Querido Paulo,
A dor é sempre egoísta. Acordo e tu já não estás, dizem-me por mensagem, eu ainda a acordar. A dor é uma pancada na cabeça antes de chegar ao coração. Fico à toa, aturdida, não pode ser, não nos podes faltar. Tento cair em mim. Já não estás. Já não estás. E agora?
A dor é tão egoísta, não paro de pensar, não paro de me sentir assim, egoísta. Na dor, no orgulho. Tu eras tão nosso, era tão grande o orgulho de seres tão nosso. Eras o maior de todos e eras nosso. Orgulhosamente nosso. Estavas a reconstruir o nosso coração à medida que reconstruías a cidade. Egoísta, apetecia-me tudo menos partilhar-te. Mesmo que partilhar-te fosse melhor para ti. "Não vá embora", pedi-te uma vez ao telefone, quando me disseram que estavas na lista dos ministeriáveis. "Não vou, helena", disseste-me. "Oh, sei que vai", insisti, infantilmente, mais preocupada comigo do que com a profissão da notícia. "Dou-lhe a minha palavra que não vou. Não vou, não quero, já sou ministro da nação que é o Porto." E riste. Devolveste-nos em dois anos muito mais do que nos tiraram em doze. Devolveste-nos a vontade de ficar. E de fazer. Encheste-nos de sonhos outra vez. Tu dizias que o Porto era uma cidade com o cérebro sequestrado, resgataste a cidade e nessa libertação salvaste-nos. Tanto em tão pouco tempo. E agora? Onde estás agora? O que vai ser de nós?
As nossas entrevistas demoravam sempre muito tempo a começar. Eu queria sempre que tu fizesses aquelas tuas associações de ideias em espiral. Dava-te o mote de uma coisa qualquer estapafúrdia, ou de uma dúvida ou de uma curiosidade, e tu respondias-me com poesia anatómica. Era quase um jogo, tornavas tudo tão simples e tão belo quanto o limite do impossível pode ser. Tu explicaste-me o Dostoievsky com metáforas de medicina! Eu ficava pequenina, rendida, perdida nos teus infindáveis horizontes de saber, tu sabias que eu adorava isso em ti e davas-me isso antes de cada play no gravador com uma generosidade de um tamanho sem nome. Sabias tudo de todas as coisas, dizias que tinhas o google na cabeça muito antes de terem inventado o google. E tinhas mesmo. E tinhas sempre um sorriso e um elogio e uma elegância como já não há. Fazias-nos acreditar que éramos melhores do que aquilo que somos. Tu acreditavas. Acreditavas na magia da aprendizagem por osmose. E da protecção pela auto-ironia, peito aberto.
Não tinha idade para te entrevistar quando te entrevistei da primeira vez. É coisa que só se percebe mais tarde. A última entrevista demorou quinze horas. "Já está farta de mim?", perguntavas a cada hora. Nunca me fartava de ti, mas estava cansada. Tinhas um ritmo impossível de acompanhar. Quando cheguei, tu já lá estavas, a trabalhar. Quando fui embora, tu ainda lá ficaste, a trabalhar. No fim, combinámos nova entrevista, maior ainda. Em Braga, para provar o Abade de Priscos da tua mãe. Encontrámo-nos no concerto do Reininho, tinhas acabado de receber o título de Cavaleiro da Ordem da Arte e das Letras por decisão da ministra da cultura francesa. E no concerto da Cat Power, tinhas acabado de ser eleito mais ou menos por todos os jornais como o melhor que nos aconteceu nos últimos dois anos. Tinhas o dom da ubiquidade. Onde quer que fosse, fosse a que horas fosse, tu estavas lá. Eras o que fazias. Ias agora para a China. Iríamos a Braga antes do Natal. "Assim, prova os doces todos, não só o pudim". Onde estás agora? Para onde vamos sem ti?
Ensinaste-me que não se trata por você alguém de quem gostamos muito. Estávamos num almoço, pouco depois da morte do mestre Manoel de Oliveira que ainda ontem homenageaste, quando te perguntei quando começaste a tratá-lo por tu. "Nunca", respondeste. "Nunca tratei, só depois da morte. A morte aproxima-nos das pessoas a quem nunca tivemos coragem de dizer o quanto gostávamos delas".
Tu, querido Paulo, ser tão, tão raro, fizeste com que a minha passagem pela cidade e pela profissão fosse um infinito privilégio. E sabes, ainda não acredito que isto está mesmo a acontecer, que vamos mesmo ficar sem ti...
Obrigada por tanto, mas tanto.
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