domingo, outubro 11, 2009

Mia Couto: Jesusalém


Há uma voz que nos acompanha, como um guia, durante a viagem a Jesusalém e nos persegue, como um fantasma, muito para lá do fim da viagem. Não é a voz de Mwanito, o pequeno afinador de silêncios, com vocação para não falar, crescido num lugar que não existe, essa voz sem mancha, imaculada, sem infânci nem memória da vida real. O rapaz que não sabe o cheiro da mãe, nem sequer o que fazer para saber sonhar. Que aprende a escrever na terra para depois fazer de um baralho de cartas e de um punhado de dinheiro o seu diário. Não é a voz revoltada do seu irmão Ntunzi, o rapaz agrilhoado pela falta do mundo que o obrigaram a deixar, o real. O menino-homem que desenha uma estrela por dia num muro, uma estrela por cada dia de exílio. Nem sequer é a voz do austero pai Silvestre Vitalício, o verdadeiro fugitivo de tudo o que é vida para evitar a memória da morte. O homem que acredita que se esconder os filhos do mundo, ninguém no mundo os poderá magoar. O homem para quem "o passado era uma doença e as lembranças um castigo". O homem que coloca fato e gravata para se enamorar de uma jumenta. Também não é a voz de Marta, mesmo que seja dela a voz que mais comove, a voz do desespero de quem se procura no amor que a traiu e só se reencontra quando definitivamente o perde. É a voz da consciência. Jesusalém, que é afinal só um lugar recôndito e rebaptizado em Moçambique, é a história de quem recria o mundo para fugir da dor. A história de todas as vezes que podemos morrer numa só vida.
Na contracapa deste livro de Mia Couto está escrito que esta é "seguramente a mais madura e mais conseguida obra do escritor" e é bem capaz de ser verdade. É quase impossível pousá-lo depois de se ter pegado nele. E é humanamente impossível não sentir arrepios. E lágrimas a queimar nos olhos. Jesusalém é sobre o que nos persegue, sobre o que não é possível enterrar, sobre o que prevalece sempre. É sobre a impossibilidade de fugir disso mesmo que se viva num bunker e a tudo se dê nomes novos. É sobre o amor, que "vicia mesmo antes de acontecer" e sobre a luta cega para o preservar: "Durante anos, aplicara-me em maquilhagem, dieta, ginástica. Acreditara ser o modo de te continuar cativando. Só agora entendi que a sedução mora em outro lugar. Talvez no olhar. E há muito que eu deixara esmorecer esse olhar incendiado." Sobre a doença que é a saudade ("A saudade pode ser uma repentina estiagem na boca, um lume frio na garganta?"), sobre perda e despedida ("Em criança não nos despedimos dos lugares. Pensamos que voltamos sempre. Acreditamos que nunca é a última vez."). Sobre reencontros ("Reencontramos os nossos amores num próximo luar. Mesmo sem lagoa, mesmo sem noite, mesmo sem lua. Dentro da luz, eternos, eles regressam..."). E mais.
Jesusalém é essencialmente uma história de amor, uma história de amor contada de uma forma altamente improvável e mágica, uma história de amor com tudo o que no amor magoa e mata. Amor entre dois irmãos, entre um pai e dois , entre um homem e um animal, entre amantes, entre um homem e uma mulher que morreu de morte escolhida, entre uma mulher e um homem que a abandonou.
Ainda por cima, todos os capítulos começam com poemas, escolhidos a dedo, de três senhoras que merecem ajoelhamento: Sophia de Mello Breyner, Hilda Hilst e Adélia Prado.

1 comentário:

  1. Li o livro e amei, adoro também a forma como descreves a leitura que dele fizeste. Adoro!

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