Os jornalistas não são intrépidos heróis em busca da verdade e em guerra com os poderosos do mundo. Nem sabujos que se vendem por um prato de lentilhas. Os jornalistas são profissionais dotados de um código profissional próprio (uns cumprem, outros não), de modos específicos de trabalho e de condições materiais para o exercício da sua função: informar o público. Com as limitações humanas que todos temos perante os vários poderes. Mas insisto nas condições materiais para o exercício da sua função. Como se verá, é a chave para o tema deste texto.
Ainda com 28 anos, Pedro José Ramirez já era diretor do Diario 16. Saiu do jornal depois de graves acusações que fez sobre o envolvimento do governo de Felipe González nos GAL (Grupo terrorista apoiado pelo Estado para combater a ETA). Essas acusações acabaria por prová-las no jornal que ele próprio fundou, o "El Mundo del siglo XXI", conhecido apenas por El Mundo. O jornal que acabaria por destronar os seus concorrentes mais próximos, como o ABC, e chegar a competir com o poderoso "El Pais." A vida de Pedro Jota, como é conhecido em Espanha, tem muitos momentos de admirável coragem e tornou-se um dos jornalistas com mais inimigos em Espanha. De tal forma que um vídeo sexual amador menos ortodoxo, em que era protagonista, foi espalhado por gente de poder para o tentar destruir. Mas o diretor do El Mundo mostrou ser, nos últimos 25 anos, um homem com sete vidas.
Mas que não haja enganos. Também foi ele que, quando uma greve ameaçou impedir a saída do jornal, usou de tudo para derrotar os grevistas. E foi acusado pelo chefe de fecho, Francisco Frechoso, na televisão, de ter desinformado os leitores sobre a incidência da greve no jornal. Não hesitou em despedir Frechoso, com a regra que "nenhum trabalhador deve aproveitar a sua presença noutros meios de comunicação para lesar os interesses do seu próprio jornal". Uma sentença do Tribunal Constitucional acabou por dar razão ao jornalista despedido, em nome da "liberdade de expressão", valor primeiro para qualquer jornal que se preze. Resumindo: o ex-diretor do El Mundo também conhecia limites para a liberdade e para a verdade. Era a do seu próprio poder. Humano, portanto.
Politicamente, nada me liga a Pedro Jota. O El Mundo definiu-se, logo na sua fundação, como um periódico de tendência "liberal" e o seu diretor sempre foi muito próximo do Partido Popular. E, no entanto, não posso deixar de admirar o jornal que denunciou os GAL e os casos de corrupção que envolviam o governo de González. E o diretor monárquico e de direita que mais fez para que a verdade sobre os negócios escuros de Iñaki Urdangarín, que abalaram de forma talvez irreversível a monarquia espanhola, e sobre o "caso Bárcenas" - a contabilidade paralela no PP, com pagamentos e salários não declarados a funcionários e ministros e financiamento ilegal do partido. Um escândalo em que o próprio Rajoy estará diretamente envolvido. Rajoy, diga-se em abono da verdade, por quem Pedro Jota nunca morreu de amores. Escreveu no twitter: "Passará Rajoy à história como o homem que fraturou o centro-direita em Espanha, destruindo o PP unido de Aznar?" Não eram amigos próximos, portanto.
Em qualquer um destes casos, o El Mundo e o seu diretor tiveram um papel central. E por isso se diz que foi a Zarzuela [o palácio real] e a Moncloa [sede do governo] que fizeram cair Pedro Jota. Sim, o poderoso fundador do El Mundo foi demitido pelos novos donos do jornal, os acionistas da RCS (também proprietária do Corriere della Sera), quase todos originários o sector industrial e financeiro italiano.
