sexta-feira, fevereiro 07, 2014

Coriolano, Shakespeare



T.S. Eliot considerava Coriolano superior a Hamlet. No duelo de tragédias políticas de Shakespeare, a densidade do príncipe da Dinamarca ficaria muito aquém da do general romano, mesmo se ambas são histórias de vingança e traição e ambas perseguem o mesmo fim: representar uma elegia da moralidade. Hamlet "é uma confusão, cheia de cenas supérfluas", escreveu Eliot. "É a Mona Lisa da literatura”; já Coriolano é uma história simples, com sentido, não apenas um conflito doméstico, e que se conta num parágrafo.

O general que dá nome à peça é o herói de guerra responsável pela derrota do exército dos volscos. Como prémio, a nobreza pretende que ascenda de militar a político, candidatando-se a cônsule. Mas para isso depende do voto do povo. E Coriolano é o mais anti-povo possível. Despreza a plebe, odeia massas, tem uma inabilidade magistral para fazer campanha, para dizer o contrário daquilo que pensa e sente e também para ser adulado (e aqui, numa ambiguidade de precisão extraordinária, quase, quase gostamos dele, dessa inflexibilidade que sabe quase a incorruptibilidade). A sua fúria e visão antidemocrática levam-no não ao poder, mas ao exílio. E, mais tarde, a juntar-se aos volscos que antes derrotara com a inversa missão de vingar-se de Roma. No momento final, contudo, Caio Márcio, verdadeiro nome do herói trágico, também ele afinal manipulável, acaba por ceder ao apelo pacificador da mãe, única figura a quem se ajoelha. Coriolano, inflamado, impetuoso, radical, orgulhoso, representa assim uma tripla traição: primeiro ao povo, depois a Roma e, por fim, ao exército que o acolhera. Morre assassinado.

Não sabemos se Nuno Cardoso, como T.S. Eliot, prefere Coriolano a Hamlet. Sabemos que nunca encenou Hamlet, e que começou há sete anos a trabalhar numa espécie de trilogia shakesperiana sobre o poder. Depois de visto Coriolano - em cena no Teatro Nacional São João, no Porto, até dia 16 -, “Ricardo II” (2007) e “Medida por Medida” (2012) parecem apenas ensaios menores, parte do processo para chegar aqui. Aqui a uma peça de três horas (que voam) que nos confronta com o cidadão que queremos ser, com os políticos que estamos dispostos a eleger ou a banir, com as revoluções que estamos dispostos a encetar ou a recalcar. O encenador confirma a impressão: “Coriolano é o corolário perfeito para esta incursão shakespeariana. Neste momento, esta peça e as características do seu herói fazem dele catalisador de um conjunto de questões sem resposta, mas com muita angústia, que me assaltam na minha conduta como cidadão e homem”.

As angústias dele são as nossas. “Tem a ver com aquilo de que se fala muito em Portugal, que é a falência do regime. Tem a ver com a fraqueza e a tristeza de um jogo político ligado a interesses (…), tem a ver com este medo que arautos do Olimpo usam para nos incitar à revolta ou para nos chamar lamechas e tratar como gado”. A peça, continua, “deixa à mostra o que todos querem disfarçar, uma polis assente no reconhecimento de uma estratificação social, na manipulação, na objectificação das pessoas”.

Sempre que se encena ou adapta Coriolano, sublinha-se a actualidade de uma peça escrita há quase quinhentos anos. E volta a ser verdade. Vale a pena parar para pensar em como o texto sobrevive ao tempo. E, no caso, também ao contexto – real (em Cardoso, sempre com piscadelas de olho ao país) e cénico. Em “Ricardo II”, Nuno Cardoso reduziu o reino a um campo de futebol e substituiu o trono por uma cadeira de praia. Em “Medida por medida” colocou a acção em plena auto-estrada. Desta vez, de forma menos torcida, mais óbvia, porventura também mais eficaz, fez das escadas do Parlamento o cenário de guerra. E nós estamos todos lá representados, vemo-nos ao espelho – e isso é verdadeiramente impressionante. Como diz Cardoso, está ali um “regime com dois tronos em que quem não merece manda, e quem merece deixa mandar”.

Já o disse mil vezes, Nuno Cardoso é, de longe, dos meus encenadores preferidos. Nenhum outro me deixa a ressacar no intervalo das criações. Por tudo. Pelos dramaturgos e pelos textos que escolhe, pela inteligência com que os encena, pela equipa técnica que o acompanha quase sempre – sim, o Fernando Ribeiro (cenografia) e o Álvaro Correia (luz) são mesmo maravilhosos -, pelos elencos quase sempre inatacáveis. E sobretudo pelo denominador comum que ressalta do conjunto dos seus trabalhos: os valores no lugar certo. No capítulo shakespeareiano, no entanto, tive mais dificuldade em render-me. Excepto neste retumbante final, com Coriolano. Ainda por cima, teve o dom não de revelar, que estava revelado, nem de confirmar, que estava mais do que confirmado, mas de mostrar com total exuberância o gigantesco actor que é Albano Jerónimo no papel que muitos descrevem como o de um “aleijado emocional”. Seria injusto dizer que ele é a peça - não é, mas é grandioso.

tradução - Fernando Villas-Boas | encenação - Nuno Cardoso | movimento - Victor Hugo Pontes | cenografia - Fernando Ribeiro | guarda-roupa - Alejandra Jaña | desenho de luz - José Álvaro Correia | música - Rui Lima e Sergio Martins | apoio dramatúrgico - Ricardo Braun | interpretação - Albano Jerónimo, Afonso Santos, Ana Bustorff, António Júlio, Catarina Lacerda, Daniel Macedo Pinto, Joao Melo, Luís Araújo, Mário Santos, Pedro Frias, Ricardo Vaz Trindade, Rodrigo Santos, Sérgio Sá Cunha| produção executiva - Carla Fritz | assistente de produção - Alexandra Novo | gestão e administração - Hélder Sousa | Co-produção - Teatro Nacional D. Maria II, Ao Cabo Teatro, Teatro Do Bolhão, Centro Cultural Vila Flor, Teatro Viriato, Teatro Nacional São João

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