenta-se, amanhã e depois, às 21.30 horas, no Teatro Helena Sá e Costa.No domindo, a sessão é às 16.30 horas. No espaço Maus Hábitos, "O Coração transparente" - "uma espécie de encomenda de Nicolau Pais" - é apresentado até dia 27, às 22 horas. "É um monólogo sobre as coisas que ele me contava. Alguém que está sozinho e diz um texto. Um homem solitário a inventar lugares e a dizer a sua história e a ficcioná-la ao mesmo tempo". "Eu digo assim, aconteceu assim".

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