Explica Jesús Cacho, antigo colaborador do jornal (que teve, também ele, os seus desencontros com Pedro J. Ramirez) e conhecedor do mundo financeiro: "precisam de tirar o canário para poder vender a jaula" . E diz isto porque não compra a ideia de que foi o governo de Rajoy, bem mais fraco do que os de Aznar e González, e ainda menos a Casa Real em apuros, a conseguir derrubar Pedro Jota. Acha que foi um poder que não via com bons olhos a independência de Pedro Jota. Um diretor realmente jornalista que, "encarnado como ninguém as misérias deste ofício e boa parte das suas glórias" , não se limitava a fazer jornalismo. Tratava de Poder. Com maiúscula. É o que fazem e têm de fazer os diretores de jornais realmente poderosos em países onde há realmente poder de que tratar.
Apesar dos elogios, não vale a pena chorar muito por Pedro Jota. Enriqueceu bastante na profissão e a indeminização que leva para casa (15 milhões de euros) será um rude golpe para o jornal. Por isso, mais do que os elogios fúnebres, o que me interessa é saber porque caiu Pedro Jota. Porquê agora, e não quando fez tremer outros governos e outros interesses? Não compro, tal como Jesús Cacho, a teoria de que Moncloa e Zarzuela conseguiram o que há tanto tempo tantos poderosos da política espanhola desejaram sem sucesso. Logo quando estão em queda e decadência. A teoria que dá aos políticos um poder sobre os jornais que já não têm sobre os países custa-me sempre a comprar. Mas é fácil de vender. E sai barata. Exatamente por ser a menos arriscada de pôr no mercado. Tem compradores certos e ninguém se aborrece. Mas o poder que faz tremer os jornais é o poder que faz tremer os Estados e os políticos. É opoder do dinheiro. De quem compra as empresas que são donas dos jornais. De quem anuncia neles.
Regresso a Jesús Cacho: "Não foi o poder político o primeiro responsável pelo lodo em que hoje chapinha esta nobre profissão; foram os amos do dinheiro, os poderes económico-financeiros, os que teceram esta teia de aranha em que se debate hoje, presa, a liberdade de informar" . E ele explica como isto aconteceu: O jornalismo e as empresas jornalísticas, em mimética identificação com a orgia de dinheiro fácil que caracterizou o boom da economia especulativa espanhola, avançaram com operações que hoje são quase impossíveis de imaginar e que as endividaram para sempre e as puseram nas mãos do poder financeiro. Até chegar a crise. A circulação do El Mundo caiu 14% em 2012, incluindo a sua versão digital paga. No ano anterior, o consórcio proprietário do título, a Unidad Editorial, perdera 243 milhões de euros. Em 2012 saltou para os 526 milhões. Frágeis, não aguentam o peso da liberdade. E homens como Pedro José Ramirez deixam de fazer sentido ao leme de tão vulneráveis botes.
O jornalismo exige coragem. Mas não chega. Os jornalistas (e até os colunistas, apesar do seu maior grau de autonomia), precisam de saber que, a dirigir um jornal, está alguém que enfrentará todos os poderes para defender essa mesma coragem. Alguém que saiba que a credibilidade e a independência de um jornal de referência são o seu único verdadeiro ativo. E para que quem dirige o jornal possa cumprir essa função é indispensável que quem o detém não tente condicionar a liberdade de informar. Mas basta que se sinta a fraqueza financeira duma empresa de comunicação social para esta ser presa fácil de quem a queira silenciar. E aí, não há coragem que chegue.
Infelizmente, a tempestade perfeita aconteceu. As empresas de comunicação social também foram usadas no casino em que se transformou a economia. E, chegada a crise, foram as primeiras vítimas da perda de poder de compra e dos cortes em publicidade. A queda de alguém tão poderoso e temido como Pedro Jota às mãos dos novos proprietários é apenas o sinal da profundidade desta crise e do efeito que terá na comunicação social livre. Era a parte que faltava para a decadência democrática do Ocidente. O jornalismo que hoje se faz não nos serve? Não queiram saber a que servirá a sua morte. E tudo isto se passa em Espanha. Por cá, basta um sopro para derrubar jornais.
Hoje, Expresso
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